Discurso durante a 87ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANUNCIO DA EDIÇÃO DE MEDIDA PROVISORIA REGULAMENTANDO O ACESSO AOS RECURSOS GENETICOS E BIOLOGICOS DO PAIS.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANUNCIO DA EDIÇÃO DE MEDIDA PROVISORIA REGULAMENTANDO O ACESSO AOS RECURSOS GENETICOS E BIOLOGICOS DO PAIS.
Publicação
Publicação no DSF de 30/06/2000 - Página 14288
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • CRITICA, GOVERNO, UTILIZAÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), LEGISLAÇÃO, DESRESPEITO, TRAMITAÇÃO, PROJETO DE LEI, CONGRESSO NACIONAL.
  • CRITICA, PARALISAÇÃO, CAMARA DOS DEPUTADOS, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, APROVAÇÃO, SENADO, DISPOSIÇÃO, ACESSO, RECURSOS, GENETICA, BIODIVERSIDADE, BRASIL.
  • APREENSÃO, IRREGULARIDADE, CONTRATO, EMPRESA ESTRANGEIRA, CONTRABANDO, RECURSOS NATURAIS, BRASIL.
  • REGISTRO, NOTA OFICIAL, ENTIDADE, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), CRITICA, GOVERNO, IMPOSIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), ACESSO, MEIO AMBIENTE, DESRESPEITO, DEBATE.
  • ANEXAÇÃO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, GAZETA MERCANTIL, ESTADO DE SÃO PAULO (SP).

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT – AC. Para uma comunicação inadiável. Sem revisão da oradora.) – Sr. Presidente, agradeço a liberalidade de V. Exª. Procurarei ser breve.  

Não poderia deixar de fazer esta comunicação à Casa porque a considero de suma importância para a valorização dos trabalhos do Congresso Nacional e, particularmente, para a valorização da ação do Parlamentar no seu ato sagrado de legislar.  

Segundo informações dos jornais Folha de S.Paulo , Correio Braziliense e Gazeta Mercantil , o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso estaria dando entrada no Congresso Nacional a mais uma medida provisória que regulamenta o acesso aos recursos genéticos no País.  

Inúmeras vezes, usei esta tribuna para pedir que o Governo e sua Bancada de sustentação tratassem com participação, seriedade e urgência, no Congresso Nacional, a referida matéria. Infelizmente, não tivemos essa resposta do ponto de vista de uma ação prática. Agora, infelizmente, sou obrigada a falar de negligência, precipitação e, certamente, uma ânsia muito grande da parte do Governo Federal em ser autor de todas as iniciativas no País.  

O Governo, durante todos esses quase cinco anos, tem se informado da necessidade de uma lei que regulamente o acesso aos nossos recursos genéticos e biológicos. O projeto de minha autoria, apresentado no final de 1995, teve uma tramitação muito importante nesta Casa, com quatro audiências públicas, a realização de um workshop e várias iniciativas nos diversos Estados da Federação. Contudo, não contou com a prioridade do Governo, no momento em que chegou à Câmara dos Deputados.  

Devo reconhecer que, no Senado, a base de sustentação do Governo, com algumas exceções que se submeteram talvez a algum tipo de pressão do Governo, portou-se de forma magistral, porque o projeto tramitou na Casa foi aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Sociais, com o substitutivo do Senador Osmar Dias.  

Todavia, o Governo, em face do episódio ocorrido no contrato entre a Bioamazônia e a empresa Novartis, está descobrindo que regulamentar os recursos genéticos é uma prioridade urgente urgentíssima que, porém, não foi tratada como tal durante esses quatro anos, infelizmente.  

Vou fazer um breve histórico, Sr. Presidente, para dizer que não estou sendo incoerente com o meu princípio de acreditar nas pessoas e de usar boa-fé em tudo o que faço.  

Durante o processo de debate do substitutivo do Senador Osmar Dias, da Lei de Acesso, técnicos qualificados do Governo participavam dessas audiências públicas e quase não se manifestavam, ou intervinham muito pouco, limitando-se a fazer anotações e a acompanhar as discussões. Não quero crer que houvesse uma recomendação política dos seus superiores para apenas recolher subsídios e praticar o que vou qualificar ao final do meu pronunciamento. Às vezes, porém, temos de nos render aos fatos, porque a realidade é muito mais forte do que o que pensamos dela, porque se sobrepõe pela sua própria concretude.  

Em julho de 1996, o Gabinete Civil criou um grupo ministerial sobre acesso a recursos genéticos que discutia as nossas propostas em reuniões fechadas. Realizamos, então, junto com o Ministério do Meio Ambiente, por meio da CAS, um wokshop sobre o tema, no final de 1996.  

Durante 1997, o substitutivo do Senador Osmar Dias tramitou nas Comissões de Educação e de Assuntos Sociais, com algumas dificuldades, em virtude de certa má vontade de algumas pessoas. Não vou generalizar em relação à base do Governo, porque muitas pessoas nesse processo, no Senado, tiveram a postura de compreender a dimensão do que estava sendo votado e não a de avaliar quem estava propondo a iniciativa. Mas houve algumas ações que, do meu ponto de vista, se levadas a cabo, poderiam significar meios de protelar a medida provisória. Entre elas tivemos uma ação do Senador Jader Barbalho, que, em acordo com a orientação do Governo, apensou um substitutivo a outros projetos de minha autoria obrigando a tramitação também na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Como o texto estava praticamente parado no Senado e sabíamos que o Governo preparava outro projeto de lei para dar entrada na Câmara dos Deputados, resolvemos com o Deputado Jaques Wagner, da Bahia, apresentar o mesmo projeto com algumas alterações na Câmara dos Deputados a fim de iniciarmos o debate naquela Casa para ganharmos tempo.  

Quando, em 1998, o Governo ocupava-se da sua reeleição, conseguimos, graças a Deus, desapensar o projeto, que foi finalmente aprovado, por unanimidade, na Comissão de Assuntos Sociais, seguindo diretamente para a Câmara dos Deputados.  

Três meses depois, dias antes do primeiro turno, o Executivo entrou com seu projeto na Câmara dos Deputados. A nossa proposta, amplamente discutida, tinha – nossa proposta que eu digo é a do Senado – 60 artigos, mas o texto do Governo se reduzia a 25 artigos. Motivo: alguns dos principais dispositivos da nossa proposta o Governo preferiu deixar para regulamentação posterior, sem a participação do Congresso Nacional e da sociedade civil, como o reconhecimento do saber das populações tradicionais, para ganhar tempo e não ficar falando de outros.  

É bom marcar bem esse procedimento, porque ele volta agora com uma medida provisória elaborada nos gabinetes do Planalto – é o que a imprensa diz que está ocorrendo. O tema é tão complexo que a Mesa da Câmara dos Deputados designou a sua discussão para mais quatro comissões da Casa, porque o Regimento recomenda a criação de uma comissão especial.  

Em 1998, a Bancada do Governo, na Câmara dos Deputados, por intermédio do Deputado Arnaldo Madeira, não permitiu que a Comissão fosse criada. Os três PLs assim ficaram parados - o meu, o do Deputado Jaques Wagner e também o do Governo.  

Em 1999, a Liderança do Governo deixou que se formasse a comissão, mas negligenciou a nomeação de seus integrantes. No início deste ano, o Executivo deixou claro que a sua prioridade era a emenda constitucional que incluía o patrimônio genético entre os bens da União – não tenho tempo para explicar essa parte. Agora, a PEC também passa a ser secundária – assim como foram secundarizados os projetos anteriores – porque a prioridade é a medida provisória.  

As pessoas poderão dizer: "Marina, você não está querendo resolver o problema?" Claro que sim. Há vários projetos tramitando nesta Casa, mas o Governo, incessantemente, utiliza-se desses projetos, transformando-os em outras proposições, porque não quer que o Senado Federal, a Câmara dos Deputados e outras pessoas também tenham iniciativas.  

Posso dizer que isso está ocorrendo agora. Além de apresentar outro projeto de lei, o Governo – que tinha esse direito, pois não precisava concordar com o meu projeto – edita uma medida provisória.  

Há também outros exemplos: em relação à campanha de vacinação do idoso, de autoria do Deputado Eduardo Jorge, o Governo, apossando-se do projeto, baixou uma Portaria ministerial; quanto à proteção ao trabalho doméstico, proposição de autoria da Senadora Benedita da Silva, o Governo, por entender que a Srª Benedita da Silva não poderia pensar, apresentou outra proposta em cima da de S. Exª. Ainda mais: em relação ao Projeto de Renda Mínima, do Senador Eduardo Suplicy, bem como quanto ao projeto sobre porte de armas, do Senador José Roberto Arruda, para não ficarmos apenas nos Parlamentares da Oposição, ocorreu o mesmo. Enfim, são vários os projetos "biopirateados" pelo Governo, porque ninguém aqui pode ter idéias, ou, quando as tem, elas devem ser sempre entregues ao Governo.  

É claro que queremos resolver o mérito, pouco importando quem seja o pai da criança; porém, deve haver uma relação de respeito de parte do Governo para com o Congresso no que se refere ao ato de legislar, assim como respeitamos as iniciativas do Executivo. O Congresso também deve ser respeitado, porque as iniciativas referidas estão em tramitação. Como já fui empregada doméstica, posso utilizar uma expressão própria da categoria: as iniciativas já estão na "boca do forno" para serem aprovadas. Nesse ponto, contudo, o Governo edita uma medida provisória, com um outro propósito, já que o importante é partir do Executivo a iniciativa. Não há problema! Às vezes, até poderemos trabalhar como parceiros em algumas atividades, o que é muito importante. Há pouco, toda a Oposição estava se empenhando na questão da saúde. Por que o Governo não faz o mesmo?  

Agora, surge essa medida provisória sobre o acesso à biodiversidade. Trata-se de um assunto complicado. Desde 1994, já está ratificada a Convenção da Biodiversidade, fruto da Eco-92. Não houve preocupação em apresentar um projeto de lei para regular tão importante assunto. O Governo, neste momento, no bojo das pressões sobre contratos irregulares e biopirataria institucional – que a imprensa está denunciando amplamente –, edita medida provisória, desconhecendo um processo de discussão que passa pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional.  

O País poderia inovar apresentando uma lei para regular assunto tão polêmico, porque não se pode nem se deve acreditar que, por meio de medida provisória – que a cada 30 dias perde a validade e precisa de reedição –, seja possível o estabelecimento de contratos sérios, Sr. Presidente. Se não há lei que assegure as regras do jogo, podem surgir, em cada período de 30 dias, pressões das empresas que fazem bioprospecção a fim de mudar as medidas provisórias. Quais são as normas?  

Por isso, é fundamental a existência de uma lei acerca desse tema. Por mais vontade que eu tenha, Sr. Presidente, não posso concordar com esse mecanismo. Não é pelo meu projeto, até porque não se trata mais do projeto da Senadora Marina Silva – é o substitutivo do Senador Osmar Dias, é o projeto do Deputado Jaques Wagner e do próprio Governo. Como este tem a maioria na Casa, basta pedir urgência constitucional para aprovarmos uma dessas iniciativas. Não é possível que nos rendamos a essa prática de o Governo, a todo momento, sugar as iniciativas do Congresso Nacional por uma questão de autoria e por uma concepção errada do que significam os mecanismos e os meios democráticos de elaboração de leis.

 

Costuma-se governar sempre por decreto, como se estivéssemos numa espécie de monarquia. Estamos passando por um processo muito complicado. Até ouso dizer que, com essa medida provisória, o Governo está criando um expediente de "legispirataria". É bem oportuno esse nome que estou dando agora a essa prática que vivemos durante todo o tempo, embora estejamos tentando combater a biopirataria. A "legispirataria" é o mecanismo de tomar as iniciativas do Congresso e transformá-las em medida provisória, em decreto ou em algum dispositivo de autoria do Governo – pode ser inclusive um projeto de lei que seja submetido ao exame desta Casa. Os nossos não são aprovados, mas os deles são – com o mesmo conteúdo e, na maioria das vezes, piorados, como é o caso da Lei de Acesso. Em não assumindo o Congresso Nacional a sua prerrogativa do ato de legislar, o Governo age desse modo, porque permitimos que ele governe e faça leis por meio de medidas provisórias o tempo inteiro.  

Então, Sr. Presidente, agradecendo a V. Exª por ter sido bastante liberal em me conceder esse tempo, apenas registro que há um documento intitulado "Nota das organizações não-governamentais sobre a edição de medida provisória para regular o acesso aos recursos genéticos do nosso País". Essa nota está assinada por várias entidades que não concordam com essa forma de o Governo agir por decreto porque é uma discussão que precisamos, que é prioritária, mas tem mecanismo de tramitar com urgência. O Governo, quando quer urgência constitucional para aprovar ANA – que sejam Marias ou Josés – aqui dentro, ele o faz de um dia para o outro. Mas, em um momento importante como esse, em que quer regular o contrato entre a Bioamazônia e a Norvartis, adota o instituto da medida provisória, que é um mecanismo anti-democrático e desrespeitoso com o acúmulo que a sociedade e o Congresso Nacional têm feito sobre o tema.  

Quem assina a nota é o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, o Instituto Sócio-Ambiental, o Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, a Fundação Vitória-Amazônia, a SBTA, a Rede de ONGs da Mata Atlântica e várias outras.  

Devo dizer, concluindo, que os Deputados que estão envolvidos com o tema, a sociedade civil e eu mesma, não nos recusamos a conversar com o Governo, mas a base dessa conversa terá que ser necessariamente em cima das iniciativas que estão tramitando no Congresso Nacional; e não em cima de medida provisória, o que significa um desrespeito ao acúmulo de mais quatro anos em que o Governo, sob a desculpa de ter que aprovar uma emenda à Constituição para poder aprovar a lei, não o fez de maneira alguma e, agora, sem aprovar a "bendita" emenda à Constituição, apresenta uma medida provisória que não tem o amparo e o alcance legal para instituir contratos duradouros, porque, a qualquer momento, poderão ser mudadas as regras do jogo. A cada 30 dias o Governo pode mudar a sua posição, restando ao alcance das pressões externas que sabemos acontecerão.  

Faço ainda o registro de que, segundo o que aconteceu, tivemos a decisão da Justiça Federal que proibiu a Empresa Monsanto de produzir soja transgênica e o Governo Federal de autorizar novos casos de plantio e comercialização de alimentos geneticamente modificados durante o prazo de 90 dias e está exigindo que se tenha uma legislação clara sobre o assunto para que não se fique aqui autorizando o plantio e a comercialização de transgênicos sem que tenhamos base legal.  

Peço que façam parte do meu discurso a nota das organizações não-governamentais sobre a edição da medida provisória para regular o acesso aos recursos genéticos do País, bem como as matérias dos jornais Folha de S.Paulo e Gazeta Mercantil. Agradeço a liberalidade da Mesa. Devo ainda registrar que se fico emocionada tratando desse tema é porque, desde criança, vi a biopirataria acontecer sob meus olhos em que levavam sementes de nossas seringueiras trocando por bombom e rapadura. Era assim que se fazia com os pobres e levaram todo o nosso ouro branco da Amazônia. Agora, vejo novamente a legispirataria acontecer não com a minha iniciativa, mas com a do Congresso Nacional.  

Poderia a lei de autoria do Governo até ser aprovada, já que ele tem maioria nesta Casa. Não há problema! Todavia, gostaria que o Governo tivesse a grandeza de discutir com o Congresso as iniciativas que aqui estão tramitando, ao invés de pirateá-las como medidas provisórias.  

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DOCUMENTOS A QUE SE REFERE A SRª SENADORA MARINA SILVA EM SEU PRONUNCIAMENTO:  

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/06/2000 - Página 14288