Discurso durante a 114ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Apoio à proposta de realização de auditoria sobre a dívida externa brasileira.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIVIDA EXTERNA.:
  • Apoio à proposta de realização de auditoria sobre a dívida externa brasileira.
Publicação
Publicação no DSF de 06/09/2000 - Página 17709
Assunto
Outros > DIVIDA EXTERNA.
Indexação
  • COMENTARIO, PLEBISCITO, AUDITORIA, DIVIDA EXTERNA, CRITICA, FALTA, CONSCIENTIZAÇÃO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, IMPERIALISMO, CAPITALISMO, HEGEMONIA, AMBITO INTERNACIONAL, ANALISE, PROCESSO, HISTORIA.
  • CRITICA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, AUTORIDADE, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, AMPLIAÇÃO, DIVIDA EXTERNA, PREJUIZO, POPULAÇÃO.
  • COMENTARIO, ATUAÇÃO, DELFIM NETTO, DEPUTADO FEDERAL, EX MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA FAZENDA (MF), REFERENCIA, NEGOCIAÇÃO, DIVIDA EXTERNA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, é com uma certa tristeza que vejo esse movimento internacional, no sentido de, timidamente, propor uma auditoria sobre a dívida externa. É tão tímida essa agenda assumida por toda a sociedade humana ainda consciente, a partir do Papa, que essa timidez me entristece.

Por quatro ou cinco vezes, atuei como promotor em júris populares, que tinham como objetivo julgar a dívida externa deste País. E, em algumas vezes, isso ocorreu aqui, no gramado do Congresso Nacional, quando o gramado era democrático; hoje, serve para alegrar alguns “peixes” desideologizados; alguns peixes que, juntamente com a água em que nadam, servem para afastar o povo da Casa do povo.

De modo que é com certa tristeza que presencio e participo desse plebiscito, segundo o meu ponto de vista, na falta de um movimento mais viril; na falta de uma consciência mais avançada de que realmente é impossível suportar a situação que o imperialismo internacional, como dizia o Professor Fernando Henrique Cardoso, estava provocando e iria provocar como desarticulação, como destruição da vida, como desorganização da sociedade e como império da criminalidade e da máfia na América Latina.

Quero recordar Sheril Payer, por exemplo, que foi funcionária do Banco Mundial. Ao tomar consciência daquilo que estava acontecendo no mundo em relação ao problema da dívida externa, escreveu um livro que, obviamente, lhe custou a posição. Ela foi demitida - e tinha de ser. Foi muito bem demitida; fizeram muito bem em demiti-la porque ela falou a verdade. O seu livro se chama The Debit Trap - “A armadilha da dívida”.

Em 1970 ou 1971, ela conta aquilo que atualmente os jornais da América Latina estão mostrando. Tudo isso que está acontecendo encontra-se no seu livro. E ela não tinha bola de cristal! É um processo inexorável, que se repete. Basta conhecer um pouco de história, em vez de ser “neonada”, “neomarginalista”, neoliberal. Se em vez de ficar estudando os gráficos e as complexidades falsas, as precisões, mock precisions, como dizia Keynes, a respeito desse trabalho que aí está ou desses economistas, lessem história - porque a grande mestra é a história -, eles, obviamente, se sentiriam pelo menos constrangidos, como acontece com o Ministro Pedro Malan, que se opõe, temeroso, à consulta popular que agora se faz no Brasil para se saber apenas qual é a opinião do povo brasileiro, que está “pagando o pato”; se esse “pato” não está caro demais; se esse “pato” já não foi pago várias vezes. Até quando iremos suportar isso? E, obviamente, o “pato” engorda a cada dia que passa!

O Presidente Fernando Henrique Cardoso tinha plena consciência desse processo - quando estudava, por exemplo, na CEPAL, no Chile - do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. Expressão que antecipou e em relação à qual protestou, porque achava que ele era o dono da verdade, e não o autor desse livro, André Gunderfrank, que é realmente o antecipador de uma teoria que mostrava como estaríamos fadados a desenvolver a nossa pobreza.

Fernando Henrique Cardoso veio, como Presidente, presidir esse processo. Ele dizia em um dos seus livros que, por intermédio do capital estrangeiro, por intermédio da dívida externa, por intermédio desse transplante que se faz sobre os países periféricos, subdesenvolvidos, ia-se criando nesses países, no Brasil especificamente, uma antinação brasileira dentro do Brasil. O Presidente Fernando Henrique Cardoso é, portanto, o primeiro Presidente consciente desse antiestado nacional.

Por que o Sr. Fraga não é brasileiro? Ou é meio brasileiro? Porque ele é meio americano.

Esse foi um processo prolongando, antigo, demorado, trabalhoso, de ir colocando esse exército estrangeiro, dos Estados Unidos, que fala a voz do FMI, dentro do Estado brasileiro, na Presidência da República e em suas adjacências. Agora, já não há mais invasão por causa da dívida externa. Não há exércitos invadindo, como aconteceu até o princípio deste século.

