Discurso durante a 25ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

REPUDIO AS CRITICAS DO PRESIDENTE DA REPUBLICA, EM ENTREVISTA AO JORNAL O ESTADO DE S.PAULO, EDIÇÃO DE 17 DE MARÇO DO CORRENTE, SOBRE O POSICIONAMENTO DOS TEOLOGOS NO BRASIL. (COMO LIDER)

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IGREJA CATOLICA.:
  • REPUDIO AS CRITICAS DO PRESIDENTE DA REPUBLICA, EM ENTREVISTA AO JORNAL O ESTADO DE S.PAULO, EDIÇÃO DE 17 DE MARÇO DO CORRENTE, SOBRE O POSICIONAMENTO DOS TEOLOGOS NO BRASIL. (COMO LIDER)
Aparteantes
Antonio Carlos Valadares, Carlos Wilson.
Publicação
Publicação no DSF de 31/03/2000 - Página 5707
Assunto
Outros > IGREJA CATOLICA.
Indexação
  • REPUDIO, DECLARAÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ENTREVISTA, JORNAL, O ESTADO DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), CRITICA, POSIÇÃO, ESPECIALISTA, ESTUDO, TEORIA, TRADIÇÃO, DOUTRINA, CRISTÃO.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Como Líder. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, primeiro, quero deixar bem claro que este pronunciamento não tem a pretensão e o caráter de se constituir numa espécie de "guerra santa", até porque acredito que, numa democracia, não se pode, em absoluto, instituir esse tipo de combate, como fizeram as palavras proferidas pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso na entrevista que deu ao jornal O Estado de S. Paulo , no dia 17, referindo-se aos teólogos.

Esta minha fala se deve mais a uma tentativa de reparar a injustiça praticada pelo Presidente da República em relação a um grupo de pessoas altamente significativas, na minha opinião, em todo o mundo e, particularmente, na realidade brasileira, pela contribuição que têm dado, seja do ponto de vista da teologia cristã católica, seja do ponto de vista da teologia cristã protestante. E é por isso que, embora a afirmação tenha sido feita no dia 17, ainda me sinto instada a fazer este pronunciamento em desagravo.

Um outro cuidado que devo ter ao criticar as palavras do Presidente Fernando Henrique Cardoso é o de não lançar mão das mesmas armas que Sua Excelência utilizou ao criticar os teólogos, sob pena de me transformar em quem estou criticando. De sorte que procurarei fazê-lo dentro de um espírito fraterno, mas, ao mesmo tempo, procurando reparar a verdade, que, segundo entendo, não foi devidamente alcançada quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso, na entrevista ao referido jornal, disse: ..."a despeito de tais e quais diferenças, é preciso pensar nas coisas importantes para o País, avançando sempre dentro do possível". Para o Presidente é preciso ser capaz de rever posições preestabelecidas. "Quem é dogmático, quem é intolerante não faz política; faz, talvez, Teologia, fundamentalismo, mas não muda o mundo" - comentou, acentuando que ao político cabe mudar o mundo.

Em primeiro lugar, Sua Excelência atribui os adjetivos intolerante e dogmático àqueles que operam no espaço da Teologia, os teólogos. Quanto a isso, temos de, primeiramente, entender que o teólogo é o cientista de Deus, aquele que estuda a revelação divina - e isso está em todas as religiões, tanto no judaísmo, quanto no cristianismo, quanto no islamismo; faz parte das religiões que têm Deus como Pai e Criador, como sendo revelado. A Teologia, no meu ponto de vista, não é o espaço nem para uma visão puramente dogmática no sentido aqui posto, nem para uma visão intolerante e muito menos um espaço para o fundamentalismo. Claro; os dogmas existem dentro da fé, mas uma visão dogmática do mundo não pressupõe a possibilidade de uma interação, de uma mudança.

Em segundo lugar, a intolerância - e nem seria preciso falar - é a incapacidade de admitir a diferença. Mesmo quando falamos em admitir a diferença, já estamos praticando uma espécie de intolerância, uma vez que as diferenças não devem ser reprimidas nem admitidas; elas devem apenas existir. No momento em que me arrogo o direito de admitir a diferença, já estou me atribuindo um poder de concessão que não admito que sequer exista.

Sr. Presidente, quero me ater a essa afirmação do Presidente Fernando Henrique, sem correr o risco de praticar, talvez, a mesma intolerância, dizendo que, se tomarmos os exemplos dos grandes teólogos, como Martin Luther King, como o próprio Martinho Lutero, ou ainda, sem sairmos do Brasil, o Frei Leonardo Boff, o Frei Beto, o nosso saudoso Dom Hélder - e poderíamos pegar tantos exemplos brasileiros, assim como poderíamos nos valer dos ensinamentos do grande teólogo, de repercussão mundial, Hans Kung, que tem dado uma grande contribuição ao humanismo em todo o mundo -, veremos que essas pessoas - e não quero ser ofensiva aos demais cientistas -, tenho absoluta certeza, deram uma contribuição de mudança muito grande, do ponto de vista social, político e cultural, a milhões e milhões de pessoas em todo o mundo.

Se eu considerar a realidade do meu pequeno Estado, o Acre, com narcotraficantes, com esquadrões da morte, com 20 anos de opressão sobre o povo sofrido, e fizer uma comparação entre o resultado operado naquela população com a influência dos teólogos, principalmente pelo viés da Teologia da Libertação, com a contribuição que deram para a mudança daquele Estado, verei que é incomparavelmente maior que a ação de qualquer cientista social ou de qualquer sociólogo, com a diferença de que eles falaram e praticaram; não pediram para nos esquecermos do que haviam dito. Quando disseram "é preciso que haja um compromisso entre a fé e a realidade social; é preciso que se faça uma junção da fé com a política", foram até lá e organizaram as Comunidades Eclesiais de Base, os sindicatos, ajudaram a organizar cooperativas; enfim, deram a uma sociedade completamente desprovida de referenciais, em termos libertários, um cabedal, um instrumental para defender-se de seus opressores.

Destarte, não posso considerar que essas pessoas não mudem o mundo, a realidade. Creio que foram injustas as palavras do Senhor Presidente da República. São teólogos, mas mudam o mundo. Senti-me mudada pela Teologia da Libertação; Chico Mendes também recebeu uma grande contribuição, assim também o Senador Tião Viana. As estruturas de direito que se constituíram no Acre receberam uma contribuição dos teólogos cristãos-católicos incomparável à contribuição dada por qualquer outra corrente. Não quero fazer uma diferenciação pejorativa, mas foi a Teologia da Libertação que interferiu naquela realidade. Também o livro do sociólogo, hoje Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, deu uma grande contribuição sobre a Teoria da Dependência. Se Sua Excelência não se lembra, continuamos fazendo questão de nos lembrar, pois foi uma contribuição politicamente correta para a época em que foi lançado na América Latina.

Poderia apenas ficar citando a contribuição dos teólogos, sejam católicos ou protestantes, mas o que desejo aqui é tomar o fundamento teológico, para que não se diga que ter fé, que acreditar em Deus, nos leva necessariamente ao espaço da intolerância, do dogmatismo, do fundamentalismo. Isto não é verdade e quero justificar, portanto.

Vou lançar mão das palavras de um teólogo que, se não me engano, já não é mais cristão. Parece-me que hoje ele está voltado para o Islamismo, mas nem por isso devam ser invalidadas as suas grandes contribuições como teólogo, pois dentro da religião islâmica continua sendo um teólogo e contribuindo grandemente. Trata-se do sociólogo Roger Garaudy, que deu extraordinária contribuição, ao utilizar o fundamento bíblico daquele que inspira a teologia cristã: Jesus Cristo. Vou analisar esse fundamento a partir das palavras desse ilustre sociólogo, que hoje não é mais cristão.

O Sr. Carlos Wilson (PPS - PE) - Estamos assistindo a uma aula de Teologia.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Ouço o meu colega dizer que estou dando uma aula de Teologia, mas estou tentando apenas responder as críticas feitas pelo Presidente, e o que estou falando acho interessante.

O Sr. Antonio Carlos Valadares (PSB - SE) - Mas estamos gostando muito de ouvi-la, nobre Senadora.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Não estou criticando o que V. Exª disse. Quisera ter a possibilidade de ser capaz de dar uma aula de Teologia.

Roger Garaudy disse que Jesus, que é o fundamento da teologia cristã, em nenhum momento foi intolerante, dogmático, e jamais poderiam aqueles que professam essa fé serem acusados de fundamentalistas.

Jesus de Nazaré contradiz e denuncia a riqueza e os poderes , na sua época, no Império Romano. Ele nem tinha mandato e fazia isso. Contradiz e denuncia a ordem e as hierarquias encarnadas então pelo Império Romano. Contradiz e denuncia a teocracia e o clericalismo do alto clero judeu. Contradiz e denuncia o escárnio e o disparate da orgulhosa sabedoria e da pretensa racionalidade dos gregos. Contradiz e denuncia a ordem moral das falsas virtudes e da falsa piedade religiosa da ordem estabelecida.

Quarenta séculos de ordem masculina que reinou, ininterruptamente, da Mesopotâmia ao Egito, em todo o Crescente Fértil, na Ásia Menor dos fenícios, nas sociedades tribais e patriarcais dos judeus, nas cidades gregas e no Império Romano - tudo isso é por Ele relativizado, relegado à noite de uma pré-história desumana. Em nome de valores novos, do amor e do serviço ao próximo, da nudez plena e do despojamento do "eu", da incondicional recusa do poder, da abertura a todos e do perdão como aposta absoluta no homem e no seu amanhã.

Quando essas coisas eram questionadas, poder-se-ia dizer: Mas Ele questionou isso com palavras, com sermões. Questionou do ponto de vista prático, também não pediu para esquecer o que Ele havia dito quando entrou no templo - e Ele nem pertencia à casta dos principais sacerdotes. Entrou no templo e, com um chicote, disse: se aqui há ministro corrupto - suponhamos que houvesse um Greca da vida -, meto o chicote e boto para fora. Se, suponhamos, houvesse algum Cacciola da vida lá dentro, iria ao chicote e o colocaria para fora.

Ele disse e praticou o que dizia. Mais ainda, conseguiu praticar também do ponto de vista dos valores morais, culturais e religiosos.

Alguém tem dúvida de quem era a mais desprezível em uma sociedade patriarcal como a judaica? Era exatamente a mulher. E foi das mãos de uma mulher, de uma samaritana, que Jesus pediu água. Eis um grande ato de tolerância, respeito e não-dogmatismo.

Quem foi que viu Jesus pela primeira vez, após a sua ressurreição? Uma mulher, a ex-prostituta Maria Madalena. Enquanto Ele era homem, tudo bem quanto ao fato de haver conversado com a prostituta. Mas, após a ressurreição, já era Deus, e não um ser humano. E foi a ela que Ele apareceu para dar notícia aos discípulos. Através dela que eles souberam da sua existência.

A tolerância vai mais além, porque quando Maria Madalena quase foi apedrejada por haver cometido o adultério, o que Ele fez? Poderia, para ficar bem com os seus aliados, com os sacerdotes, com os fariseus, ter dito que não iria defender aquela prostituta, porque aquele era um crime para o qual não havia perdão e, portanto, ela deveria ser apedrejada. O que Ele fez? Desmascarou a hipocrisia daqueles que queriam atirar pedras, mas que eram, no fundo, responsáveis pelo ato da prostituição, como usuários dela, e disse-lhes: "Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra". Ninguém teve coragem de atirar, e o que Ele disse? "Eu também não te condeno. Vai e não tornes a pecar."

Estou recordando essas palavras e esses feitos de Jesus, para dizer que a Teologia, do meu ponto de vista, não pode ser tratada como se fosse o espaço fértil para a intolerância, para uma visão fundamentalista do mundo e, acima de tudo, como se fosse algo que não muda o mundo, que não muda a realidade.

Quem mudou a realidade de toda a cultura herdeira, que é a nossa civilização ocidental, baseada em princípios judaicos e cristãos? Quem fez a grande mudança de valores? Pode-se dizer que são bons ou são ruins, mas não se pode dizer que eles não mudam a realidade. Dizer que a Teologia, os fundamentos do Cristianismo não mudam a realidade é, no mínimo, desconhecimento não apenas de Teologia, de religião, de fé, mas também de Sociologia, de Antropologia, de Filosofia ou de coisa que o valha.

Como não acredito que o Presidente Fernando Henrique Cardoso seja desconhecedor das ciências às quais me referi, só posso entender que Sua Excelência fez aquilo que condenou na sua fala, quando disse: Às vezes as palavras saem mais depressa do que o coração gostaria e muito mais ainda do que a razão permitiria, e é preciso dar um espaço para que haja voltas - afirmou o Presidente -, acrescentando que um político precisa ser generoso e saber relevar.

Se o Presidente tivesse pensado melhor sobre as palavras ditas no início da matéria, não teria dito as que disse ao final, quando afirmou que os teólogos são adeptos, talvez por princípio - de acordo com o que aqui está dito -, da intolerância, do fundamentalismo; pessoas que são incapazes de mudar a realidade.

De sorte que era o registro que eu queria fazer, até porque tomei o cuidado de verificar alguns pontos no Livro de Provérbios. Tenho certeza de que o Presidente não vai estar me ouvindo a esta hora, mas disse eu que tinha a função de fazer aqui um reparo, e esse reparo, espero, possa estar contribuindo para o esclarecimento desse mal-entendido. O Livro de Provérbios diz o seguinte:

Pv. 9:8 - "Não repreendas o escarnecedor, para que te não aborreça; repreende o sábio, e ele te amará".

Inspirada pelo versículo 16, cap. 8, do Livro de Provérbios, arrisquei-me a fazer esse reparo. Tenho certeza de que o Presidente Fernando Henrique Cardoso é um homem de bom entendimento e, como tal, não ficará aborrecido comigo por recolocar essa questão, ocorrida no dia 17. Volto à tribuna para fazer justiça àqueles que, tenho absoluta certeza, ajudaram a mudar o mundo e continuarão ajudando a mudar o mundo mudado, com já disse um filósofo.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 31/03/2000 - Página 5707