Discurso durante a 44ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSTERNAÇÃO COM A NOTICIA PUBLICADA NOS JORNAIS DE HOJE SEGUNDO A QUAL O BISPO DE EUNAPOLIS/BA, DOM JOSE EDSON SANTANA OLIVEIRA, TERIA PEDIDO PERDÃO AO VATICANO PELA CARTA DO LIDER INDIGENA MATALAUE CONDENANDO O "MASSACRE, EXTERMINIO E ACULTURAMENTO", LIDA DURANTE MISSA CELEBRADA PELOS 500 ANOS ANOS DE EVANGELIZAÇÃO DO BRASIL.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • CONSTERNAÇÃO COM A NOTICIA PUBLICADA NOS JORNAIS DE HOJE SEGUNDO A QUAL O BISPO DE EUNAPOLIS/BA, DOM JOSE EDSON SANTANA OLIVEIRA, TERIA PEDIDO PERDÃO AO VATICANO PELA CARTA DO LIDER INDIGENA MATALAUE CONDENANDO O "MASSACRE, EXTERMINIO E ACULTURAMENTO", LIDA DURANTE MISSA CELEBRADA PELOS 500 ANOS ANOS DE EVANGELIZAÇÃO DO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 29/04/2000 - Página 8367
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • DENUNCIA, PROIBIÇÃO, ESTADO DA BAHIA (BA), REGISTRO DE NASCIMENTO, NOME, CULTURA, INDIO.
  • CRITICA, BISPO, MUNICIPIO, EUNAPOLIS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA), REPUDIO, LEITURA, CARTA, AUTORIA, INDIO, CERIMONIA RELIGIOSA, IGREJA CATOLICA, ALEGAÇÕES, DESRESPEITO, INFLUENCIA, SETOR, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB).
  • LEITURA, CARTA, AUTORIA, INDIO, ASSUNTO, PERSEGUIÇÃO, VIOLENCIA, HOMICIDIO, COMUNIDADE INDIGENA, HISTORIA, BRASIL.
  • DEFESA, ATUAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, APROVAÇÃO, ESTATUTO, INDIO.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) – Sr. Presidente, sugiro que V. Exª prorrogue um pouco a sessão para que o Senador Dutra possa falar, porque eu pensava que a sessão iria até às 14 horas.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, muito brevemente vou tentar fazer uma referência à notícia publicada nos jornais de hoje, dizendo que o Bispo de Eunápolis, D. José Edilson Santana Oliveira, pediu perdão pela carta lida pelo índio Matalauê, apelidado de Jerry Adriani.  

Aqui, quero fazer um breve registro, porque alguns jornais usaram o nome de Matalauê como se fosse um apelido familiar e o nome que lhe é imposto, de Jerry Adriani, como se fosse seu nome legítimo. Na verdade o Cacique Canai, pataxó, me havia dito que, lamentavelmente, na Bahia, os índios não podem registrar seus filhos com os nomes de sua cultura, de sua aldeia, e são obrigados a lhes colocar um nome de branco.  

Isso deve ser reparado de alguma forma, porque é inconstitucional. Hoje, quando se trata de um nome que cause constrangimento às crianças ou aos jovens, há alguma admoestação ou algum impedimento, mas, com certeza, Matalauê não é um nome que cause constrangimento. O próprio cacique que me fez essa denúncia é chamado de Nailton, mas seu nome é Canai.  

Se vemos tanto nomes inventados, até bem feios, sendo registrados normalmente, por que essa arrogância cultural de se obrigar os índios a arranjarem nomes como Sebastião, Marina, Maria ou Joana, em substituição aos seus próprios, que têm toda uma simbologia? Eu mesma tenho duas filhas com nomes indígenas e ninguém me proibiu disso: a Moara, que em tupi guarani significa liberdade, e a Maiara, que se chama pequena indiazinha que veio do mar. Acho muito bonito o nome das minhas filhas. Gostaria que os índios também pudessem batizar os seus filhos, quando cristãos, ou registrá-los, quando não o são, com os nomes de sua aldeia.  

Bem, mas o que eu quero falar é com relação ao pedido de perdão feito por Dom José Edson, Bispo de Eunápolis, durante a missa de celebração dos 500 anos do Brasil, em que, na hora da homilia, quando se faz o pedido de perdão, ele aproveitou para dizer o seguinte: aproveito o momento de público, se a CNBB não o fizer, para pedir perdão pela ofensa por terem usado o irmão índio para dizer palavras grosseiras na celebração. Usaram o índio e não foi nossa diocese que fez isso. Essas foram as palavras do Bispo Dom José Edson Santana.  