Não é preciso ir muito longe na pesquisa histórica para saber, por exemplo, que, em 1871, graças à dívida externa, o povo mexicano, revoltado, sempre rebelado, nunca vencido, conseguiu prender, depor e fuzilar o imperador da dívida externa, Maximiliano, irmão do monarca da Áustria.

“Ah, isso não tem importância”, diz o Sr. Malan, “essa dívida externa é muito pequena em relação a não sei o quê.” Parece que ele paga o Imposto de Renda e as suas contribuições, juntamente com o Sr. Fraga, nos Estados Unidos, onde têm ou dupla nacionalidade ou trabalharam durante tanto tempo que lá devem recolher também os seus impostos. Se brasileiros fossem, se tivessem que pagar impostos como nós, desta terra, teriam uma carga tributária cada vez mais crescente e insatisfatória, imposta e determinada pelo FMI, graças às condicionalidades que foram sendo criadas, principalmente a partir dos anos 80.

Eu, por exemplo, não passo e nunca passei na frente da Comissão do Orçamento. Tenho medo daquilo, por isso nunca passei por lá, nunca pertenci à Comissão nem lhe apresentei uma proposta, e quero encerrar a minha vida pública, dentro de dois anos, sem ter participado daquela maracutaia.

Eu vi quando essas cabeças estavam sendo formadas, no início dos anos 60, quando esse pessoal - Malan, Chico Lopes, Gustavo Franco etc, milhares deles - saiu para os Estados Unidos, não para fazer o cabelo, mas para fazer a cabeça. E voltaram de cabeça feita, irreconhecíveis.

O interessante é que o Ministro Malan já escreveu bastante - e eu li - sobre a história econômica do Brasil. A tese do Sr. Gustavo Franco, editada pelo BNDES, trata daquele momento crucial da história econômica brasileira, por volta de 1898, quando o Sr. Campos Sales, eleito Presidente da República, antes de sua posse, pegou um navio para ir conversar com os nossos credores, os Rothschild. Por quê? Porque ao Brasil tinha sido cortado inclusive o trânsito de navios, que não despejavam mais mercadorias no Rio de Janeiro, num terrorismo internacional para desmoralizar mais o Brasil e obrigá-lo a pagar a infindável dívida externa.

Dizem o Sr. Malan e o Governo que conseguiram um grande feito: aumentar o perfil da dívida externa, ou seja, passar a pagá-la em quarenta anos. Grande vitória! Agora, seremos seus escravos por mais quarenta anos. Os meus bisnetos também nascerão devedores, pois deverão ter assinado no útero materno a obrigação moral de pagar a dívida externa. Já nascerão devendo e serão obrigados a pagar por essa moralidade cínica do neoliberalismo.

A modéstia e o silêncio de Campos Sales estão no seu livro Uma Campanha Republicana, um diário que conta todo o seu trajeto até a Inglaterra e as conversas que teve, dia a dia, com os Rothschild. Campos Sales conseguiu sessenta e três anos para pagar a dívida externa brasileira. Não conseguiu apenas quarenta, que já são corda no pescoço de quem não consegue pagar sua dívida, mas que espichassem a corda e o prazo, pois sem matarem a galinha dos ovos de ouro, continuariam recebendo a dívida externa.

O Brasil sempre pagou os seus compromissos, infelizmente. A União Soviética deu o calote depois da Revolução, bem como a Alemanha, que, em 1928, deixou de pagar a dívida externa que a estava sufocando. Os alemães trabalhavam para exportar mercadoria, tal como o Brasil começou a fazer - ao contrário do que ocorria até o império de Gustavo Franco ou o 1º reinado de Fernando Henrique Cardoso.

Agora, o negócio é importar, importar e importar, ter déficit na balança comercial. Elevamos a nossa dívida externa de 119 bilhões, em 1994, para 242 bilhões, neste ano. Ela aumentou como foguete para quê? Para que importássemos barato, àquela taxa de câmbio enlouquecida, colocada pelo Sr. Gustavo Franco e que o Presidente Fernando Henrique Cardoso disse ser exageradamente redutora dos preços de importação. Durante esse tempo, importamos de tudo e alguns até comeram 100 ou 200g a mais, por ano, de perna, asa e pescoço de galinha. Isso a estatística brasileira anotou muito bem, com muita precisão. No entanto, agora temos que pagar 242 bilhões. Alguns pagam pelos carros novos que importaram, pelas máquinas que compraram, e outros pagam pelas pernas de frango e pelo iogurte que conseguiram comer. Essa é a distribuição do produto que foi importado e fez crescer, como bananeira, a dívida externa brasileira: de 119 bilhões para 242 bilhões, de 1994 para cá.

Agora o Governo quer saber o que faríamos com a dívida externa. Se não temos coragem de dizer um não à dívida externa, de falar que não pagamos, como tantos países fizeram ao longo de suas histórias, se não temos coragem de fazer isso, podíamos pleitear pelo menos aquilo que a Alemanha conseguiu logo depois da II Guerra Mundial.

O Brasil, durante a II Guerra Mundial, entrou, juntamente com o Chile, a Argentina e outros países, no chamado esforço de guerra. Passamos a exportar a nossa borracha, o nosso minério de ferro, enfim, as matérias-primas de toda a América Latina, com um desconto fantástico em nome do esforço de guerra.

