Discurso durante a 57ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

LEITURA DO TEXTO DA PROFESSORA MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, PUBLICADO NO JORNAL FOLHA DE S.PAULO, DO ULTIMO DOMINGO, INTITULADO "A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA".

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • LEITURA DO TEXTO DA PROFESSORA MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, PUBLICADO NO JORNAL FOLHA DE S.PAULO, DO ULTIMO DOMINGO, INTITULADO "A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA".
Publicação
Publicação no DSF de 12/05/2000 - Página 9790
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, DEPUTADO FEDERAL, ELOGIO, PARTICIPAÇÃO, POLITICA, CONTRIBUIÇÃO, ESTUDO, BUSCA, DESENVOLVIMENTO, DEMOCRACIA, PAIS.
  • LEITURA, TEXTO, AUTORIA, MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, DEPUTADO FEDERAL, ANALISE, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, MOVIMENTO TRABALHISTA, VALORIZAÇÃO, DEMOCRACIA.
  • LEITURA, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), AUTORIA, PAULO NOGUEIRA BATISTA TAVARES, ECONOMISTA, HOMENAGEM, MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, DEPUTADO FEDERAL, ELOGIO, FORMAÇÃO, PENSAMENTO, SETOR, ECONOMIA, PAIS.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT – SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Srª Presidente, Senadora Heloisa Helena, venho à tribuna para homenagear a Deputada Federal Maria da Conceição Tavares, professora ilustre que veio de Portugal e abraçou o Brasil como sua própria terra, tornando-se não apenas uma brasileira portuguesa, mas também uma cidadã do mundo. Tem ela nos brindado com maravilhosas reflexões e pronunciamentos, sendo um exemplo de garra extraordinária, pois está sempre estudando em profundidade os temas mais difíceis, sobretudo os da economia política e da história dos povos.  

Maria da Conceição Tavares, nestes últimos anos, tem-se destacado por estudar a maneira como os Estados Unidos vêm conseguindo expandir a sua hegemonia, o seu poder no planeta e como a saúde econômica e financeira dos Estados Unidos da América não tem tido como contrapartida, como outro lado da medalha, a saúde, do ponto de vista sobretudo da eqüidade, no resto do mundo, inclusive na América Latina e na nossa própria terra.  

Presto esta homenagem à professora Maria da Conceição Tavares porque fiquei triste de não poder estar presente em duas ocasiões para as quais fui convidado: na sexta-feira retrasada, inúmeros de seus amigos e familiares realizaram um jantar, no Cosme Velho – eu estava acompanhando Marta em atividades de campanha, em São Paulo; e na última segunda-feira, quando, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tantas pessoas, sobretudo da comunidade acadêmica e política, estiveram homenageando-a, e com a maior justiça.  

Quero transmitir aqui, primeiro, com a leitura de um texto da própria Maria da Conceição Tavares, publicado na Folha de S. Paulo do último domingo, e depois com a leitura de outro texto, do Professor Paulo Nogueira Batista Júnior, algumas reflexões sobre a trajetória tão importante desse exemplo de mulher. Certamente, nestas últimas décadas, ela tornou-se modelo da participação da mulher na vida de trabalho, na vida política, na vida do pensamento e no desenvolvimento do pensamento brasileiro.  

Justamente nesse artigo ela abordou o tema que V. Exª, Senadora Heloisa Helena, estava aqui tratando, dos movimentos sociais, de movimentos como o dos sem-terra e o Grito da Terra, trazendo uma reflexão extremamente interessante. Em "A construção da nação brasileira", Maria da Conceição diz que:  

O bloqueio sistemático à democratização da propriedade e o uso da terra pelos "donos do poder" é um dos pilares clássicos do autoritarismo brasileiro. Os "liberais progressistas" do século 19 foram sistematicamente derrotados; os reformistas do século 20 tiveram um destino pior, porque muitos deles pagaram com a cadeia, o exílio e até com a vida suas pretensões de democratização da propriedade. Mas uma parte deles esqueceu o que pregou [Quem será que esqueceu o que pregou? Terá sido o Presidente Fernando Henrique Cardoso? Vejamos se, porventura, aparece a sua personalidade neste artigo.] Os "intelectuais" que chegaram ao poder em 1995 continuam coniventes com a "ordem natural" das coisas, invocando mais uma vez como desculpa as "taras" do nosso passado colonial!  