Alias, parece-me que esse nome Santana não gosta mesmo de coisa de índio, porque o comandante Santana fez uma operação muito perversa contra os índios naquele dia. Lamento que o nosso Bispo tenha o mesmo sobrenome.  

Um outro aspecto que eu gostaria de registrar também é que a Carta que ele acha que foi grosseira e deselegante, referente à Missa dos 500 Anos, que foi lida pelo índio que estava acompanhado de mais ou menos 40 índios, além de achar que foram alguns Bispos do Cimi, no caso Dom Eriberto e os seus apoiadores, Dom Franco Masserdotti, Presidente do Cimi, e Dom Eriberto que estava apoiando no dia da marcha, bem como Dom Tomás Balduíno e que incitaram os índios a fazerem aquela manifestação. A própria CNBB admite que a manifestação foi um ato espontâneo dos índios.  

Faço questão de ler a carta porque não a considero uma ofensa e nem vejo razão para um pedido de desculpas por parte do Bispo ao representante do Papa que estava celebrando aquela missa.  

Vou ler a Carta do Índio na íntegra.  

Hoje, esse dia que podia ser um dia de alegria para todos nós. Vocês estão dentro da nossa casa. Estão dentro daquilo que é o nosso coração, do nosso povo, que é a terra, onde todos vocês estão pisando. Isso é nossa terra.  

Onde vocês estão pisando vocês têm que ter respeito, porque essa terra pertence a nós.  

Vocês, quando chegaram aqui, essa terra já era nossa. O que vocês fizeram com a gente?  

Nossos povos têm muitas histórias para contar, nossos povos nativos e donos desta terra, que vivem em harmonia com a natureza – Tupi, Xavante, Tapuia, Kaiapó, Pataxó e tantos outros.  

Séculos depois, estudos comprovam a teoria contada pelos anciões, de geração em geração dos povos, as verdades sábias que vocês não souberam respeitar e que hoje não querem respeitar. São mais de 40 mil anos em que germinaram mais de 990 povos com culturas, com línguas diferentes, mas apenas em 500 anos estes 999 povos foram reduzidos a menos de 220 povos. Mais de 6 milhões de índios foram reduzidos a apenas 350 mil.  

Quinhentos anos de sofrimento, de massacre, de exclusão, de preconceito, de exploração, de extermínio de nossos parentes, aculturamento, estupro de nossas mulheres, devastação de nossas terras, de nossas matas, que nos tomaram com a invasão.  

Hoje, querem afirmar a qualquer custo a mentira, a mentira do Descobrimento.  

Cravando em nossa terra uma cruz de metal, levando o nosso monumento – ele se referia ao monumento que foi destruído – que seria a resistência dos povos indígenas, símbolo da nossa resistência e do nosso povo.  

Impediram a nossa marcha. Um pelotão de choque. Tiros e bombas de gás.  

Com o nosso sangue comemoraram mais uma vez o Descobrimento.  

Com tudo isso não vão conseguir impedir nossa resistência. Cada vez somos mais numerosos, já somos quase 6 mil organizações indígenas em todo o Brasil.  

Resultado dessa organização: a Marcha; a Conferência Indígena 2000, que reuniu mais de 150 povos; teremos resultado a médio e longo prazo.  

A terra para nós é sagrada. Nela está a memória de nossos ancestrais, dizendo que clama por justiça. Por isso, exigimos demarcação de nossos territórios indígenas, o respeito às nossas culturas e às nossas diferenças, condições para sustentação, educação e punição aos responsáveis pelas agressões aos povos indígenas.  

Estamos de luto. Até quando?  

Vocês não se envergonham dessa memória que está na nossa alma, no nosso coração? Vamos recontá-la por justiça, terra e liberdade."  

Termina a carta assim.  

