Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2000 - Página 5447
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, ESCRITOR, ELOGIO, ELABORAÇÃO, TEORIA, FORMAÇÃO, RAÇA, BRASIL.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães; Sr. Vice-Presidente da República, Marco Maciel; Sr. Fernando Freyre, que aqui representa toda a família; Sr. Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro; Srªs e Srs. familiares, Srªs e Srs. Senadores, em primeiro lugar, cumprimento o Senador José Jorge, que vem proporcionando, por meio de homenagens a figuras históricas importantes de Pernambuco e do Brasil, oportunidades para que, no Senado, possamos conhecer melhor pessoas extraordinárias como Dom Helder Câmara, Joaquim Nabuco, João Cabral de Melo Neto, Vicente do Rego Monteiro e Gilberto Freyre.  

Pergunto-me – e dialogava com algumas pessoas de Pernambuco - quando o Senador José Jorge homenageará a mulher pernambucana, porque, por enquanto, há uma fileira de homens a serem homenageados.  

Diz Gilberto Freyre, num trecho sobre a população indígena:  

 

Já dissemos, às primeiras páginas deste capítulo, que, sob o ponto de vista da organização agrária em que se estabilizou a colonização portuguesa do Brasil, maior foi a utilidade social e econômica da mulher que a do homem indígena. Este se retraiu quase que por completo aos esforços dos colonos e mesmo aos agrados dos padres para o incorporarem à nova técnica de exploração econômica e ao novo regime de vida melhor. Melhora justamente se verificou por parte da mulher, o que se compreende dada a sua superioridade técnica entre os povos primitivos e dada a sua tendência maior para a estabilidade entre os povos nômades.  

 

E por aí segue, falando das qualidades da mulher. Então, Senador José Jorge, certamente haverá mulheres a serem homenageadas.  

É interessante comemorar o centenário de Gilberto Freyre no ano 2000, justamente por ocasião dos 500 anos de descobrimento: ele também foi um descobridor do Brasil. Ao desvendar cada detalhe das relações entre as diversas culturas aqui presentes, ele também descobriu a nossa Nação. De uma maneira peculiar, controversa, polêmica e descritiva, mostrou com genialidade os elementos formadores da sociedade brasileira.  

Nascido em Recife, em março de 1900, filho de família tradicional pernambucana, teve ampla formação cultural. Por um lado, era um jovem fidalgo representante do senhorio nordestino, típico da classe dominante; por outro, o moço formado no exterior, lançando olhar inquisitivo sobre essa mesma sociedade, com uma vontade muito grande de compreendê-la.  

Sua formação acadêmica se deu nos Estados Unidos, mais precisamente na Universidade de Baylor, no Texas, e posteriormente na Universidade de Columbia, em Nova York, onde foi aluno do Professor Franz Boas, antropólogo de origem alemã que se tornou referência constante em toda a sua obra. Boas era um intelectual público importante em 1921, gozava de enorme prestígio no meio acadêmico americano, conhecido por suas posições políticas radicais no debate racial.  

Não é à toa que ressalto essa influência na vida e obra de Gilberto Freyre. Segundo suas próprias palavras, foi a orientação do Professor Boas que lhe revelou "o negro e o mulato no seu justo valor" (prefácio à primeira edição de Casa Grande & Senzala ). Quando, em 1933, Freyre publicou Casa Grande & Senzala , mostrou ao leitor, claramente, uma tentativa de compreender os traços que contribuíram para fundar a cultura brasileira por intermédio da observação do comportamento de seu povo e das relações inter-étnicas que tanto marcaram a sociedade brasileira. Por meio da observação do complexo patriarcal, baseado na monocultura latifundiária, quis apreender o "conjunto de sociedades", o complexo cultural que deu origem à sociedade brasileira. Para ele, "A Casa Grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião, (...) de política".  

Em 1967, no prefácio a Raízes do Brasil , registra Antonio Cândido seu comentário a Casa Grande & Senzala: "(...) o jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor – o apoio ao golpe militar de 1964 – a força revolucionária, o impacto libertador que teve esse grande livro (...). Casa Grande & Senzala é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Vianna, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940".  

Com Gilberto Freyre, a Sociologia ganhou sistematização, produziu um discurso próprio, fundamental para a compreensão da gênese de uma sociedade e de uma cultura eminentemente brasileira.  

