Discurso durante a 76ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE OS ASPECTOS HISTORICOS DO PAPEL-MOEDA E SUAS FUNÇÕES CULTURAIS E ECONOMICAS.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.:
  • REFLEXÃO SOBRE OS ASPECTOS HISTORICOS DO PAPEL-MOEDA E SUAS FUNÇÕES CULTURAIS E ECONOMICAS.
Publicação
Publicação no DSF de 13/06/2000 - Página 12831
Assunto
Outros > POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.
Indexação
  • ANALISE, PROCESSO, HISTORIA, CONSOLIDAÇÃO, MOEDA, ESPECIFICAÇÃO, INFLUENCIA, FORMAÇÃO, CULTURA, CRESCIMENTO ECONOMICO, SOCIEDADES, AMBITO INTERNACIONAL, POLITICA MONETARIA.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT – DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Sr as e Srs. Senadores, não falarei de tênis, que pratiquei muito pouco em minha vida, nem de basquete, nem de vôlei – que joguei no Atlético e no Minas –, nem de futebol, em que eu era péssimo, fui uma vez a um jogo, pago na porta, quando tinha oito anos de idade, nunca mais voltei.  

Muito anos depois, encontrei alguém que pensava exatamente igual a mim: Thomas Morus. Em 1516, ele escreveu um livro chamado Utopia, e nele todos os esportes são amadores. Muito estímulo aos esportes. Amadores!  

Hoje foi discutido aqui se se deve profissionalizar o esporte, isto é, tratá-lo como um mercado, pois ele se transformou nisso. Eu continuo firme em relação ao esporte, que é ótimo e imprescindível, mas deve ser amador; o profissionalismo distorce, corrompe-o.  

Quero, neste instante, abordar um outro tema.  

O que me trouxe, hoje, à tribuna foi um impulso de matar a saudade.  

Há uns seis meses, eu disse aqui que já havia feito aproximadamente 170 discursos, mas que ainda não havia começado a falar. Hoje, pretendo começar a falar e tenho que falar rápido. Vou falar sobre dinheiro. E não é fácil falar sobre dinheiro em 20 minutos.  

Em 1910, foi feita uma pesquisa, na França, sobre quantos trabalhos, livros e artigos havia sobre a moeda, e chegou-se a total de 5.100 publicações. De modo que é realmente impossível alguém dizer que entende do assunto, porque é tão vasto que torna muito difícil, no curso de uma vida, esgotar essa literatura imensa e crescente. Além do mais, se uma pessoa, por exemplo, envereda-se para o lado dos neoliberais, torna-se impossível entender o que é o dinheiro, as suas funções e a sua importância.  

Outro dia mesmo, eu estava lendo um trabalho de um desses neoliberais brasileiros, que foi presidente e diretor de banco. Ele dizia que as funções do dinheiro são três: reserva de valor, "valorímetro" e intermediário das trocas. O que esse neoliberal up-to-date está dizendo hoje é aquilo que o Aristóteles disse há 2400 anos. É a mesma coisa. Então, a moeda não mudou nesse tempo? Ele diz hoje, com a sua modernidade - ele que foi aos Estados Unidos para estudar, voltou e foi ser presidente e diretor do Banco Central e de outros bancos particulares -, que moeda é isso? Aquilo que o Aristóteles tinha visto nela? Não, não é, não. É por isso que existe essa irresponsabilidade.  

Em 1950, eu estava na Europa, estudando economia, quando começou-se a tratar daquilo que é a Euro, a moeda da União Européia, a moeda dos países europeus. Nos anos 50, começou a discussão. Agora, estamos vendo as dificuldades que ainda existem sobre o assunto e sobre a prática disto: o estabelecimento do Euro, de uma moeda que seja comum a toda a União Européia, a todo o Mercado Comum Europeu, a toda esta área que seria do Euro. E estamos aqui, na América Latina, com uma indiferença, um açodamento e uma displicência enorme para estudarmos o problema da criação de uma moeda para o Cone Sul, para os países da América Latina. O que surge é a hipótese ou a iniciativa sub-reptícia de adotarmos o dólar como moeda nacional.  

Concentrar-me-ei particularmente neste aspecto, ou seja, aquilo que retirou a Inglaterra e mais dois outros países da Europa desse grande acordo que institui o Euro, a moeda comum. Bem antes disso, Lênin, depois da Revolução de 1917, falava na necessidade urgente de se criarem os Estados Unidos da Europa.  

Já que veremos isso agora, pergunto como é possível? Quais são os obstáculos? Quais são os inconvenientes de se estabelecer uma moeda, no nosso caso, o dólar, para todos esses países, Argentina, Brasil, etc.?  