Não considero que esta carta tenha sido motivo de vergonha para o representante do Papa e motivo de um pedido de desculpas por parte da CNBB e nem Dom Franco Masserdotti. Por que não considero que seja motivo de vergonha? Primeiro porque, há um ano, o Papa fez um pedido de perdão pelos erros praticados pela Igreja à época da colonização. Isso já foi feito pelo Vaticano. Uma outra questão é que, no início da própria missa, a CNBB fez um pedido de perdão aos negros e aos índios pelos massacres que foram causados, inclusive com a participação da Igreja. A Conferência dos Bispos, que está reunida em Porto Seguro, ao final, tirará um documento oficial da CNBB, que será publicado, também pedindo perdão por esses 500 anos de massacre. De sorte que o índio foi ali apenas dizer: "Eis as razões pelas quais, Sua Eminência representante do Papa, a Igreja Católica, em Roma, pede perdão, e a Igreja brasileira também o faz." Essas são as razões.  

A Igreja Católica tem a tradição de conceder o perdão após a confissão do pecado. Como me parece que o pecado não foi devidamente confessado, o índio aproveitou a missa, confessou o pecado para que houvesse o perdão mediante a confissão. Portanto, devidamente respaldado do ponto de vista da homilia católica.  

Não quero fazer uma crítica ao Bispo de Eunápolis, sem usar do entendimento, porque as pessoas têm as suas posições, defendem posições diferentes, mas prefiro ficar do lado de Dom Tomás Balduíno, Dom Eriberto e Dom Franco Masserdotti, ou seja, da ala progressista da CNBB. Realmente, foi muito importante a presença desses religiosos no dia da marcha, senão teria sido um massacre maior. O Bispo Dom Franco foi preso e detido com os índios. Essa foi uma posição absolutamente correta, da qual eu não vejo motivo para qualquer desculpas ao representante do Papa, até porque a idéia de que foram os bispos que incitaram os índios àquela manifestação na missa oficial é preconceituosa, pois as pessoas continuam a acreditar que eles não são capazes. Para quem conhece o falar dos índios, é possível observar que está exatamente como falam, no ritmo lingüístico do seu português. Então, não é possível dizer que foram os bispos, os assessores do Cimi que fizeram a carta e criaram um constrangimento. Pelo contrário, deu-se autenticidade à missa, de tal forma que foi altamente correta a postura dos índios em ali comparecerem.  

Há um outro aspecto que desejo abordar. Se é para considerar grosseiro o que foi lido pelos índios... Se é assim, talvez o bispo de Eunápolis, Dom José Santana, tenha muita dificuldade em não considerar grosseiro o que foi feito por Jesus Cristo, porque Ele foi bem mais severo quando entrou no templo e viu os vendilhões a fazer um verdadeiro comércio. Jesus Cristo não usou de nenhuma educação com os sacerdotes principais da hierarquia judia. Entrou no Templo e usou palavras bem mais fortes do que as contidas na carta do índio.  

Passo a ler o trecho da Bíblia a que me refiro (Marcos 11,15-18):  

E vieram a Jerusalém; e Jesus, entrando no templo, começou a expulsar os que vendiam e compravam no templo; e derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas.  

E não consentia que ninguém levasse algum vaso pelo templo.  

E os ensinava, dizendo: Não está escrito: A minha casa será chamada por todas as nações casa de oração? Mas vós a tendes feito covil de ladrões.  

 

A atitude de Jesus Cristo foi bem mais forte que a dos índios. Se formos comparar a linguagem utilizada na carta do índio Matalauê com o que Jesus Cristo disse, verificaremos que a atitude d’Ele foi bem mais grosseira, no entendimento do Bispo, que deveria fazer essa comparação.  

Prossigo a leitura:  

E os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isso, buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam porque toda a multidão estava admirada acerca da sua doutrina.  

 

Nota-se que, da mesma forma que a multidão não reprimiu Jesus, a maioria dos que estavam presentes à missa não reprimiram o índio, aplaudiram-no efusivamente. Então, acredito que a mesma tolerância que tivemos com esse adorável, amável e radical Jesus Cristo devemos ter com o nosso índio, que foi lá e fez a confissão do pecado.

 

Ainda mais, discordo inteiramente do pedido de desculpas da CNBB. Muitas pessoas já devem estar informadas de que hoje sou evangélica. Mas declaro o meu respeito e a minha admiração pelos Bispos progressistas da CNBB, que, por intermédio da Teologia da Libertação, são responsáveis por eu estar agora nesta tribuna. O meu respeito por eles é indescritível. E quero dizer aqui, publicamente, que as ações de Dom Eriberto, de Dom Franco e de Dom Tomás Balduíno estão biblicamente respaldadas.  

