Discurso durante a 84ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE O EPISODIO DO SEQUESTRO DO ONIBUS DA LINHA 174, NO RIO DE JANEIRO.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE O EPISODIO DO SEQUESTRO DO ONIBUS DA LINHA 174, NO RIO DE JANEIRO.
Publicação
Publicação no DSF de 28/06/2000 - Página 13921
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, GRAVIDADE, VIOLENCIA, BRASIL, COMENTARIO, ASSALTO, ONIBUS, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
  • INEFICACIA, GOVERNO, COMBATE, DESEMPREGO, IMPUNIDADE, CRITICA, MODELO, PRIVATIZAÇÃO, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, OMISSÃO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, EXCLUSÃO, POPULAÇÃO CARENTE, PROVOCAÇÃO, VIOLENCIA, NECESSIDADE, REORGANIZAÇÃO, DEBATE, SOCIEDADE, PROGRAMA, DESENVOLVIMENTO NACIONAL.

O SR. AMIR LANDO (PMDB – RO) – Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o País se deparou, recentemente, ao vivo e a cores, com o retrato mais cruel da realidade brasileira nos dias atuais. Aquele sobrevivente da chacina da Candelária não tinha como refém, apenas, uma dezena de passageiros, caras de assombro, encurralados na parte do fundo de um ônibus que não chegou ao seu destino.  

É que tal acontecimento revela muito mais que meras coincidências. Como ponto final, o coletivo, nas cores azul e branco, da Viação Amigos Unidos, estampava, exatamente, "Central do Brasil". O condutor, no auge da tensão, saiu por uma janela. O cobrador e alguns passageiros mais espertos, idem. A professora arrastada pelos cabelos saíra do Nordeste. Preferira a favela da grande cidade à miséria do sertão. Ensinava a difícil arte de viver. Naquele ônibus seqüestrado estávamos todos nós, pagadores de passagens, indefesos, reféns, protegidos por um Estado que, do lado de fora, perdeu a mira. Aquele nibus é o retrato mais fiel do Brasil, hoje.  

Os "Amigos Unidos" são uma elite que se arvora como concessionários privilegiados de um país onde mais de 50 milhões de "passageiros" são pingentes. Ou, não tendo como pagar as suas passagens, mesmo que de curto trajeto, vivem, ou viajam, "de favor". Os condutores, apesar de senhores do acelerador e do freio, limitam-se a direções pré-determinadas. Os cobradores mostram-se intransigentes, porque são prestadores de contas. Neste mesmo país, milhões são migrantes fugitivos da fome, também encurralados na parte de trás, trêmulos de frio e de desencanto. Viajam pelas ruas, estacionam sob pontes e viadutos, são alvo, igualmente, da mira da polícia e de bandidos. Não fosse a mídia, não se saberia de que arma teria saído o projétil, não importa se eles se chamem Geísas ou Josinos. Se no Jardim Botânico ou na Favela Naval.  

O tal ônibus fazia a linha 174. "Como agente normativo da atividade econômica, o estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado". Este é o inteiro teor do artigo de mesmo número da Constituição brasileira. Poderia ser o primeiro, ou outro qualquer. "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa...". Como linhas que não chegam ao seu destino, a mesma mídia tem estampado, nos últimos tempos, que se tratam de ditames e de fundamentos constitucionais também seqüestrados do povo brasileiro.  

O desemprego atinge índices alarmantes, sem que o Estado detenha instrumentos capazes de estimular a geração de ocupações produtivas. Apenas na Grande São Paulo, são mais de 1,7 milhão os seqüestrados em seu direito à cidadania plena. A concentração da propriedade rural é equivalente à da população nas cidades, tendo como resultante o vazio rural e o inchaço urbano. E, daí, a violência dos grandes centros e a falta de condições mínimas de sobrevivência de milhões de perambulantes, passageiros da agonia sob a mira do soldado e do celerado.  

O Estado brasileiro perdeu a sua capacidade de reverter a curva ascendente do desemprego. Perdeu, igualmente, a capacidade de definir os horizontes dos investimentos privados, como determina o tal art. 174 da Constituição. É bem verdade que ele sempre foi privatizado. Mas, pelo capital produtivo nacional, mais ligado a interesses brasileiros e que aplicavam, aqui, os resultados da sua atividade. Com um Estado atuante na atividade produtiva, o Brasil cresceu mais que a média mundial durante cinco décadas, gerando os empregos que minimizavam a violência no campo e nas cidades. Ao contrário, nas últimas duas décadas, quando o Estado se retirou do cenário econômico, o País não correspondeu, em termos de crescimento de sua atividade produtiva, à entrada dos novos contingentes populacionais no mercado de trabalho. Sem crescer o necessário, o desemprego feriu de morte a cidadania, gerou o desespero e ensejou a violência. Portanto, o fato do Estado se posicionar do lado de fora, vai muito além de uma dúzia de soldados mal preparados e sem comando.  

