Discurso durante a 65ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE CRIAÇÃO DA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE CRIAÇÃO DA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ.
Publicação
Publicação no DSF de 25/05/2000 - Página 10693
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, FUNDAÇÃO INSTITUTO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ), REGISTRO, HISTORIA, ENTIDADE, DEFESA, SAUDE PUBLICA, POLITICA SANITARIA, IMUNIZAÇÃO, PESQUISA CIENTIFICA.
  • HOMENAGEM, OSWALDO CRUZ, CIENTISTA, VULTO HISTORICO, ESPECIFICAÇÃO, COMBATE, FEBRE AMARELA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB – CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Senador Geraldo Melo, Sr. Presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Dr. Eloi de Souza Garcia, em nome de quem quero saudar todos os convidados aqui presentes, Srªs e Srs. Senadores, tenho um texto do qual deveria utilizar-me nesta sessão de homenagem ao centenário de fundação do Instituto Oswaldo Cruz, hoje, Fundação Oswaldo Cruz. No entanto, resolvi, ainda que em prejuízo da clareza e de alguma eventual omissão, falar de improviso, porque me é muito caro falar nesta oportunidade em que se celebra esse centenário. Falando com o coração tendemos a ser muito mais autênticos do que lendo um texto, ainda que possamos ser presas da emoção e, eventualmente, cometer algum equívoco ou deslize durante o pronunciamento.  

E a razão disso é muito simples: meu pai, como eu, foi médico; meu pai, como eu, foi Senador, e com ele aprendi, desde cedo, a ter um culto especial à figura de Oswaldo Cruz. Celebrar o centenário da Fundação Oswaldo Cruz não deixa de ser uma forma de celebrar esse nome tutelar da Ciência brasileira que foi Oswaldo Cruz.  

Em 1972, no dia 10 de agosto, pronunciava meu pai, então Senador Waldemar Alcântara, em uma sessão especial, um discurso em homenagem a Oswaldo Cruz. Ele abria esse pronunciamento, repetindo um texto do Conselho de Saúde Pública de Lisboa, de 1836:  

 

A saúde pública é uma das primeiras garantias dos povos, é uma das primeiras leis dos Estados e um dos primeiros deveres dos governos em todas as nações. Segurança, propriedade, liberdade são os três direitos naturais e individuais do cidadão, mas ele supõe, primeiro, a sua existência e conservação. E, para existirem e conservarem-se, é necessário manter-se a saúde pública. Por conseguinte, prévia a todas as garantias, a primeira garantia: a conservação individual. Prévio a todos os deveres dos Governos, o seu primeiro dever: a saúde pública.  

 

É um texto extremamente atual e que guarda uma relação muito próxima com a própria história de Oswaldo Cruz e da constituição do que é hoje a Fundação Oswaldo Cruz. Basta que lembremos o fato de que todo o trabalho de Oswaldo Cruz foi desenvolvido em um momento singular da História do Brasil. Não podemos analisar o trabalho que ele desenvolveu sem considerar o contexto no qual operou, que foi justamente o Governo Rodrigues Alves, um Governo empreendedor, de modernização e de renovações, no qual se procedeu a grande renovação urbana do Rio de Janeiro, com Pereira Passos, chamado o Hausmann brasileiro.  

Esse trabalho de Oswaldo Cruz deu-se exatamente nesse contexto, que, do ponto de vista sanitário, era extremamente adverso ao Brasil, ao Rio de Janeiro, aos nossos portos. E foi no porto de Santos que ele desenvolveu o seu primeiro trabalho, quando recém-chegado de um curso em Paris, justamente com o objetivo de apurar a epidemiologia da peste. A cidade de Santos era uma imundice, absolutamente consumida pela doença, pela febre amarela, pela peste, pela varíola.  

Nessa situação, Rodrigues Alves, com essa preocupação de modernizar e de renovar o Brasil, procura alguém que pudesse, à frente da então Diretoria de Saúde, desenvolver esse trabalho de saneamento do Rio de Janeiro. Os nossos portos estavam abertos do ponto de vista político, mas, na verdade, estavam fechados, porque eram absolutamente insalubres e, portanto, evitados pelos navios estrangeiros. Foi convidado Sales Guerra – grande amigo e, sobretudo, grande biógrafo de Oswaldo Cruz - para ocupar a Direção Nacional de Saúde. Ele disse ao Ministro que não iria aceitar o convite, mas que havia um médico jovem, um homem muito preparado e competente, que estava talhado para ocupar essa função. E, então, indica o nome de Oswaldo Cruz. O Ministro, perplexo, pergunta: "Quem é Oswaldo Cruz?".  

Rui Barbosa também utilizaria essa indagação para citar um fato: "Não é de admirar que os nossos homens de ciência nem sempre sejam conhecidos dos nossos homens de Estado". "Quem é Cuvier?" - contam haver perguntado Luiz Felipe, quando lhe deram notícia da morte do célebre naturalista, cujo gênio criara a Anatomia Comparada e a Paleontologia. Respondeu o cortesão de Sua Majestade: "Creio que Monsieur Cuvier é um desses senhores empregados no jardim das plantas". Dizem que Napoleão III também perguntou quem era Claude Bernard, quando o professor alemão lhe solicitava a honra de ser apresentado ao grande médico francês. "Claude Bernard? Quem é Claude Bernard?" – indagou ele. Responderam-lhe: "É o sábio mais eminente nos domínios de Vossa Majestade".  

Esse anonimato cedo iria se desfazer, porque Oswaldo Cruz lançou-se à tarefa gigantesca de sanear o Rio de Janeiro.  

Neste instante, é importante que façamos uma reflexão sobre essa conexão da ciência e da política ou da administração pública e da política, porque, se hoje estamos aqui celebrando o centenário da Fundação Oswaldo Cruz e evocando o seu nome, não podemos esquecer o quanto de calvário e de sofrimento ele teve de enfrentar para realizar aquela grande obra.  

Na época, inclusive, sob o argumento de assegurar a privacidade do domicílio e o total domínio sobre o nosso corpo, forças políticas de oposição ao Governo de Rodrigues Alves e o obscurantismo científico da época desencadearam uma formidável campanha contra Oswaldo Cruz. Essa campanha foi feita por intermédio dos órgãos de imprensa, por meio de algumas das páginas, do ponto de vista artístico, mais memoráveis da caricatura brasileira – Angelo Agostini, Revista Ilustrada, Revista Dom Quixote –, em que o sarcasmo, a ironia, tudo era utilizado de maneira brutal contra o trabalho que fazia Oswaldo Cruz, até porque a sua proposta de trabalho estava cientificamente assentada em providências absolutamente prosaicas: combater os mosquitos e os ratos, para evitar a febre amarela e a peste.  

E surgiu o epíteto do mata-mosquito, o comércio de ratos, toda uma situação que se prestava para que o talento desses caricaturistas se exercitasse nas páginas dos jornais e dessas revistas, desencadeando uma impiedosa campanha contra Oswaldo Cruz e contra o Governo. Felizmente, o Presidente Rodrigues Alves demonstrou uma grande firmeza e uma grande confiança no seu auxiliar. Embora conheçamos o grande lema de Oswaldo Cruz, que era "não esmorecer para não desmerecer", ele há de ter enfrentado também seus momentos de vacilação. Mas o Presidente Rodrigues Alves lhe dizia: "Vá em frente. Eu asseguro as condições". E Oswaldo Cruz afirmava: "A minha única resposta virá quando o Rio de Janeiro estiver livre da febre amarela". E isso, de fato, veio a acontecer.  

Isso deve servir para meditarmos sobre três questões. Primeiramente, devemos pensar na invocação de certos princípios de Direito, na época inspirado na doutrina positivista, que queriam desconhecer o interesse social e o risco coletivo, que impunham a adoção de medidas que terminaram aprovadas e aceitas, não sem grande luta e grande esforço, quais sejam a notificação compulsória das doenças, a detecção nos domicílios de focos de mosquitos, as fumigações e a vacina obrigatória. Esse foi um grande passo que se dava no Brasil para mostrar que o interesse coletivo, o interesse da sociedade, devia estar acima de eventuais invocações individualistas. Portanto, esse foi um passo importante.  

O outro aspecto que eu gostaria de mencionar – insisto neste ponto - é o papel da imprensa. Devemos ter a compreensão de que os fatos contemporâneos, muitas vezes, não permitem que seja feita a sua real, autêntica, verdadeira ou melhor interpretação. No caso, o pesquisador que se der esse trabalho verificará que aquela posição da imprensa do Rio de Janeiro era realmente quase unânime, antagonizando – e muito inspirada em políticos como Barata Ribeiro e Lauro Sodré – o Governo Rodrigues Alves e se opondo ao trabalho que vinha sendo desenvolvido por Oswaldo Cruz.  

Carlos Drumond de Andrade, escrevendo uma crônica sobre Oswaldo Cruz, citou esse período da imprensa do Rio de Janeiro e dos caricaturistas que trabalhavam nas revistas e nos jornais como um eclipse de percepção e um trabalho errado da caricatura, que, de qualquer maneira, é bom que se registre aqui, para se ter uma idéia dos padecimentos e das dificuldades que Oswaldo Cruz enfrentou e, particularmente, do equívoco em que a imprensa incorreu quando se lançou completamente no combate àquelas políticas por ele desenvolvidas.  

O antigo Instituto Soroterápico, que foi fundado em 1900 - depois Instituto Oswaldo Cruz, já em 1908, e hoje Fundação Oswaldo Cruz -, ao longo da sua história, tem, evidentemente, sofrido muitas transformações e enfrentado muitas vicissitudes. Muitos episódios da sua história retratam a grandeza dos homens ou também as suas misérias, as suas fraquezas.  

Por isso, quando comemoramos esses 100 anos, que coincidem, por felicidade, com os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, temos realmente que reconhecer que essa é uma grande instituição. É daquelas que merecem a nossa admiração, o nosso entusiasmo e o nosso apoio, porque não há nações sem heróis, e Oswaldo Cruz é seguramente um deles.  

