Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

NECESSIDADE DE INSTAURAR DEBATE SERIO E DEMOCRATICO COM VISTAS A CRIAÇÃO IMEDIATA DO COMITE NACIONAL CONSULTIVO DE BIOETICA NO AMBITO DO CONGRESSO NACIONAL.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • NECESSIDADE DE INSTAURAR DEBATE SERIO E DEMOCRATICO COM VISTAS A CRIAÇÃO IMEDIATA DO COMITE NACIONAL CONSULTIVO DE BIOETICA NO AMBITO DO CONGRESSO NACIONAL.
Publicação
Publicação no DSF de 25/02/1999 - Página 3573
Assunto
Outros > POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • DEFESA, NECESSIDADE, INSTAURAÇÃO, DEBATE, BUSCA, ACORDO, CRIAÇÃO, COMITE NACIONAL, ETICA, BIOLOGIA, AMBITO, CONGRESSO NACIONAL, CONTROLE, ORIENTAÇÃO, CONDUTA, DECISÃO, RELACIONAMENTO, MEDICINA, BIOTECNOLOGIA, PRESERVAÇÃO, VIDA, REPRODUÇÃO HUMANA.
  • SOLICITAÇÃO, CONSULTORIA, SENADO, ESTUDO TECNICO, ELABORAÇÃO, PROJETO DE LEI, CRIAÇÃO, COMITE NACIONAL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB – CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, subo a esta tribuna hoje com o firme propósito de sensibilizar Vossas Excelências a respeito de algo que julgo da maior relevância. Trata-se da urgência em se instalar de imediato o Comitê Nacional Consultivo de Bioética a partir de projeto de iniciativa do próprio Senado Federal. Antes, porém, da elaboração de tal projeto, convém que encetemos aqui um diálogo aberto, desarmado, profundo e sobejamente sensível sobre o tema da bioética, para que saibamos com exatidão a que fins serviria tal Comitê e sob que argumentos da realidade brasileira se justificaria. Para tanto, vale a pena passarmos em revista o conceito de bioética, sua aplicação no contexto brasileiro e, em seguida, visitarmos alguns modelos de comitês já estruturados no resto do mundo.  

Na superfície, a bioética ainda soa para alguns como algo intangivelmente sofisticado e, para outros, estranhamente supérfluo dentro do contexto de quase indigência em que a saúde brasileira se encontra. Os meios de comunicação de massa chegam a comentar, por vezes, que se trata de assunto de competência exclusiva dos países do Atlântico Norte. Alegam que o País não acumula conhecimento suficiente para implementar programas avançados de pesquisa na área da biotecnologia, nem sequer alimenta pretensões hegemônicas de controle sobre a vida, que porventura cheguem a atentar contra a dignidade física e moral dos brasileiros.  

Mais ainda, num raciocínio rasteiro e tipicamente colonialista, sociedade e mídia confundem a realidade da ovelha Dolly, por exemplo, com fragmentos do "maravilhoso" mundo da engenharia genética, decalcado da narrativa ficcional de Blade Runner, filme antológico de Ridley Scott, nos anos 80. Visualizam a clonagem como fenômeno de um futuro longínquo no tempo e no espaço, sem sequer se perguntarem se, por detrás da fantástica tecnologia da reprodução artificial, não se esconderiam pressupostos e visões de mundo indissociavelmente autoritários, segregacionistas e – por que não? – fascistas.  

Não é à toa, portanto, que o Projeto Genoma Humano, que funciona como verdadeiro laboratório experimental e caixa-forte dos genes humanos, é objeto de controvérsias incontáveis nos países desenvolvidos, envolvendo acima de tudo acirradas discussões éticas sobre a real finalidade e o destino de um banco de "dados" tão precioso e poderosamente manipulável rumo à eugenia. Nos Estados Unidos, quem se responsabiliza pela articulação e mobilização do debate nacional é o próprio National Bioethics Advisory Commission, que não casualmente funciona com avantajada autonomia ainda que institucionalmente vinculado ao Congresso Nacional de lá. Enquanto isso, para enfrentar a mesma questão no Brasil, ainda nos deparamos com a arcaica resistência das elites que tão-somente enxergam modernização pelo filtro do mimetismo do consumo importado. E nada mais.  

Nessa linha, depreciam a bioética como se ela se ocupasse exclusivamente da censura moral a discursos e práticas comprometidas indiscriminadamente com a reprodução tecnológica da espécie humana. Esquecem-se de que, antes de tudo, compete a bioética preservar algum sentido moralmente fundador e socialmente agregador que justifique e forneça validade a experimentações científicas e tratamentos médicos com base em tecnologias que ameaçam o desmonte dos conceitos de inviolabilidade, singularidade e integridade do corpo humano. Em suma, no Brasil, sociedade e mídia ainda se comportam como se pairasse sobre nossas cabeças uma única ética dominante e soberana – de certo, sob inspiração utilitarista –, naturalmente invocada pela modernidade, que, a cada novo avanço biotecnológico, orientasse condutas e decisões contra os eventuais dilemas da moral sobre o conceito de vida e sua supressão.  