Nossa peculiar "revolução burguesa" já completou 150 anos e nunca conseguiu cumprir a promessa da "revolução democrática" feita pelas elites liberais civis e militares, desde o patriarca da Independência até a Nova República. A violência privada e a dos poderes de Estado sempre foram utilizadas para auxiliar a acumulação primitiva, mercantil e patrimonialista dos senhores da terra e do capital.  

As nossas "revoluções políticas" foram em geral lideradas por personagens descontentes com a corrupção dos "políticos profissionais" e a situação do povo pobre. Os ex-rebeldes, porém, não resistiram ao apelo da restauração da ordem. Uma vez no poder, continuaram a obra de dominação que sempre reatualizou o passado por meio de sucessivos pactos de compromisso oligárquico celebrados em nome do futuro. [Veja que brilhante, Senadora Heloisa Helena!]  

É nesse sentido que a nação brasileira sempre foi uma invenção, ou das classes dominantes, ou dos intelectuais, ou dos próprios mitos e sonhos populares, e não um lugar de cidadania republicana.  

O "Festival do Descobrimento", promovido em Porto Seguro pelo atual governo, encerrou de forma exemplar essa "estória" e levou de roldão, ao mesmo tempo, a pretensão civilizatória de nossas elites cosmopolitas rumo à "modernidade". Essa síntese "pelo avesso" das três modernidades, a portuguesa, a inglesa e a norte-americana, deixou espantados até mesmo os porta-vozes dos modernizadores imperiais.  

Em contrapartida, os descendentes do povo colonizado original, os homens livres que sobreviveram à ordem escravocrata, os trabalhadores assalariados de um "mercado de trabalho" que nunca se universalizou e os sem-terra de um "mercado de terras" que nunca se implantou – a não ser como escândalo cartorial – ganharam finalmente o direito de lutar e morrer, sob refletores, por um mundo melhor.  

Quem tem olhos para ver percebe que a pregação por justiça social está se espalhando aos quatro ventos [felizmente]. Que os católicos de esquerda estejam com os sem-terra, que os presbiterianos estejam com os sem-carteira de trabalho, os sindicatos com a defesa de suas categorias, os professores contra a privatização do ensino, a maioria da opinião pública contra a corrupção, a desnacionalização e a privatização dos serviços públicos e todos contra um salário mínimo de fome são manifestações críticas de nossa heterogênea e espalhada injustiça social.  

Depois dos 50 anos em cinco de JK e dos 500 anos em cinco de FHC, afinal, o povão chegou à sua "modernidade". Por meio de mil estratégias de luta pelos seus direitos, parece estar disposto a tomar em suas mãos o destino da nação brasileira. Apesar disso, os senhores pré e pós-modernos que ocupam o poder executivo vêem nessas lutas e críticas um "risco institucional". Dizendo temer pela democracia (a das elites, naturalmente), resolveram endurecer.  

Desde que eu mesma descobri o Brasil, com apoio nas lições de meus mestres e nas inúmeras viagens por este imenso país, vejo um anseio crescente de cidadania popular, periodicamente reprimido. Que os intelectuais partidários dessas lutas queiram reconstruir a República, propor uma democracia radical ou o socialismo, pouco importa. O fundamental é que o povo brasileiro está tentando mais uma vez alargar o seu "território", em vez de aceitar permanecer na "gaiola" em que os poderosos de várias gerações o meteram –- coisa que continuam a fazer literalmente, quase sempre ao "arrepio da lei".  

Neste fim de século, nesta terra que não "conquistei" como meus antepassados, mas que adotei e pela qual fui adotada nas alegrias e nas dores [Que bonito, Maria da Conceição!], acho que estou assistindo não apenas à tragédia da desconstrução da economia e do Estado nacional, mas também a uma tentativa polivalente de construção da nação brasileira. Não será aquela que eu e meus mestres da "Formação" e das "Raízes" sonhamos [ Formação Econômica do Brasil , de Celso Furtado, e Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda], mas a possível para milhões e milhões de brasileiros que percorreram este país nos últimos 50 anos em caminhadas infindáveis, em migrações gigantescas, em lutas mortais pela sobrevivência.  