Com as privatizações nos moldes atuais, a economia brasileira atinge índices de desnacionalização alarmantes, causando arranhões na soberania nacional. As atividades mais estratégicas já se encontram ou estão a caminho de mãos multinacionais, longe dos interesses locais e que remetem, para fora, os lucros aqui gerados e importam, de lá, os empregos que nos faltam. As administrações das estatais privatizadas mais se parecem torres de Babel, diferentes idiomas que se entendem no esperanto do lucro. Sem o sistema elétrico e, conseqüentemente, as águas, o sistema de telecomunicações e as nossas maiores empresas alavancadoras de novos investimentos, pode-se dizer que, definitivamente, o Brasil já não é tão nosso. É o Estado brasileiro fora do coletivo.  

Mas, esse mesmo Estado, mantém os seus cobradores e os seus passageiros mais espertos. A dívida pública líquida brasileira decuplicou nos últimos cinco anos e ultrapassa a casa do meio trilhão. Apenas em títulos públicos federais, sobre os quais incidem juros a taxas astronômicas, já são R$ 498,3 bilhões. E, assim, o Governo Federal passou a se constituir no cobrador oficial, ou no mero administrador das "catracas", cuja função primordial é a de receber dos "passageiros" e prestar contas para os tais "Amigos Unidos".  

Portanto, já não são mais nossos os coletivos. Apenas, pagamos passagem.  

O País tornou-se refém dos credores. Como resgate, lhe é exigido o seu melhor patrimônio. E, apesar de já terem sido entregues a Companhia Vale do Rio Doce, parte substancial do sistema elétrico, o sistema de telecomunicações, os setores siderúrgico, petroquímico e de fertilizantes, contraditoriamente, a liberdade parece, cada vez mais, distante. É que ainda se exige igual entrega da Petrobrás, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, Furnas, Chesf, Tucuruí e o que ainda resta do sistema elétrico. Contraditoriamente, quanto mais se paga pelo resgate, maior o volume da dívida.  

Há sete anos, fui o Relator de uma Comissão Parlamentar de Inquérito instalada para investigar as privatizações no Brasil, cujo relatório mais poderia intitular-se "crônica de um seqüestro anunciado". Ali se provou que todos os objetivos preconizados para o programa de privatizações, incluindo-se a geração de empregos e a priorização de ações de cunho social, foram substituídos em nome do resgate da dívida pública, mesmo que, naquela época, os montantes fossem significativamente menores que os atuais. Pois bem, os valores atingidos nos leilões, mesmo que aviltados, seriam suficientes para o pagamento dos débitos de então. Mesmo assim, sem que se gerasse empregos e sem melhoria de qualidade de vida da população, tal dívida se avolumou, acompanhada da exigência de novos resgates.  

Os episódios que se sucederam à CPI nada mais são que um adendo ao relatório, ou um mesmo texto com tempos verbais modificados do futuro para o presente, tornando afirmações o que, ali, se colocou como projeções. Os mesmos vícios, as mesmas avaliações subestimadas, os mesmos conchavos para repartir o Estado, como se ele fosse uma "ação entre amigos unidos".  

Como nos grandes seqüestros, sem que isso implique, necessariamente, na integridade do refém, abre-se mão de princípios fundamentais do direito. E, aí, entram em cena os tais conchavos, as gravações telefônicas, a "lei de Gerson". Erige-se, então, um país à margem do direito, uma terra do mais forte, do mais esperto, do mais rápido no gatilho.  

Para o pagamento deste mesmo resgate, cria-se, também, uma economia à parte, marginal, diferente daquela maximizadora de resultados e pregada nos livros mais elementares. Uma economia igualmente do mais forte, do mais esperto, do mais rápido no gatilho.  

E, é assim, também, com a sociologia, a antropologia, a medicina, a história, a geografia. Um país à parte, do mais forte, do mais esperto, do mais rápido no gatilho.  

Em nome da lei da sobrevivência, partilha-se o que resta do que deveria ser público. Mesmo que sejam as ruas, as praças, os logradouros. É o "flanelinha" que, refém da fome, demarca o seu espaço no quarteirão mais movimentado. É o motorista de táxi que, refém da crise, espanta o concorrente do ponto mais prestigiado. É o travesti que, refém do desdém, enxota a prostituta que lhe toma a esquina mais (ou menos) iluminada. É o mais forte, o mais esperto, o mais rápido no gatilho cobrando passagem de quem tem o direito constitucional de ir e vir.  

Um país marginal, um ônibus clandestino.  

E, aí, instala-se o culto ao combate à violência, não importa se ela própria seja o antídoto. Para o historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista à Folha de São Paulo em 26 de junho último, o combate à violência pode gerar a repressão e transformar-se em mote para o controle político. Para ele, "há um certo clamor pela repressão que pode vir até das classes baixas, como aconteceu no Peru, onde houve uma situação de violência muito difundida, com o envolvimento de movimentos guerrilheiros e do tráfico. Neste cenário surgiu Fujimori, um desconhecido que criou um regime autoritário, chegou a suspender o Congresso, e agora vai para o seu terceiro mandato". Depois de citar outros exemplos, como os da Venezuela e da Colômbia, o Prof. Murilo enfatiza: "O que temos hoje é uma situação na qual é possível um aumento da irritação da população e um aumento das manifestações. Do outro lado, podemos, então, ter um aumento da repressão. O verdadeiro milagre brasileiro é a tolerância que a população tem da situação de injustiça. O fato de que não tenhamos tido reações mais fortes contra a desigualdade, esse é o milagre brasileiro. O potencial de confronto está aí. Está na hora de acabar com o mito da população pacífica. A violência expandida pelo país mostra de que não se trata de uma população cordial. Nossas cidades têm índices altíssimos de violência. Nos últimos 20 anos, 500 mil pessoas foram mortas. Mudanças sociais importantes, como a enorme migração rural nos anos 70 e 80, acopladas com o desemprego e o tráfico, criaram as condições para gerar essa característica violenta. Não há dúvida de que há certos traços na população brasileira que podem ser chamados de cordiais, de alegres, mas essa cordialidade se exerce quase que exclusivamente no domínio da família e dos amigos. No domínio civil, na relação com o outro, ela desaparece e se torna uma intolerância, uma violência, um grande desprezo pela vida humana".

 

É a tal guerra civil não declarada. E, então, instaura-se o "salve-se quem puder". Cada um procura escapar pela "janela" mais próxima, pela força, pela astúcia ou por uma vantagem qualquer.  

Uma das passageiras da linha 174 diz ter oferecido dinheiro ao seqüestrador, em troca da liberdade. Que diferença faz essa atitude de desespero, abrindo mão, talvez, do leite do filho ou do sagrado pão de cada dia, daquela da propina que, muitas vezes, azeita o direito mais elementar? O dinheiro é público, consta do Orçamento da União, votado e aprovado por legítimos representantes do povo. O funcionário é público, contratado para servir ao bem comum. Mas, mesmo assim, exige-se, "pedágios" para que tais recursos sejam, efetivamente, colocados à disposição do público. É que os recursos públicos, no País, são tratados como se fossem de propriedade privada e seletiva.  

O que dizer, portanto, da corrupção que campeia no gasto público, mesmo que isso signifique reféns da dor nos hospitais, do escuro do analfabetismo e da guerra civil não declarada das grandes cidades? O impeachment de um Presidente da República e a cassação de parlamentares não foram suficientes para estancar a sangria de recursos no ralo de um Estado corrupto. Alie-se a tudo isso a falsificação de remédios, o escândalo dos precatórios, a compra de votos, a ajuda fraudulenta a bancos falidos, o desvio de dinheiro público na construção de sedes suntuosas, entre outros.  

Não há mais Estado. Não há mais Governo. E o capítulo final do seqüestro que indignou o País é emblemático na demonstração do que significa um Estado desmontado e um comando desorganizado. Não há estratégia, as armas utilizadas não são, necessariamente, as mais apropriadas.  

Para se ter uma idéia da desconfiança da população nas suas instituições públicas, pesquisa da Datafolha dá conta de que dois terços dos brasileiros têm mais medo do que confiança na sua polícia. Percentual ainda maior acredita no envolvimento do chamado aparato de segurança com a corrupção e o crime organizado.  

Para que se resgate o País, portanto, é necessário que se remonte o Estado e se reorganize o Governo para a implantação de um amplo projeto de desenvolvimento nacional, discutido com todos os segmentos da sociedade brasileira. Não haverá necessidade de um novo aparato legal. Basta que se respeite e se cumpra os ditames existentes, se resgate a legitimidade do governo e se coloque o Estado a serviço dos interesses nacionais, priorizando o mercado interno, a redistribuição de renda e a melhoria das condições de vida da população.  

Há que se revogar a prática da lei dos mais fortes, dos mais espertos e dos mais rápidos no gatilho e resgatar a confiança da população nas suas instituições, tão no rodapé das pesquisas de opinião nos últimos tempos, por uma distribuição de renda mais igualitária e socialmente mais justa. Não há porque asfixiar o seqüestrador, após a morte da refém. É preciso que se crie condições para que não hajam, nem seqüestradores, nem reféns.  

Um país não pode manter-se, permanentemente, tal como um ônibus seqüestrado. Muito menos desgovernado.  

Era o que eu tinha a dizer.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/06/2000 - Página 13921