Ora, recuso-me a fazer coro a vozes tão tacanhamente desinformadas e indiferentes – para dizer o mínimo. Pois convicto estou de que é hora de o Brasil despertar sua consciência para a gravidade do tema. A diversidade de nossa cultura, nossas discrepâncias econômicas e as graves injustiças sociais denunciam algo de muito complexo no processo de consolidação de uma ética nacional. Não sou eu que anuncio a gravidade, mas sim o próprio Ministério da Saúde, que busca suprir paliativamente a lacuna ética da biotecnologia com a implantação de pequenos comitês nos âmbitos das universidades.  

A julgar pelos relatórios e pareceres produzidos por esses Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) – coordenados pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) –, o quadro brasileiro nos hospitais, clínicas, laboratórios e centros de pesquisa dispensa elogios efusivos ao descaso, à negligência, ao preconceito, ao autoritarismo, à banalização e à mercantilização do corpo humano. Do aborto à eutanásia, do transplante de órgãos à fertilização in vitro, da clonagem humana à produção artificial de alimentos, da UTI aos programas de combate a AIDS, em todos esses casos não há como negar o registro da mais desrespeitosa e intolerável improvisação ética no que concerne ao acatamento da consciência, dos valores, dos princípios, da necessidade e da vontade do indivíduo, que se vê paciente nas clínicas, que se vê cobaia ou informante no ambiente de pesquisa. E, obviamente, quando pensamos em improvisação, devemos necessariamente associar seu significado a um conjunto de condutas autoritárias por quem detém o poder de decidir e manipular o destino dos mesmos indivíduos, pacientes, e informantes.  

É evidente, devo confessar, que tem havido avanços significativos desde a promulgação da Lei nº 8.974, de 1995, de autoria do então Senador Marco Maciel, que estabeleceu normas para o uso das técnicas de engenharia genética. A partir daí, vinculada ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, foi criada a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, cuja competência normativa lhe reserva o papel de garantir a preservação de algum dos mais estimáveis bens do homem, sua vida, sua saúde, sua higidez física, e, antes de tudo, o meio em que vive e do qual depende. No entanto, mesmo à biossegurança falta-lhe uma orientação ética que transcenda sua função jurídica, que indique-lhe as bases socialmente ideológicas sobre as quais a proteção do homem brasileiro e de seu meio-ambiente deve ser implementada.  

Sr. Presidente, apesar de toda essa precariedade relatada, longe de nós atribuirmos à comunidade médica e científica responsabilidade absoluta por esse processo de agonizante deterioração da moralidade social, de cuja sólida legitimidade deveria, em tese, se cercar a preservação da vida e sua reprodução. Acontece que, na falta de políticas públicas socialmente mais justas e agressivas, o Estado e a saúde brasileira se fragiliza progressivamente, abrindo flancos a distorções éticas as mais monstruosas no sistema moral que rege nossa relação com o próprio corpo humano. O que é mais grave, diante do histórico desequilíbrio no perfil da distribuição de renda no País, não há sopro ético que impeça per se o surgimento de condutas verdadeiramente imorais no âmbito das pesquisas médicas que envolvam seres humanos.  

Mais especificamente, os brasileiros menos assistidos não resistem a propostas nitidamente indecentes de "amputação" de órgãos em troca de alguns meros trocados. Enquanto na Índia a prática de venda de partes do organismo humano vem-se consumando como rotina "naturalizada" entre as castas menos privilegiadas para fins de salvaguardo da honra e da sobrevivência, o comércio clandestino de órgãos no Brasil se impõe como importante fonte de renda para muitas famílias que não hesitam em negociar sangue, rins, córnea, coração, fígado etc., visando compensação monetária.  

Segundo Débora Diniz e Dirce Guilhem, ambas pesquisadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Bioética da UnB, em virtude de o Brasil não possuir em instância nacional uma entidade que estude as implicações éticas de determinadas práticas médicas e científicas, a população corre diária e injustamente risco moral e de vida. Elas enfatizam que, no caso do Brasil, é a população menos favorecida que fica sujeita, de fato, a todas as arbitrariedades cometidas pelo Estado e pelas autoridades médica e científica. Como é de conhecimento comum, em nosso País, a classe médica desfruta de um poder de decisão sobre vida e morte que extrapola constrangedoramente qualquer nível de civilidade. Desprovido de um controle social mais efetivo – talvez até em função de um traço cultural desfavorável –, a esfera de ação do profissional da medicina e de pesquisadores excede a dimensão eticamente recomendada. O abuso do arbítrio médico e das políticas de saúde em casos de aborto, transferência de órgãos, internação em UTIs, entre outros, configura ausência desoladora de uma discussão nacional sobre a pertinência ética de práticas tão aviltantes.  