No final da guerra, a Inglaterra pegou cinco milhões de libras em reserva brasileira, que tínhamos depositados lá, e disse que o Brasil não havia pago a dívida da Leopoldina Rail Way, no tempo do Presidente Arthur Bernardes, e passou a mão no nosso dinheiro. Por outro lado, os Estados Unidos perdoaram 85% da dívida externa alemã, dos nossos inimigos na II Guerra Mundial. Os inimigos tiveram um perdão de 85% da dívida! E nós, os colaboradores, os aliados, os nossos pracinhas, o que recebemos em troca dos Estados Unidos? A Inglaterra levou cinco milhões de libras e os Estados Unidos nos obrigaram a aumentar a nossa dívida externa para importar bugigangas que o governo norte-americano não podia importar mais. O governo norte-americano, ao final da II Guerra, tinha uma dívida pública correspondente a 119,9% do seu PIB, e não podia continuar a aumentar a dívida pública para alavancar a economia do país. Com a transformação da economia de guerra em economia de paz, o governo norte-americano teve que arranjar outros compradores para as mercadorias norte-americanas. Quais foram esses outros compradores? O Brasil está na frente.

E depois, logo em seguida, criaram o Plano Marshall, e deram US$100 bilhões aos europeus arianos. Essa dívida externa teve também a sua pigmentação: para os alemães, 85% de perdão da dívida; e a situação da Alemanha não podia nem se comparar, por exemplo, socialmente à situação que vivemos hoje no Brasil, hoje e sempre.

É muito triste ter de engolir “sapos” e injustiças e ficar calado, como quer o Sr. Malan. Porque, se levantarmos a hipótese de fazermos uma análise da dívida externa, parece que estaremos cometendo um crime de lesa-majestade, de lesa-pátria. A inversão é total.

Desse modo, apenas para terminar, porque o meu tempo já se esgotou, embora eu nem tenha chegado a começar, gostaria de lembrar que diversos países deram o calote, e com eles nada aconteceu. E não podia acontecer. Por quê? Porque a nossa dívida externa também são eles que fazem, a nossa dívida externa não é feita por nós. Nós, pobres, não temos crédito para fazer uma dívida externa. Quando a situação está normal, o que eles dizem? “Não, aqueles pobres são caloteiros, são mulatos, índios, negros, maus pagadores.” É assim que eles falam lá. Mas, quando o dinheiro sobra lá, como aconteceu na era dos eurodólares, em que havia dinheiro sobrando, quando os petrodólares despejaram bilhões e bilhões, e tinham que procurar tomador, tinham que procurar devedor para tomar esse dinheiro emprestado, eles fizeram o contrário: ultrapassaram todos os limites permitidos pela legislação, deixaram que os bancos se endividassem em mais de 15%, como era uma regulamentação internacional, e o Brasil se encheu de dívida nos anos 70 e no princípio dos anos 80. Devemos acima e além da nossa possibilidade de pagamento.

Então, o que aconteceu depois, a partir de 1985, com o Plano James Baker, a partir de 1989, com o Plano Brady, e, logo em seguida, com o famigerado Consenso de Washington? Em 1870, foi a mesma coisa: a nossa dívida externa cresceu porque houve uma grande crise na Europa, não havia para quem emprestar, ou seja, não havia banqueiros e empresários europeus fortes para tomar o dinheiro dos bancos. Então, os bancos despejaram esse dinheiro - tal como aconteceu 100 anos depois - nos países pobres e criaram uma situação de impossibilidade de pagamento. Assim, são eles que produzem a nossa dívida externa e, depois, nos obrigam a pagar. Aí, a honra... (risos). Ah, meu Deus do céu! Uma sociedade que matou 85 milhões de seres humanos na I e na II Guerra Mundial, que provocou 344 guerras entre 1740 e 1974 vem falar em dignidade, em honra, em honradez!? Não respeitam a vida e querem que respeitemos a dívida!? Então, realmente espero que esse seja apenas o primeiro passo, ajudado pelo Vaticano e pelas forças conscientes que ainda sobrevivem no mundo.

Há pouco tempo, num debate comigo, o ex-Ministro e Deputado Delfim Netto disse: “Eu acho que a Humanidade não vai acabar com esse neoliberalismo. Vai chegar a um ponto em que a Humanidade vai acordar, vai ver que o futuro do neoliberalismo é nada, é a destruição total da vida. Não há condições”. De modo que, depois de tanto tempo, de tanta luta contra a ditadura e contra o então o Ministro Delfim Netto, hoje, sou obrigado a terminar com uma satisfação, com um aplauso, um abraço no Ministro Delfim Netto, que eu nunca havia visto ou cumprimentado antes desse debate, mas hoje tenho de reconhecer que o admiro, inclusive porque ele assinou mil acordos com o FMI, mas não cumpriu nenhum. Ele não era um “FMI boy”, sabia o que estava fazendo.

            Muito obrigado. 


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/09/2000 - Página 17709