Esta é a nação que tenho visto construir e que nenhuma cadeia ou gaiola, ditadura ou "democracia" é capaz de parar. Apesar da arrogância e do autoritarismo dos atuais donos do poder, que converteram em hipocrisia e escárnio os seus valores "éticos" e "estéticos", os espectros do passado estão sendo combatidos pelas lutas populares e por suas representações públicas e políticas. O futuro já começou!  

 

Esse texto, Maria da Conceição Tavares, nos dá alegria, fé e vontade de prosseguir adiante nessa sua batalha. Tantos são os seus alunos, colegas e professores que, nestes últimos dias, lhe disseram palavras de conforto e homenagem. Dentre elas, estão as de um artigo que lerei, para que possamos ouvir o testemunho de quem sentou nos bancos para olhar, ouvir, deglutir e apreciar as aulas da Professora Maria da Conceição. É o artigo de Paulo Nogueira Batista Júnior de hoje, na Folha de S.Paulo , com o nome "Maria da Conceição Tavares":  

"Maria da Conceição Tavares está completando 70 anos e vem recebendo merecidas homenagens. A sua contribuição ao pensamento econômico brasileiro e latino-americano, como professora e pesquisadora, é reconhecida até mesmo por seus adversários ideológicos e políticos.  

Muitos reclamam do seu estilo agressivo e destemperado, que não combina com os hábitos da terra. Poucos percebem que Conceição Tavares é mais radical na forma do que no conteúdo. Ela lembra, nesse ponto, o revolucionário francês Georges Danton, um orador brilhante e incendiário, mas que defendeu, em diversos momentos cruciais da Revolução, posições relativamente moderadas."  

 

E quantas vezes Conceição foi, de fato, um tanto moderada, em que pese a toda a sua paixão extraordinária. Lembramos todos como ela, por exemplo, com tanto ardor, defendeu o Plano Cruzado durante o Governo José Sarney. Ela era uma voz ponderada, dizendo à esquerda que era necessário estar dando apoio àquele Governo naquele momento. Era Ministro Dilson Funaro.  

 

Aliás, na época da luta pela redemocratização do Brasil, Conceição foi também uma oradora extraordinária, talvez a maior do País. Empolgava e emocionava as platéias com a sua indignação e eloqüência.  

Reconheço que é praticamente impossível chegar perto dela sem se tornar, em algum momento, vítima do seu temperamento polêmico. Eu mesmo tive, ao longo dos anos, diversas divergências com ela, algumas ferozes.  

 

Normalmente, quando Maria da Conceição diverge de minha opinião, ela fala com carinho e com doçura, então nunca me senti como alguns de meus colegas, com quem ela foi extremamente dura.  

 

Com o passar do tempo, contudo, compreendo mais e mais a sua impaciência e seus arroubos. Ah, leitor, não é fácil conservar a calma em um país como o Brasil. Sob a capa da cordialidade e da boa educação, as camadas dirigentes brasileiras cometem e repetem as maiores barbaridades e iniqüidades. Conceição tem sido, ao longo das últimas décadas, uma voz incansável na denúncia desse comportamento.

 

Nunca vou me esquecer do meu primeiro contato pessoal com ela, como aluno ouvinte do seu curso de desenvolvimento econômico na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1976. Na época, eu era aluno de graduação em economia na PUC-RJ, mas assistia informalmente às suas aulas na Praia Vermelha. Eram verdadeiras "performances". Não me recordo de ter tido, em toda a minha vida, professor mais instigante e estimulante.  

Grande parte do ensino de economia se fazia – e ainda se faz – com base em livros-textos, em geral norte-americanos, que são na sua maioria de interesse e utilidade muito limitados. Nessas publicações, o que o aluno encontra é quase sempre uma versão empobrecida e simplificada da teoria e da política econômica. Infelizmente, muitos atravessam a graduação inteira, e alguns até a pós-graduação, sem freqüentar a obra dos autores originais.  

