Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Defesa da transposição das águas do Rio São Francisco como fator de desenvolvimento sócio-econômico da região Nordeste.

Autor
Clodoaldo Torres (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/PE)
Nome completo: Clodoaldo da Silva Torres Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DESENVOLVIMENTO REGIONAL.:
  • Defesa da transposição das águas do Rio São Francisco como fator de desenvolvimento sócio-econômico da região Nordeste.
Publicação
Publicação no DSF de 15/09/2000 - Página 18704
Assunto
Outros > DESENVOLVIMENTO REGIONAL.
Indexação
  • DEFESA, NECESSIDADE, REVIGORAÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, ANTERIORIDADE, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, BENEFICIO, COMUNIDADE, REGIÃO SEMI ARIDA, ESTADO DO CEARA (CE), ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE (RN), ESTADO DA PARAIBA (PB).
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO, INCENTIVO, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, REGIÃO NORDESTE.
  • DEFESA, RACIONALIZAÇÃO, GOVERNO, PROBLEMA, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, INVESTIMENTO, RECURSOS, REVIGORAÇÃO, RIO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. CLODOALDO TORRES (PTB - PE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a transposição de águas do rio São Francisco para bacias fluviais do Nordeste setentrional é matéria que costuma despertar emoções fortes, tanto naqueles que se opõem ao projeto como nos que o apóiam. Seus defensores costumam ser apaixonados pelo tema e apresentar o projeto como a redenção do Nordeste, ou, pelo menos, de algumas das áreas mais sofridas e castigadas pela seca que se abate, freqüentemente, sobre o semi-árido nordestino.

Essas emoções e paixões não são a postura mais indicada para compreender a questão da transposição. Ela é matéria de enorme complexidade e há inúmeros obstáculos e dificuldades para que cheguemos aí a bom termo. Certamente, a transposição não pode ser encarada, simplesmente, como redenção de coisa alguma. Redenção, para o Nordeste, será estudar e resolver com seriedade o complicado problema do aproveitamento de seus parcos recursos hídricos, e todas as ramificações técnicas e institucionais que dele decorrem.

Esses recursos têm que ser utilizados muito criteriosamente. A água é um bem comum, sujeito a usos múltiplos conflitantes, que devem ser compatibilizados por meio de negociações que reflitam o interesse abrangente da sociedade. Não faz sentido despir um santo para vestir outro. No caso do rio São Francisco, uma falsa idéia é a toda hora apresentada: a de que o Velho Chico tem grandes sobras disponíveis de água. Ora, só os 3 milhões de hectares irrigáveis de sua bacia esgotariam toda a sua vazão, para não falar em outros usos, como geração hidrelétrica e abastecimento das populações ribeirinhas.

Na verdade, o São Francisco, assoreado e poluído em muitos trechos, é um rio reduzido, hoje, a um estado de anemia. E um anêmico não pode doar sangue. Não antes de ter recuperada sua saúde. A prioridade primeira no São Francisco é revitalizá-lo. Antes disso, não se pode executar a transposição de suas águas.

São tópicos, esses, que pretendo aqui abordar resumidamente. Antes de mais nada, é preciso que se diga que o atual projeto de transposição, ao contrário de tentativas anteriores, é tecnicamente cuidadoso no que concerne à transposição em si. Isso não significa que a proposta responda às inúmeras dúvidas suscitadas pelo desvio das águas do São Francisco. Entre elas, as relativas à seqüência de implantação, que precisa ser correta, com a prévia implementação das medidas de revitalização do rio.

O projeto de transposição é o terceiro elaborado nos últimos 20 anos. Os dois anteriores, que chamaremos aqui de Transposição 1 e Transposição 2, foram demagógicos, tecnicamente inconsistentes e se puseram a serviço de interesses espúrios. O Transposição 1 foi elaborado entre 1982 e 1985, depois de um período em que o São Francisco apresentou, durante 2 ou 3 anos, vazões de cheia excepcionais.

Vivia-se sob a falsa impressão de que havia grandes sobras de água no São Francisco. O Transposição 1 teve inspiração eleitoreira e foi promovido por grandes empreiteiras e fabricantes de equipamento. Faltava-lhe consistência e fundamentação técnica, bastando mencionar que havia propostas de obras para desvio de centenas de metros cúbicos por segundo.

O Transposição 2, elaborado em 1993 e 1994 incorreu nos mesmos pecados, com o agravante de que o tempo decorrido deveria ter inspirado um projeto melhor. Em vez disso, o Transposição 2 continuou, como seu antecessor, a ignorar como seriam utilizadas as águas desviadas, como se evitaria a especulação de terras, a indústria de indenizações e o domínio dos grandes irrigantes sobre os pequenos. Continuou faltando, como no Transposição 1, o estudo dos usos múltiplos, o debate com a sociedade e a análise dos impactos ambientais.