No domingo à noite, em Manguinhos – sabe o Dr. Eloi –, assistíamos à palestra de um representante do Instituto Pasteur, de Paris. Ele exibiu um slide onde estavam quatro grandes nomes de cientistas estrangeiros que haviam passado pelo Instituto Pasteur e que eram merecedores da grande admiração de quantos fizeram e fazem aquela grande instituição: Koch, Metchnikoff, Lister e Oswaldo Cruz.  

Assim, quando a réplica da Nau Capitânia se desgoverna e não pode nem mesmo largar do porto, quando os episódios de 22 de abril, em Porto Seguro, deixam-nos constrangidos, encontramos consolo em instituições como a Fundação Instituto Oswaldo Cruz e em figuras como a desse nosso grande cientista.  

Sinto-me feliz, como Senador, em estar proferindo estas palavras, que devem servir de estímulo, de entusiasmo e de fortaleza para todos nós.  

As relações da ciência e dos cientistas com o Estado não são sempre fáceis; muitas vezes, dão-se com uma certa tensão. É natural que, ao longo da História, isso aconteça. O Senador Carlos Patrocínio, o primeiro signatário da proposição que determinou a realização desta Sessão Solene, lembrou-nos de um episódio de 1964, o chamado Massacre de Manguinhos, um dos mais tristes na história dessa instituição. Não é nada mais e nada menos do que uma decorrência dessas ligações políticas, dessas falibilidades e mesquinharias humanas. Todavia, quem ler atentamente os documentos e os depoimentos sobre esse episódio verificará que também havia uma discussão: se o Instituto Oswaldo Cruz deveria ou não, por exemplo, fabricar medicamentos. Qual seria a sua vocação, a sua destinação?

 

Hoje há doze unidades abrigadas sob o nome Fundação Oswaldo Cruz, como as que lidam com fabricação de imunobiológicos, com formação de recursos humanos, com o museu da vida, e tantas outras. Como conciliá-las?  

É evidente que, agora, quando essa Fundação completa 100 anos, temos que projetar o seu futuro. Qual é, realmente, a sua destinação? Quem conhece a história do Instituto Oswaldo Cruz sabe que ele praticamente marca o nascimento da ciência no Brasil. É a matriz da ciência no Brasil. Foi a primeira escola de Medicina Experimental no Brasil.  

Em 1920, no Rio de Janeiro e, em 1934, em São Paulo, surgiram as universidades. Agora precisamos repensar essa integração entre institutos de pesquisa e universidades. O instituto de pesquisa talvez seja aquele que assegura a continuidade da ciência ou de sua aplicação. Mas há, sem dúvida alguma, um ponto que merece a nossa reflexão e o nosso exame. Uma instituição com uma história tão bonita, tão cara ao Brasil e ao povo brasileiro, certamente merece de nós essa reflexão, para que possamos programar o seu futuro.  

O Governo Rodrigues Alves foi, como eu disse, um governo de grandes transformações no Brasil. Hoje, quer gostemos ou não, há os que acham que estamos passando por transformações fundadoras no Brasil, e há os que imaginam que estamos experimentando mudanças que não são benéficas ao interesse nacional. Não quero emitir aqui, porque não seria o caso, um juízo de valor, mas todos nós estamos de acordo que estamos vivendo grandes transformações no Brasil, que poderão ser – se bem-sucedidas – transformações fundadoras de um novo futuro para a nossa Nação. É no bojo dessas transformações, nesse contexto, que temos que pensar no futuro dessa instituição. Qual é a proposta que temos para essa instituição? E não me refiro só ao Governo, ao Ministério da Saúde, mas à própria sociedade brasileira.  

Portanto, no instante em que comemoramos esse centenário, vamos refletir sobre a história do Instituto Oswaldo Cruz e do seu patrono e fundador. Henrique de Beaurepaire Aragão, em seu trabalho Notícia Histórica sobre a Fundação do Instituto Oswaldo Cruz , de 1950, afirmou que, quaisquer que sejam as leis, os regulamentos, as vinculações administrativas ou os dirigentes do Instituto, há uma coisa que não pode mudar: a tradição da instituição. As instituições, como as pessoas, têm espírito, carisma, destino, futuro. Por isso, temos que zelar para que a Fundação Oswaldo Cruz não se perca nos caminhos que vêm por aí e continue a realizar o seu destino e a sua história.  

Por fim, eu não poderia deixar de concluir esse trabalho sem fazer uma última referência a essa figura de Oswaldo Cruz, transcrevendo aqui um texto de Fernando de Azevedo, esse grande brasileiro, que muito escreveu sobre a cultura do nosso País. Ele diz o seguinte:  

 

Por grandes que fossem os serviços de Oswaldo Cruz ao Brasil, vencendo a peste, a febre amarela e a malária, não foram superiores em seu valor científico ao trabalho que ele realizou nacionalizando a Medicina Experimental e criando, com a Fundação do Instituto de Manguinhos, não só o maior centro científico de pesquisas do País, mas toda uma escola brilhante de estudiosos e experimentadores nos vários ramos da ciência naquela instituição.  

 

É essa instituição que homenageamos hoje com uma grande reverência cívica.  

Muito obrigado. (Palmas!)  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/05/2000 - Página 10693