Conceição, ao contrário, colocava os jovens estudantes de economia em contato direto com os grandes autores de economia e história econômica [Ele aqui não cita, mas é para ler, de fato, Karl Marx, Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e tantos outros.] Por meio dela, começamos a conhecer ou entender melhor a obra de pensadores como Schumpeter, Kalecki, Gerschenkron, Steindl, Joan Robinson, Kaldor e diversos outros.  

O meu entusiasmo era tal que, sem estar matriculado e nem sequer fazer parte da sua universidade, cheguei a fazer uma apresentação oral sobre um dos temas do programa. O monitor da matéria, um jovem professor da UFRJ, indignou-se quando descobriu a irregularidade.  

Mas Conceição não se incomodou. Ficou, ao contrário, satisfeita de saber que um estudante de uma universidade concorrente, por puro interesse intelectual, se dispunha a atravessar a cidade para acompanhar e participar ativamente do seu curso.  

 

Faz-me isso lembrar o dia em que fui à Fundação Santo André dar uma aula, em 1976, e fiquei muito contente em ver ali, sentado, no 4º ano do Curso de Economia, também como um visitante não matriculado na Fundação, Luiz Inácio Lula da Silva, então Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Naquela época, não se chamava, ainda "ABC". Fiquei tão contente que até perguntei aos alunos de que valeria estarmos estudando economia se não estivéssemos dialogando com aqueles que poderiam ser objeto, nas suas conseqüências, das decisões que estávamos a tomar. Fiquei contente com sua presença, enquanto o professor ficou preocupadíssimo com a presença – imaginem! – de um presidente perigoso, segundo ele, na aula com os economistas.  

Mas aqui prossigo:  

Ela tem sucessores? Provavelmente, não. Como disse alguém, certa vez, em outro contexto, fenômenos não fazem escola.  

E Conceição Tavares é, indiscutivelmente, um fenômeno, uma figura totalmente fora do comum. Com a sua energia inesgotável, continuará conosco muitos anos, fustigando, incomodando e denunciando.  

Ela é uma que nunca esqueceu, nem esquecerá, a observação de Fernando Pessoa, poeta que ela tanto admira e gosta de citar: a função da palavra é "perturbar os espíritos" e "indisciplinar as almas".  

 

Ora, aqui está esse depoimento tão ilustrativo do impacto que Maria da Conceição Tavares tem tido no nosso País. Feliz é o Partido dos Trabalhadores por ter sido escolhido por ela. Depois de ter permanecido um tempo no MDB e no PMDB, a certa altura diagnosticou que seria no Partido dos Trabalhadores que ela poderia dar mais de si própria. E tanto ela nos tem dado e estimulado!  

Tenho participado de reuniões organizadas pelo Lula, paulatinamente, com a colaboração de Guido Mantega, que as coordena. E Maria Conceição vem do Rio de Janeiro, normalmente às sextas-feiras, duas vezes por mês, para dialogar conosco. Ela sabe ser muito firme.  

Quero aqui agradecer a Maria da Conceição Tavares porque, em diversas ocasiões, com muita camaradagem, às vezes assertividade, ela sabe chamar a atenção para alguns pontos para os quais nós economistas não podemos estar desapercebidos ou desatentos – inclusive ela me chamou a atenção em algumas ocasiões –, e sabe também dizer, com muita firmeza, quando acredita que alguém está com a razão.  

Um certo dia, em uma reunião dos economistas do PT, Maria da Conceição Tavares disse, com muita firmeza, que ninguém pode ousar ser contra o Programa de Garantia de Renda Mínima – afirmação que muito agradeço. Ela também soube compreender e abraçar essa proposição, dizendo, todavia, como é importante e necessário criarmos condições para que isso se torne uma realidade. E, obviamente, aí vem todo o seu ensinamento.  

Maria da Conceição Tavares, receba um abraço e um beijo, que você merece, de todos nós. Um beijão.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/05/2000 - Página 9790