No entanto, não sei se estão respaldados aqueles que ficaram do outro lado, porque a admoestação bíblica diz exatamente o seguinte em Jeremias, 23:  

Ai dos pastores que destróem e dispersam as ovelhas do meu pasto, diz o Senhor.  

Portanto, assim diz o Senhor, o Deus de Israel, acerca dos pastores que apascentam o meu povo: Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e não as visitastes; eis que visitarei sobre vós a maldade dos vossos corações, diz o Senhor.  

E eu mesmo recolherei o resto das minhas ovelhas, de todas as terras para onde as tiveres afugentado, e as farei voltar aos seus apriscos; e frutificarão e se multiplicarão.  

E levantarei sobre elas pastores que as apascentem, e nunca mais temerão, nem se assombrarão, e nem uma delas faltará, diz o Senhor.  

 

Reitero que Dom Eriberto, Dom Franco e Dom Tomás Balduíno estavam respaldados biblicamente. Deus diz que os pastores devem tomar conta das suas ovelhas. Um pastor nunca abandona as suas ovelhas, e deve, inclusive, dar a vida por elas. Foi o que Jesus Cristo fez.  

Entretanto, aqueles que afugentam as ovelhas, que as dispersam e, na hora do corre-corre, entram na toca e as deixam para o lobo – e naquele dia havia muitos lobos querendo pegar os índios – não sei se estão biblicamente respaldados.  

Concluo, dizendo o seguinte: Jesus Cristo, aquele radical cujo comportamento no templo talvez o Bispo de Eunápolis tivesse muita dificuldade em tolerar, assim como teve dificuldade de aceitar o que o índio fez durante a missa, disse o seguinte, em Mateus, 25, 36: "Estive na prisão, e fostes ver-me".  

O que os bispos fizeram? Foram visitar alguém que estava na prisão. Tínhamos cento e poucos índios presos por um cordão de policiais fortemente armados; os índios estavam no chão, humilhados, e não tinham outra saída. E é direito nosso fazermos o que está no nosso coração, principalmente se somos defensores de uma causa cristã e temos de honrá-la. Era o que os bispos da CNBB e os representantes do Cimi - Conselho Indigenista Missionário ali estavam fazendo.  

Refiro-me ainda ao fato de se considerar aquela carta grosseira. O livro do Frei Leonardo Boff, chamado Ecologia da Terra , contém o texto de uma carta do Cacique Seattle, o índio americano que fez um acerto de contas pela destruição provocada pelos brancos no meio ambiente, quando da ocupação de suas terras. Eu diria que a carta que o índio Matalauê leu durante a missa e que, acredito, emociona a todos nós, deveria ser considerada a nossa carta de acerto de contas desses 500 anos, assim como foi a carta do Cacique Seattle para os índios americanos.  

Em vez de pedirmos desculpas, deveríamos agradecer ao índio por ter ido à missa confessar esse pecado histórico, que está no nosso inconsciente coletivo, porque de alguma forma contribuímos para o massacre dos índios. Esses índios que, em três séculos, foram destruídos - três milhões de índios, um milhão a cada século. Isso dói muito. De cinco milhões de índios, restam apenas 350 mil; de quase mil idiomas indígenas, permanecem apenas duzentos e poucos. Isso é lamentável.  

Como ficamos pobres! Poderíamos ter uma riqueza, uma diversidade cultural fantástica! Lamentavelmente, Sr. Presidente, foi isso que fizemos.  

Por isso, confessar o pecado não constitui uma grosseria; ao contrário, significa um favor que fazemos a todos nós, porque em algum momento teremos que começar a reparar o erro praticado. E o reparo do erro praticado não se faz apenas com discurso retórico.  

O Congresso Nacional pode reparar o erro praticado, aprovando o Estatuto do Índio; o Congresso Nacional pode reparar o erro praticado, aprovando a Convenção 169; o Congresso Nacional pode reparar o erro praticado não permitindo àqueles que visam a terra dos índios praticar a mineração e a exploração madeireira, evitando, mediante a aprovação do estatuto, que isso fique flexibilizado.  

Ainda há tempo para os 350 mil índios existentes, dos cinco milhões que existiam. E, em vez de um pedido de perdão pela grosseria, deveríamos agradecer pela bela peça produzida, em termos históricos e de acerto de contas, pelo índio Matalauê, que pode ser considerado nosso Cacique Seattle brasileiro.  

Muito obrigada.  

 

J t


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/04/2000 - Página 8367