Nesse sentido, o surgimento de um comitê nacional consultivo de bioética não só acompanharia encaminhamento institucional já instalado em países adiantados, mas também instauraria de vez uma discussão séria e democrática sobre tema tão polêmico quanto urgente. Não se trata de buscar condenações e punições precipitadas, mas sim fincar balizamento ético que oriente condutas e decisões no relacionamento da medicina e da biotecnologia com as convicções culturais e individuais sobre a integridade do corpo humano. Trata-se, sim, de buscar a construção de uma original "bioética brasileira", capacitada a enfrentar, mediar e dar respostas aos conflitos morais emanados das diferentes questões bioéticas relacionadas com os costumes vigentes em nossa sociedade.  

Para que isso se concretize, é recomendável que o Brasil consulte e analise modelos similares já experimentados em outros países. Sobre agências e laboratórios que desenvolvem, apóiam e regulam pesquisas envolvendo seres humanos, os Estados Unidos já contam com o funcionamento de uma comissão nacional que supervisiona o novo setor do conhecimento tecnológico dentro do âmbito da bioética. Lá, o National Bioethics Advisory Commission (NBAC) é composto por 15 membros indicados pelo Presidente da República. Entre outras atribuições, compete ao NBAC propor sugestões e recomendações ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia dos Estados Unidos, no que concerne à conveniência/adequação de políticas e programas relacionadas aos assuntos bioéticos suscitados por pesquisas na área da biologia e do comportamento humano.

 

Além disso, cabe ao NBAC identificar princípios cujo eixo norteará a conduta ética das pesquisas, embora isso não se confunda com a delegação de responsabilidade sobre a crítica e a aprovação de projetos específicos. Prevê-se ainda que o NBAC deva receber sugestões tanto do Congresso quanto do povo em geral. Quanto a prioridades, o NBAC deve, na ordem, dirigir sua atenção a determinadas considerações: proteção de direitos e bem-estar de indivíduos envolvidos com pesquisas; e negócios ligados ao gerenciamento e uso de informação genética, incluindo mas não limitando ao patenteamento do gene humano.  

Nos países da Europa em geral, já há alguns anos funcionam os comitês nacionais de ética. Na atualidade, entretanto, a Europa se debate com a efetiva implementação da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano sobre a Aplicação da Biologia e da Medicina) que, em grande medida, delineia os parâmetros de ação dos comitês nacionais. Segundo Daniel Serrão, representante de Portugal no comitê de elaboração do documento, foram seis anos entre elaborar o texto original da convenção e tentar chegar ao texto ideal que conseguisse a ratificação da maior parte dos países do Conselho da Europa, que se compõe de 41 países.  

A polêmica entre os países-membros do Conselho não é menos turbulenta. Por exemplo, a Alemanha, que ainda não ratificou a convenção, proíbe experiências com embriões humanos e preocupa-se com o excesso de permissividade da convenção em relação a este tema. A convenção determina condições restritas para as pesquisas que utilizem embriões humanos. Não obstante, os ingleses não querem restringir-se aos embriões já existentes, querem criá-los para os estudar e proceder a investigações.  

Para solucionar os impasses e os temas mais polêmicos, como os transplantes de órgãos, a procriação medicamente assistida e a genética, o Conselho da Europa requisitou a elaboração de protocolos mais pormenorizados para serem anexados à convenção. Aliás, o primeiro a estar pronto foi o que diz respeito à clonagem. Eis a recomendação: "Qualquer intervenção que procure criar um ser humano geneticamente idêntico a outro ser humano, vivo ou morto, é proibida". Apesar disso, a despeito de todos os esforços, até agora apenas 23 dos 41 países membros do Conselho da Europa ratificaram o documento, que desde abril de 97 está concluído e à disposição para ser assinado.  

Diante do acima exposto, reitero a premência de o País instaurar debate sério e democraticamente articulado sobre a bioética, de modo a buscarmos consenso na criação do Comitê Nacional Consultivo de Bioética no âmbito do Congresso Nacional. Pela extrema sensibilidade que sei que lhes é própria, convicto estou de que o tema toca em profundidade a consciência de cada um de Vossas Excelências. Por isso, estou solicitando à Consultoria Legislativa do Senado estudo técnico detalhado, esboçando projeto de lei que cria o Comitê Nacional Consultivo de Bioética. A bioética não é assunto do futuro: merece ser tratada com a iminência e a responsabilidade do agora.  

Era o que eu tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/02/1999 - Página 3573