Houve quem chegasse a qualificar a sua obra como "antipatriótica", "antijesuítica", "anticatólica", "saudosista", "negrófila", pró-lusitana". Porém, o importante é lembrar que Casa Grande & Senzala constitui uma contribuição rica para a compreensão das relações entre diversos fatos como complexos formadores da identidade nacional brasileira. A importância histórica desse livro e de todo o pensamento de Gilberto Freyre é a genialidade da descrição do complexo patriarcal e de como uma combinação de traços culturais serve de base para a formação de um povo.  

Nesse sentido, o que chama a atenção é que, passados tantos anos, ainda há uma questão tão presente: a do Brasil das desigualdades, ainda arraigado nas tradições dominadoras, sem que se verifique intercomunicação entre os seus extremos de cultura, antagônicos e por vezes até explosivos.  

Usando as próprias palavras de Gilberto Freyre:  

 

(...)a formação brasileira tem sido, na verdade, (...) um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas, predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.  

 

Na verdade, ao ressaltar essas diferenças e essas contradições, Gilberto Freyre farejava desesperadamente qualquer indício de confraternização. Foi um homem que queria gostar do Brasil, que gostou do Brasil.  

Conforme ressalta Mário César Carvalho, em seu ensaio para o Mais , da Folha de S.Paulo , de 12 de março último, numa época de ascensão de Hitler ao poder, em que se procurava dizer que o Brasil estaria condenado ao atraso por causa da mistura de brancos, negros e índios, Freyre inverteu essa noção, ao valorizar a mistura de etnias.  

No mesmo Mais, Evaldo Cabral de Mello também dá ênfase à importância dessa contribuição de Freyre ao explicar o ovo de Colombo gilbertiano. Numa operação simples, ele transtrocou os dados de um problema – o referente à adequação de nossas instituições políticas à realidade brasileira –, deslocando a análise sociológica do público para o privado e – referente aos pretendidos efeitos negativos que a mestiçagem teria trazido para o futuro nacional – transformando a miscigenação de hipoteca em lucro. Também Evaldo Cabral de Mello, no mesmo ensaio, ressalta que Gilberto Freyre não só se antecipou a várias preocupações fundamentais de seu próprio tempo como o fez no que diz respeito às nossas próprias preocupações. Cita o exemplo de Sobrados e Mucambos , em que faz uma análise das relações entre os sexos no Brasil, num capítulo intitulado "O Homem e a Mulher". Ainda, quando ninguém falava de ecologia no Brasil, Freyre publicou Nordeste: Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil , que é nada menos que o impacto da monocultura canavieira sobre a mata atlântica e a economia regional.  

Quando jovem, nos anos 60, crítico do golpe militar de 1964, eu ficava espantado com as posições de seu pai, o sociólogo Gilberto Freyre, que apoiava o Governo Castelo Branco e os demais Presidentes do regime militar e não se preocupava tanto com a defesa da democracia. Há, entretanto, que se registrar, de um lado, que, mesmo em suas proposições para a Arena, como num programa que elaborou em 1972, ele defendia que se deveria promover uma melhor distribuição da renda e a reforma agrária e, de outro lado, que, mesmo entre aqueles que eram adversários de suas proposições no mundo acadêmico, como o Professor e ex-Deputado Florestan Fernandes, outro de nossos grandes sociólogos, ele sempre granjeou grande respeito. Evidência disso foram as cartas enviadas por Florestan Fernandes a Gilberto Freyre, em 1961, convidando-o para fazer parte das bancas de tese de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Ele preferiu não vir, mas ficou a troca de gentilezas e de respeito mútuo entre Florestan Fernandes e Gilberto Freyre.  

O Presidente Fernando Henrique Cardoso disse, em entrevista à Folha de S.Paulo , que a posição de Freyre em 1964 o chocou muito, pois acreditava que "havia uma elite dominante no Brasil que precisava sofrer um abalo com a presença das massas urbanas na política". Ora, hoje são muitos os que se chocam com as posições do Presidente. Melhor governo Sua Excelência fará, se se dispuser a ouvir mais de perto o que o povo, em todo o Brasil, tem tido a vontade de lhe dizer nas ruas. Dessa forma, estaremos mais perto de poder dizer do Presidente o que Sua Excelência disse do próprio Gilberto Freyre: "Mas o que importa mais é que teve a audácia de pensar e o fez com uma competência muito grande".  

Nesses últimos dias, procurei o livro Casa Grande & Senzala , porque queria ver a sua última edição, mas, em todas as livrarias de São Paulo, ela está esgotada. O livro só vai chegar às livrarias na próxima semana.  

Parabéns a Gilberto Freyre!  

Muito obrigado. (Palmas)  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2000 - Página 5447