Pronunciamento de Marina Silva em 29/08/2000
Discurso durante a 109ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal
Homenagem de pesar pelo falecimento do ex-Senador Mário Maia, ocorrido no último dia 26 de julho.
- Autor
- Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
- Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- Homenagem de pesar pelo falecimento do ex-Senador Mário Maia, ocorrido no último dia 26 de julho.
- Publicação
- Publicação no DSF de 30/08/2000 - Página 17440
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
-
- HOMENAGEM POSTUMA, MARIO MAIA, MEDICO, EX-DEPUTADO, EX SENADOR, ESTADO DO ACRE (AC).
SENADO FEDERAL SF -
SECRETARIA-GERAL DA MESA SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA |
A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, muito obrigada. É sempre um prazer estar ouvindo o meu amigo e colega, Senador Eduardo Suplicy.
Sr. Presidente, quero hoje homenagear a memória de um dos médicos mais conhecidos do meu Estado, que faleceu recentemente, o ex-Senador Mário Maia.
Conheci S. Exª, médico, trabalhando na Santa Casa de Rio Branco, quando tinha 19 anos ao contrair a segunda hepatite em 1979. Naquela época, entrei em contato com o médico Mário Maia pelos seus serviços prestados na Santa Casa e confesso que me surpreendia muito quando via alguém com tamanha dedicação no cuidado dos seus pacientes, independentemente da sua condição social, inclusive eu era uma das que não tinha acesso a um serviço particular de saúde. Fui internada na enfermaria dos indigentes, mas pude receber o carinho, o respeito e o tratamento do médico Mário Maia ainda sendo uma jovem de 19 anos., Acredito, inclusive, que S. Exª não tenha imaginado que eu sequer entrasse na vida pública, porque era uma menina vinda do seringal, humilde e com sérios problemas de saúde, no caso uma hepatite do tipo B. Também naquela época, dividia a assistência de saúde comigo o já falecido Dr. Wilson Ribeiro, Deputado do Estado do Acre e Presidente da Assembléia.
Estou falando mais do Dr. Mário Maia, que também foi Senador e Deputado Federal, por seus serviços médicos que por sua ação política, muito embora fosse um homem também apaixonado pela política.
Nascido em 25 de outubro de 1925, era filho de Laura e Benedito Maia - seringueiro e, depois, vendedor de refresco de “pega-pinto” (planta trepadeira nativa que embaraça pequenas aves em seus ramos mais baixos, quando vão se alimentar de suas sementes.)
A infância do Senador Mário Maia foi difícil: ele ajudava nos afazeres domésticos e trabalhava como servente no grupo escolar onde estudava, para ajudar nas despesas da família, com nove irmãos.
Quando chegou a sua fase adulta, aceitou uma bolsa de estudos, oferecida então pela primeira-dama do Estado, para concluir o segundo grau no Rio de Janeiro. Em troca, firmou o compromisso de formar-se em Medicina e retornar ao Acre para dar assistência às comunidades carentes, compromisso que honrou até a morte, pois faleceu dentro do Hospital de Base, na UTI que construiu na época em que foi Secretário de Saúde do Estado.
Com a ajuda dos irmãos que ficaram no Acre e do emprego de office-boy, concluiu o secundário no Colégio Andrews, e cursou a Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, enquanto trabalhava no banco de sangue do Hospital Antônio Pedro, em Niterói.
Casou-se, em 1954, com D. Elba Tavares, e formou-se médico em 1955. Retornando ao Acre em 1957, estabeleceu-se no Município de Sena Madureira, vizinho à capital, Rio Branco, para trabalhar em um hospital semi-acabado.
Em 1959, Mário Maia iniciou sua carreira política, candidatando-se a Deputado Federal. Foi eleito em 1962, mudando-se, então, para a recém-inaugurada Brasília com sua esposa e duas filhas, Laura e Elisabeth.
Na juventude, tive oportunidade de participar, com a Beth, de um grupo de teatro amador chamado Grupo Semente. As pessoas se admiravam da presença da filha de um Senador naquele grupo de teatro da periferia, mas foi uma experiência muito interessante para todos nós.
Eleito em 1966, Mário Maia continuou exercendo a Medicina, dessa vez no Hospital de Base de Brasília. Devido a sua oposição ao regime militar instalado desde 1964, teve seus direitos políticos e seu mandato cassados por 10 anos, a partir de 1968, encabeçando a primeira lista de militantes políticos punidos com o instrumento de exceção conhecido como AI-5. Teve também suspenso seu direito ao trabalho em hospital público e, por isso, viu-se obrigado a permanecer no Estado do Rio de Janeiro de 1969 a 1978, trabalhando em hospitais particulares. Nesse período, dedicou-se ao estudo da Astronomia, da Botânica e da Filosofia.