Agora, estamos no Transposição 3. Sr. Presidente, a idéia da transposição existe desde o século dezenove. Mas só em 1996, na terceira tentativa, começou a ser tratada com maiores cuidados técnicos. Está ocorrendo um saudável debate no seio da sociedade. Discutem-se os usos múltiplos e as implicações ambientais. Quanto à transposição em si adotou-se um critério básico correto, o da sinergia hídrica, que consiste na plena utilização, de forma otimizada, dos recursos hídricos locais das bacias a serem beneficiadas, servindo as águas transpostas do rio São Francisco como uma “retaguarda” de garantia.

São consideradas as vazões corretas do São Francisco, como vêm sendo medidas desde 1928: 1.850 m3/s de vazão média de longo período e uma vazão regularizada de 2.060 m3/s, garantida pelos reservatórios de Três Marias e Sobradinho.

Pretende-se um desvio máximo de 138 m3/s, mantendo-se a média de 57 m3/s. Ou seja, seriam desviados cerca de 60 m3/s, dirigidos para um ramal norte, que alimentaria os rios Jaguaribe, Apodi, Piranhas e Açu, e um ramal leste, que levaria água para o alto Paraíba. Portanto, seriam beneficiados, principalmente, os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Nada a obstar, quanto à transposição em si. Mas falta ao programa elementos indispensáveis: o estudo e a execução de medidas que se contraponham ao Estado de desequilíbrio hidrológico e ecológico em que se encontra o São Francisco. Seu estado de degradação certamente se agravaria com uma transposição açodada.

Um dos problemas mais sérios do rio é o do assoreamento, obstáculo crescente à navegação e ameaça à normalidade de suas vazões. O assoreamento decorre do desmatamento das margens e de diversas atividades humanas, como produção de carvão vegetal, mineração e agricultura. A calha do São Francisco vai sendo alargada e se tornando rasa. A pesca de subsistência vem decaindo vertiginosamente.

Para se garantir a navegação do São Francisco são necessários, além de medidas de proteção ambiental em toda a sua bacia, investimentos em obras em seu leito: dragagem, derrocamento, recuperação da eclusa de Sobradinho. O restabelecimento da navegação é fundamental para a economia da região.

Outra ameaça de degradação que paira sobre o São Francisco dá-se no seu trecho final, tem a ver com a relação de suas águas com o oceano. O perigo ali é que, com a redução das vazões, haja a penetração da chamada “cunha salina”, com perda grave da qualidade da água para abastecimento humano e para irrigação. Importantes projetos de irrigação em Sergipe e Alagoas seriam assim prejudicados.

A revitalização do São Francisco, Sr. Presidente, para que ele possa tornar-se o doador da transposição, é tarefa urgente, a começar pelos estudos pertinentes. Dados da Câmara dos Deputados indicam um custo de 2,8 bilhões de reais para a transposição e de 1,2 bilhão para as medidas de revitalização do rio. Os projetos de revitalização se estenderiam por 4 anos e incluiriam, além das obras já mencionadas para o leito do rio, o reflorestamento das margens, o saneamento básico nos municípios ribeirinhos e a fiscalização de empresas poluidoras.

Assegurada a revitalização, poderia se proceder à transposição. Vale observar que as obras de engenharia para ela necessárias, apesar de representarem um grande desafio técnico, estão entre os aspectos do projeto de mais fácil equacionamento. Elas consistem em estações de bombeamento para recalque, canais, aquedutos, túneis, barramentos e reservatórios intermediários.

A retirada de água do leito atual, ao longo do qual foram construídas uma sucessão de usinas hidrelétricas que sustentam a economia nordestina, implica, naturalmente, perda de energia gerada. As necessidades de bombeamento absorverão energia elétrica hoje destinada a todo o Nordeste. São problemas sérios, porém possíveis de serem adequadamente tratados.

Cada metro cúbico de água retirado a montante da usina hidrelétrica de Itaparica, e que deveria girar as turbinas das usinas sucessivas de Itaparica, Paulo Afonso, Moxotó e Xingó, representa uma redução de 2,5 megawatts contínuos de geração de energia elétrica. Isso, multiplicado por 60 m3, e ao longo de um ano, e mais o gasto de energia elétrica para bombeamento, representa cerca de 70 milhões de reais por ano. É um custo que terá que ser levado em conta. Além do mais, o Nordeste terá que, a médio e longo prazos, compensar a perda dessa energia com novas usinas.

Mas, Sr. Presidente, as dúvidas mais graves que pairam sobre a transposição são de outra natureza, e bem refletem o caráter complexo do projeto. São questões essenciais, que o povo brasileiro, que os nordestinos têm o direito de ver esclarecidas. Por exemplo, questão de suma importância para se decidir sobre a validade da transposição: qual a efetiva destinação das águas transpostas?

Sim, quanto irá para consumo humano e animal, que são os usos mais prementes e os que realmente justificam ética e economicamente o projeto? Quanto irá para irrigação? Pergunta relevante, pois, afinal, é evidente que, irrigar por irrigar, faz mais sentido fazê-lo em terras próximas ao local onde a água já se encontra. Quanto da água transposta irá para uso industrial? Quais as perdas por evaporação? Quais as perdas por infiltração? Quanto da água transposta irá ser despejada no mar, na foz dos rios Jaguaribe, Açu e Paraíba? É preciso que se tenha um verdadeiro orçamento da água, periodicamente revisado, em função da menor ou maior disponibilidade, a cada ciclo hidrológico.

E mais dúvidas. Que parcelas do investimento e do custo de operação serão incorporadas ao preço da água a ser pago pelos usuários? Afinal, se não houver subsídios, esse preço poderá ser proibitivo.

Outros questionamentos. Quem vai gerenciar o uso das águas transpostas. Quem vai executar as obras, operá-las e mantê-las? Se a operação e a manutenção não forem extremamente bem conduzidas, em poucos anos teremos “esqueletos” de estações de bombeamento, canais, túneis e aquedutos, sem qualquer utilidade.

Quais as salvaguardas adotadas contra especuladores e grileiros? Quais as defesas previstas para evitar a expulsão de pequenos proprietários e posseiros das áreas beneficiadas pela transposição? Como explicar que existam agora recursos para levar a água a centenas de quilômetros de distância, enquanto as terras próximas do rio permanecem não beneficiadas? Dos 3 milhões de hectares de terras irrigáveis da bacia do São Francisco, só uma pequena fração tem sido aproveitada. Da vazão do rio, apenas 5% são hoje dirigidos à irrigação.

O problema mais agudo, a dúvida mais grave, é a seguinte: tudo indica que fazer correr águas do São Francisco pelos rios Jaguaribe, Apodi, Piranhas, Açu e Paraíba não vai resolver a angústia da seca nas regiões que eles atravessam. Como a água vai chegar ao nordestino que vive a uma ou duas léguas das margens desses rios? Esse problema já ocorre, hoje, nas margens do São Francisco. Quem mora a uma ou duas léguas do rio, na seca, vê seu gado morrer, sua safra se perder, e se desespera.

Portanto, não é verdade que a transposição vai acabar com o carro-pipa. Da mesma maneira que a energia elétrica, para chegar e servir a todos, precisa de rede secundária e terciária, malha similar terá de ser implantada para a água. Como isso será equacionado? Qual será o modelo de gestão do uso das águas transpostas?

São muitas dúvidas, Sr. Presidente, pois o problema é complexo; ele se recusa ao enfoque simplista e emocional que muitos querem atribuir à transposição, considerando-a uma providência de redenção do Nordeste. Isso é um engano, uma ilusão.

A água do São Francisco é um bem comum e escasso. A transposição não comporta um tratamento maniqueísta de simples “contra” ou “a favor”. Se a transposição significar degradar ainda mais o rio, beneficiar empreiteiros, propiciar financiamento eleitoral e favorecer grandes proprietários que vão especular com terras, os nordestinos e os demais brasileiros devem se posicionar contra ela.

Por outro lado, se a transposição trouxer, com a necessária e prévia revitalização do São Francisco, reais benefícios para as comunidades do semi-árido dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, temos a obrigação de apoiá-la e colaborar para a sua concretização.

Esse apoio, no entanto, Sr. Presidente, teria como premissa a expectativa de que o Governo Federal pudesse agir nessa questão com seriedade e prudência. Infelizmente, é muito negativo o sinal que o Governo acaba de dar ao revelar a sua proposta de Orçamento Geral da União para 2001. Lá, procuramos indícios de prudência e seriedade no tratamento da transposição do São Francisco e não os encontramos.

O Orçamento reserva 300 milhões de reais para o início das obras de transposição e apenas 7 milhões para a revitalização do rio. Vê-se que o Governo está mais interessado em criar fatos políticos do que em preservar o rio, medida indispensável para um programa consistente de desvio de suas águas.

É um açodamento injustificável e predatório esse lançar-se a um projeto de tal magnitude, sem o devido amadurecimento, reservando-lhe mais de 10% de seu custo total logo no primeiro ano de obras. Parece que estamos voltando ao espírito demagógico dos projetos anteriores de transposição, que já mencionei.

O açodamento é ainda mais injustificado se considerarmos que estão semiparalisados, na bacia do São Francisco, projetos tão importantes como o Jaíba, em Minas Gerais, quase na fronteira com a Bahia; a Adutora do Oeste, em Pernambuco; e o Projeto Salitre, em Juazeiro. Os três, envolvendo irrigação e manejo de recursos hídricos, projetos de muita urgência e necessidade.

Sr. Presidente, a questão da transposição tem que ser tratada com racionalidade, profundidade e abrangência. Um plano responsável faria justamente o inverso do que o Governo ameaça fazer: um bom plano investiria a maior parte dos recursos iniciais na revitalização do rio.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso assinou, em 19 de maio de 1995, um documento intitulado Compromisso pela Vida do São Francisco, prevendo a execução de uma série de ações de preservação ambiental para toda a bacia do rio. Até o presente, o documento é letra morta. Será que o Presidente leu o que assinou?

Os valores reservados pelo Governo em 2001 para as medidas de revitalização e para as obras de transposição apontam para o pior: a transposição não está sendo tratada com seriedade e, mais adiante, ela poderá se transformar em imenso desastre a se abater sobre o Nordeste.

Mas, Sr. Presidente, devemos reconhecer que a transposição tem condições de ser, algum dia, um empreendimento sério e oportuno. