Discurso durante a 38ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

SINTESE DA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DOS 500 ANOS DE DESCOBRIMENTO.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • SINTESE DA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DOS 500 ANOS DE DESCOBRIMENTO.
Publicação
Publicação no DSF de 19/04/2000 - Página 7619
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • ANALISE, PERIODO, FORMAÇÃO, SOCIEDADE, PAIS, OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, DESCOBERTA, BRASIL.
  • IMPORTANCIA, ESCLARECIMENTOS, VERACIDADE, FATO, HISTORIA, SITUAÇÃO, ABANDONO, GENOCIDIO, DISCRIMINAÇÃO, VITIMA, INDIO, NEGRO, DEFESA, NECESSIDADE, MANUTENÇÃO, LUTA, OBTENÇÃO, JUSTIÇA, IGUALDADE, SOCIEDADE.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT – RJ) – Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, aproxima-se a data de 22 de abril. Nesse dia, há 500 anos, um grupo armado de portugueses desembarcou nestas terras, com a finalidade de anexá-la como território colonial.  

Aqui viviam mais de cinco milhões de pessoas, pertencentes a cerca de 970 diferentes povos. Eram os legítimos donos da terra, possuidores de tudo. Só não eram dotados de anticorpos para doenças européias. Não possuíam armas mortais, à base de pólvora e chumbo, nem o impulso de violência, depredação, exploração e saque. Disso eram portadores privilegiados aquele grupo de homens maltrapilhos e doentes que aportou na praia da hoje Cabrália, na sul da Bahia, cinco séculos atrás, dizendo que estavam "descobrindo um Novo Mundo" e que trariam para eles seus ideais de "civilização, progresso e evangelização".  

Aquele 22 de abril de 1500 foi um dia mítico. Matriz de uma história violente e desumana que continua até os nossos dias. Nós, os povos indígenas, negros e mestiços, e nossas entidades representativas nos movimentos sociais, representando a grande maioria da população, fazemos um outra leitura da nossa história. Não acreditamos numa história escrita pelas classes dominantes, em que estas se colocam como protagonistas únicos e vencedores incontestes, tendo seus personagens guindados à posição de heróis de uma versão mistificadora e falsa do processo histórico.  

Na escola aprendemos a chamar Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, de "O Pacificador". As controvérsias sobre Caxias não chegam às salas de aula. Não quero entrar nessa polêmica, mas gostaria de questionar: se o militar de alta patente é um "herói" da história oficial, por quê nas salas de aula não se ensina a saga do marinheiro João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata ?  

Queremos que se conte a verdade dos povos indígenas que, ao longo desses cinco séculos, vêm sofrendo um processo contínuo de extermínio e abandono, mesmo travando uma luta heróica e desigual, ao longo desse período, pela manutenção de suas terras, suas culturas, suas religiões, suas identidades e seus projetos de vida.  

Lutamos para resgatar a verdade dos povos africanos, aprisionados, arrancados violentamente de suas terras e seqüestrados. Protagonizaram episódios heróicos, como a fundação dos territórios livres, dos quilombos, provas vivas da afirmação da dignidade humana e das lutas mantidas até os dias de hoje pelas entidades negras, tendo como inspiração a figura de Zumbi.  

A verdade dos setores populares que, durante toda a nossa história lutaram para mudar o seu curso, na busca da construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Protagonizaram a luta contra a ditadura militar e pela redemocratização do país. Quem não se lembra das memoráveis campanhas pela anistia e pelas diretas? Hoje, o MST, herdeiro da luta dos nossos nativos pela terra, questiona o modelo econômico excludente, que privilegia o latifúndio e tira a possibilidade da fixação do pequeno agricultor à terra. Esse povo também criou um dos principais instrumentos de defesa dos direitos dos trabalhadores, a CUT, hoje uma das mais importantes Centrais Sindicais do mundo.  

Durante a difícil constituição da sociedade brasileira, nesses 500 anos, a violência, como o camaleão, vem sempre mudando de cor. A brutalidade do genocídio indígena, capitaneado pela empresa colonial e responsável pela extinção de povos inteiros, teve um recrudescimento no passado recente, com o bárbaro assassinato do índio Galdino, atingindo, nos dias de hoje, os trabalhadores rurais sem-terra. Não podemos esquecer do dia 17 de abril de 1996, quando 19 sem-terra foram chacinados pela Polícia Militar do Pará. Até o momento ninguém foi punido.  

A barbárie da sociedade escravocrata que espoliou e sacrificou os povos africanos, desagregando famílias e comunidades inteiras, é hoje o salário mínimo de 151 reais, o maior nível de desemprego de todos os tempos, e a exploração dos agiotas internacionais, com a aquiescência e subserviência do Presidente FHC, que destinou mais de 78 bilhões de reais para o pagamento de juros de uma dívida ilegítima.  

Enquanto isso, o Governo Federal se associa à Rede Globo nas comemorações oficiais. De São Paulo, a maior e mais rica cidade brasileira, até São José da Tapera, em Alagoas, nosso município mais pobre, basta ligar a TV e ser bombardeado com o slogan: "faltam tantos dias para os 500 anos..." A verdadeira lavagem cerebral da rede de televisão, quer nos convencer dos 500 anos de uma sociedade supostamente unida, harmônica e erguida num processo de colaboração voluntária de indígenas e negros, sem conflitos.  

Queremos, sim, celebrar as vitórias e derrotas de uma luta sempre desigual: de um lado a riqueza, o poder, as armas, o desprezo pela vida, a arrogância de classe; de outro lado, a vida coletiva, o trabalho humano, os despossuídos de tudo, a solidariedade de classe, a humildade e generosidade anônimas, a infinita esperança.  

No marco desses pretensos 500 anos, celebrar também o futuro. Herdeiros de um passado de resistência e luta, apesar de tantas desigualdades que teimam em persistir, continuaremos a luta pela edificação de uma sociedade livre e justa, marcada pela igualdade de fraternidade. Uma sociedade sonhada que tanto buscamos e que tantos buscaram antes de nós.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/04/2000 - Página 7619