Mário Maia escreveu um romance de inspiração autobiográfica - Rios e Barrancos do Acre - que falava sobre sua terra natal. Quando estudante, tive oportunidade de receber na escola vários livros do Senador, que fazia questão que a juventude tivesse uma idéia do que era a vida, nos rios e barrancos do Acre, da população ribeirinha, tão sofrida, e que ele com tanta dedicação - dedicação até sacerdotal - assistia enquanto médico. A poesia também era uma de suas grandes paixões.
Anistiado em 1978, retorna a Rio Branco e à prática da Medicina em hospitais públicos e em seu consultório, dedicando-se ao atendimento à população mais carente e à militância política.
Em 1982, é eleito Senador pelo Estado do Acre. O seu trabalho como Senador foi reconhecido inclusive pelo Diap. Ele foi o único político que recebeu nota 10 do Diap nos trabalhos da Constituinte. Lembro-me de que nessa ocasião eu era professora e fiz um trabalho, na matéria OSPB, com os meus alunos; distribui entre eles a pesquisa que havia sido realizada pelo Diap sobre o comportamento de cada um dos parlamentares do Acre. Ao final do trabalho, todos os alunos decidiriam, segundo aquelas informações, qual o Senador ou o Parlamentar federal que tinha realmente uma postura de compromisso social com os interesses do povo brasileiro e do povo acreano. Em todas as turmas em que esse trabalho foi realizado, o Senador Mário Maia foi o vencedor, até porque, como acabei de falar, ele foi o único que recebeu nota 10, dentre os membros de nossa Bancada, durante os trabalhos da Constituição de 88.
Terminou o seu mandato parlamentar em 1990. Foi, por duas vezes, assessor parlamentar do Ministério da Saúde. Criou o Projeto Barco-Hospital para atendimento às populações ribeirinhas em todo o País, e participou das articulações para a aprovação da CPMF nesta Casa.
De 1994 a 1998, foi Secretário de Saúde do Acre. Sob a sua gestão, foi construída a primeira unidade de tratamento intensivo naquele Estado. Em 1998, afasta-se da vida pública e dedica-se apenas ao exercício da Medicina no hospital estadual.
O falecimento do Senador Mário Maia ocorreu no dia 26 de julho passado, portanto é bem recente. Depois de um dia de visitas aos pacientes recém-operados, quando atendia a uma criança, sofreu um enfarte fulminante. Suas últimas palavras foram dirigidas à enfermeira que o acompanhava: “Leve-me para a UTI. Eu estou enfartando.”
E assim fomos privados da companhia do Velho Guerreiro, do Gafanhoto, de Mário Maia, de quem, durante a vida, nos aproximamos em momentos de dor e em momentos de disputa política. Também nos distanciamos em momentos de dor, porque, para mim, é sempre uma perda quando alguém que está na mesma linha de batalha, depois, por razões que não me cabe julgar agora, distancia-se.
Em 1999, ele disputou a reeleição e Jorge Viana disputava o Governo do Acre. Jorge foi para o segundo turno, mas, lamentavelmente, não ganhamos. O Senador Mário Maia perdeu a eleição para Senador. Quando houve distanciamento político entre nós, e ele assumiu outras posições políticas, confesso que tive um certo sofrimento. Mas nunca deixei de respeitá-lo, principalmente enquanto médico, enquanto figura humanitária que prestou relevantes serviços ao meu Estado, inclusive a mim, de forma particular.
Com alegria, há seis ou sete meses, recebi uma poesia do Velho Guerreiro, em ele que dizia: “Aconteça o que acontecer, mesmo que estejamos separados politicamente, você será sempre a minha musa inspiradora.” Assim ele me tratava durante todas as disputas políticas em que estávamos juntos.
O meu primeiro voto foi dado para o Senador Mário Maia. Lembro-me de que, em 1982, na sua campanha para o Senado, no Município de Xapuri, o Senador, que estudava muito, fez um discurso muito rebuscado - diferente da minha linguagem direta e sem sofisticação lingüística -, uma fala muito bem construída. Apesar de ser filho de seringueiro, de ser uma pessoa de origem humilde, ele usou uma linguagem bem sofisticada para aquela população, que era, principalmente, de seringueiros. No comício, disse ele o seguinte: “Eis que as catapultas da Frente Popular estão a se lançar em cada bairro, em cada esquina, em cada rua.” E uma senhora ficou um pouco ofendida e disse: “Senadora, o que ele está querendo dizer com essa história de catapulta?” E eu pensava: “Meu Deus, como é que vou ensinar para essa senhora o que significam catapultas da Frente Popular?” Então eu lhe disse: “É como se nós tivéssemos um monte de ouriços de castanha e começássemos a arremessá-los nas pessoas. Isso são as catapultas. Nós estamos arremessando as nossas idéias, os nossos projetos, a nossa proposta contra os nossos adversários”. Foi assim que expliquei a situação para aquela senhora, que, inicialmente, não entendera o que estava sendo dito pelo Velho Guerreiro, como era ele chamado.
Lembro-me também de uma certa vez, durante uma campanha, em que estivemos em um bairro muito pobre de Rio Branco, chamado Palheiral. Nós estávamos em um carro velho que ele tinha à época, aliás aquele carro bem sofrido fazia até parte de seu estilo, pois, embora ele fosse um médico respeitado, ele não ligava para a pompa da sua função; ele era uma pessoa muito simples, verdadeiramente falando. Quando chegamos com aquele carro velho, cheio de papéis, cheio de cartazes, naquele bairro pobre, de repente, um engraxate - que deveria ter de sete a oito anos, um menino magrinho, fraquinho, apenas com um pequeno short e uma caixa de engraxate, pés descalços, todo sujinho de lama, porque era um bairro periférico, que não tinha asfaltamento, não tinha saneamento nenhum - chegou próximo ao carro e disse: “Ah, é tu, Mário Maia?!” E o Senador falou: “É, sou eu”. E ele disse: “Me dá um bocado desses teus papéis, que eu quero te ajudar”. Eu, que o estava acompanhando em sua campanha, fiquei assistindo aquela cena, não acreditando que ele fosse dar ao menino os cartazes, pois eu achava que ele iria distribuí-los de qualquer jeito, não iria fazer campanha alguma. Entretanto, Mário Maia simplesmente desceu do carro, foi ao porta-malas, fez um “bolinho” bem feito, como ele costumava fazer para as pessoas que realmente trabalhavam para ele, e o deu para aquele engraxate. Mas o que me impressionou na fala do menino foi a intimidade com que ele tratou o Senador e médico Mário Maia - “É tu, Mário Maia?”, disse ele, como quem diz “É você?” Ele falava a uma pessoa com quem tinha uma certa intimidade. “Me dá um bocado desses teus papéis aí, que eu quero te ajudar". Aquilo me emocionou profundamente, porque era uma criança desprovida de qualquer condição e, de repente, na sua inocência, na sua grandeza de espírito, dizia para o médico e Senador que o queria ajudar. Com certeza, mesmo não tendo o seu voto ou talvez nem mesmo o de sua mãe, Mário Maia ganhou o maior votos de todos: o voto do coração. Aquele voto foi o mais importante de todos.
Quero aqui terminar minhas palavras mencionando uma história que aprendi, acho que é uma história oriental. Conta-se que um certo rei estava escrevendo as memórias do seu reinado. Algumas ele escrevia em uma grande pedra, outras, ele mandava um servo seu escrever na praia. De repente, alguém indagou como ele poderia registrar algumas coisas na pedra, que ficariam para sempre, e outras na praia, por meio do servo, que as ondas do mar apagariam imediatamente. “Eu não estou entendendo o que você está fazendo”, disseram-lhe. E o rei deu a um de seus auxiliares a seguinte resposta: “As coisas boas que me fizeram eu quero guardá-las para sempre em minha memória. As coisas ruins, as coisas negativas, eu quero que sejam inscritas na beira da praia, para que as ondas do mar as apaguem”.
Na minha relação com o Senador Mário Maia, escrevi em pedras o tratamento respeitoso que ele sempre teve com o povo do Acre, o tratamento respeitoso e carinhoso que ele teve quando dele precisei, mesmo sendo uma jovem indigente vinda do seringal, com uma hepatite que, diziam, não tinha mais jeito. Ele nem sabia que aquela jovem seria um dia a Senadora Marina Silva, que, após a nossa convivência, passou a ser chamada, por ele, de “musa inspiradora” - e ele escreveu-me até uma poesia, certa vez, porque também era um poeta. Tudo de bom que ele fez para o Acre, que fique numa grande pedra, para que seja julgado pelo povo acreano como sendo o seu grande feito. Todas as nossas divergências, com certeza, que fiquem à beira do barranco do rio Acre, para que as águas impetuosas as levem para sempre, porque o bem que ele praticou para nosso povo sobrepõe-se a toda e qualquer divergência passageira que tivemos, pois tenho absoluta certeza de que, apesar das circunstâncias, o ideal de fazer o bem às pessoas era o nosso único ponto de encontro.
Que o saudoso Mário Maia possa descansar, com o respeito da sua família e o respeito de todas as pessoas do Acre. Os que, porventura, não têm concordância política com ele, com certeza, são unânimes em declarar a sua dedicação como médico. Eu vi o Senador fazer curativos, em enfermarias, em pessoas simples, que vinham lá daqueles altos rios, com ferradas de arraia, com um sofrimento terrível, em lugares em que até as enfermeiras tinham dificuldades em atender. É desse Mário Maia que eu vou lembrar. Se, para alguns, a Medicina é a tábua fria onde a dor é aliviada mediante um pagamento, para Mário Maia a Medicina é o altar onde ele aliviava a dor, tendo como pagamento apenas a celebração da vida.
Muito obrigada.
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