Nessa unidade monetária, no real, há uma grande e profunda diversidade. A unidade monetária não foi escolhida pelas economias, mas, sim, foi o produto de um processo histórico de lutas e de guerras que acabaram destruindo a estrutura antiga, medieval e feudal, instalando a unidade do exército, a unidade monetária, a unidade tributária no processo de formação dos Estados nacionais.  

Isso não é algo arbitrário. Na unidade monetária criada na França, por exemplo, o franco, subjaz a diversidade que existia na história francesa. Essa unidade contém uma diversidade, contém aquelas antigas tendências para a separação e para a desagregação da unidade. Contém, como toda a unidade, uma diversidade.  

De modo que, atualmente, vemos na América Latina, antes mesmo de se constituir uma moeda única, a briga, as disputas que existem entre o real e a unidade monetária argentina quando há uma modificação no câmbio em alguns desses países, quando uma diferença se pronuncia. A antiga diversidade se afirma a cada momento.  

Assim, a unidade é uma aparência. O interno, o oculto, o real é a diversidade, assim como supomos que a nossa sociedade é uma e que tem uma só classe social, quando, na realidade, ela é uma diversidade nesta aparente unidade. E todos os outros fenômenos são assim.  

A visão neoliberal é unidimensional, pobre, pois é a visão de que a moeda é apenas o instrumento que o velho Aristóteles denominava de catalática e catalítica. A forma de troca é a catalática, ou seja, proporcionar e ser intermediário das trocas; e a catalítica é a forma de instrumento de acumular riquezas.  

A moeda é muito mais do que isso. E quando os Estados nacionais foram impondo, em sua formação, pela força, pela dominação, uma moeda sobre as demais, aquelas que poderiam ser cunhadas nos feudos pelos senhores feudais ou aquelas que poderiam ser cunhadas pelos nobres em seus territórios, então a moeda nacional se impôs e permanece, subjaz nessa unidade, imposta pela força, a diversidade, a diferença que a constitui inicialmente.  

Pensamos que, por exemplo, o real é uma unidade. Não! Nessa unidade subjaz o diverso no uno, a diversidade na unidade. Por exemplo: numa sociedade como a brasileira existe uma moeda. É o vale lá da fazenda que os senhores, os donos da fazenda, escrevem no papel e pagam aos seus trabalhadores. Esse vale não pode circular, só vale até a venda, onde não há preço para serem escolhidas, as mercadorias têm seus preços determinados, exorbitantes, para ajudar no processo de exploração do camponês. De modo que aquele papel expressa o poder do dono da terra, do fazendeiro, em relação ao não-poder do agregado.  

Esse vale tem um raio de ação e não pode comprar centenas de coisas que não estão ali, naquela venda. É proibido de circular fora daquele espaço pequeno. Pois bem, ali temos uma forma monetária, nessa unidade.  

Outra moeda que existe nas economias modernas é, por exemplo, o papel-moeda que o Estado cria, emite à sua vontade, desde alguns tempos para cá, independentemente de ouro, de prata, de qualquer coisa.  

Ao perceber essa diversidade existente na moeda - a que me vou referir o mais rápido possível -, coloquei uma cor em cada uma dessas formas monetárias específicas. O vale da fazenda tem uma cor, digamos, lilás. Quando o Estado imprime dinheiro, este é vermelho, tem a cor da guerra, a cor do poder concentrado nos Poderes Executivos modernos, nos poderes despóticos e autoritários.  

O dinheiro do Estado não serve como meio de pagamento de bens de consumo ou de bens de produção. Como Estado, ele não concorre com os capitalistas e, portanto, não compra meios de produção para estabelecer indústrias. Ao contrário, usa esse dinheiro para fazer guerra, para comprar aquilo que chamo de não-mercadoria - produtos bélicos, espaciais, destrutivos, inconsumíveis - ou para pagar funcionários públicos também improdutivos. Esse dinheiro é vermelho. Não tenho tempo de mostrar por que ele é vermelho, de acordo com a própria direita hegeliana. O Poder Estatal do Dinheiro é um livro escrito por um dos mais eminentes representantes da direita hegeliana.  

O funcionário público pensa que recebe um dinheiro igual ao que está nas mãos do capitalista. Não! Nas mãos do camponês o dinheiro é uma coisa, nas mãos do Estado é outra, entra em outras relações, tem outra área de circulação, tem outro poder de compra, diferente daquele que tem, por exemplo, o funcionário público. É o dinheiro estatal que vai para as mãos do funcionário público, e lá esse dinheiro é meramente instrumento de compra de meios de consumo. O funcionário público não pode comprar meios de produção, não pode comprar produtos bélicos e espaciais, como pode o Estado, com o seu dinheiro vermelho. O funcionário público recebe um dinheiro que, no fundo, depois será cartão de crédito, crédito ao consumo, porque o funcionário público está relacionado, no todo, apenas como consumidor.  

Assim, o dinheiro nas mãos dele, nessas relações sociais, tem determinações diferentes daquelas outras somas que a unidade monetária esconde. Não conseguimos enxergar a pluralidade vista um dia por Newton, ao perceber que o branco é a soma de sete cores. As sete cores do disco, ao adquirir movimento, transformam-se em branco. Então, branco é a cor do capital, pois este tem o poder de estar em todos os lugares, de entrar em todas as relações e de fazer tudo. Só o capital é branco, porque é a soma de todos os poderes que as demais colorações possuem.  

Contudo, o capital nacional não é tão branco assim. É meio cinza ou mulato. E, quando põe a cabeça para fora na circulação mundial, muitas vezes, ele que é branco, é rejeitado. O real, nossa moeda nacional, não é aceito em vários países do mundo. Nosso capital não tem poder de compra generalizado no mundo.  

Quem é realmente branco é o dólar. Este, sim, tem o poder universal. É a moeda internacional, a moeda mundial, que possui todos os poderes, está em todos os lugares e pode comprar tudo. Como já dizia Cristóvão Colombo, numa carta das Antilhas: "Dinheiro é Deus, está em todos os lugares, pode adquirir tudo nesta vida e um lugar também na outra vida."  

Desse modo, percebemos que o dinheiro que está nas mãos do funcionário público é azul. Ele não custou realmente muito trabalho, por isso os funcionários são maltratados como o são neste atual Governo, por exemplo, que não percebe a nossa inserção, como funcionários, na sociedade. Nós somos consumidores, ajudamos o capitalismo, devido à sua insuficiência de consumo, o capitalismo que empobrece e põe na mão dos trabalhadores esse dinheiro subalterno. Pegue um dinheiro que recebe um trabalhador na construção civil. É um dinheiro sujo. Nesse dinheiro que está no bolso do trabalhador, dificilmente poderia haver uma nota de R$100,00. Ganhando pouco mais de R$100,00 por mês, ele não pode ter essa nota. No bolso do trabalhador, existem notas de R$1,00 ou de R$5,00, um dinheiro que circula muito, por ser usado por muita gente. Não é um dinheiro que fica em reserva, como acontece com o dinheiro dos ricos. Então, ele se desgasta, é um dinheiro feio, tem a cara do trabalhador maltratado e tem um poder limitado. Compra um pouco mais do que aquele vale do camponês na fazenda, mas obviamente ele não pode comprar um carro, uma geladeira, um televisor. Só pode comprar uma cesta modesta, que compõe os meios de consumo do operário, para refazer e reproduzir sua força de trabalho. Não pode fazer mais do que isso!

 

Sr. Presidente, cito um antropólogo da Economia que escreveu um livro chamado Racionalidade e Irracionalidade na Economia . Ele mostra que na Nigéria só há dois dinheiros. A moeda tiv, que circula nos arrabaldes, na periferia, não pode comprar produtos sagrados, necessários para que se tenha acesso à profissão de sacerdote, por exemplo. Portanto, a moeda tiv exclui os que nasceram na periferia do acesso ao cargo de sacerdote, pois não compra bens sacerdotais. Só os que nasceram no centro têm esse poder.  

Por conseguinte, toda a falta de unidade, toda a exclusão social está escondida na moeda. Quando vem a crise, obviamente a unidade monetária sofre vários problemas, pois se projeta nela uma série de contradições que existem e subjazem nessa sociedade, que esconde e que oculta essa diversidade para fingir que somos únicos, unos, tal como a nossa moeda o é.  

Lembro que, se Cristóvão Colombo disse que a moeda é Deus, pois está em todos os lugares e compra tudo, Karl Marx disse que a moeda é merda: " money is not dirt, but dirt may be money ". Ou seja, a merda pode ser dinheiro.  

E Sigmund Freud disse que o símbolo universal do dinheiro são as fezes. Disse ele que o dinheiro está ligado à fase anal do desenvolvimento da personalidade. Por isso mesmo, o senhor cheio de dinheiro, o banqueiro é desenhado com uma barriga enorme, pois o produto de sua alimentação farta e copiosa empoça-se na poupança intestina.  

Conheci um mineiro que mandou fazer em sua casa no Espírito Santo um cofre na parede do banheiro, e seu intestino só funcionava – ele só soltava o equivalente fezes – quando via preso no cofre o dinheiro.  

Assim, convenci-me, ao longo da vida, de que tanto Freud quanto Marx têm razão: dinheiro é isso. E nós, nessa sociedade fetichista e enlouquecida, vivemos atrás de acumular essas coisas que não sabemos mais o que representam na realidade.  

É só isso, Sr. Presidente.  

Muito obrigado pela paciência.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/06/2000 - Página 12831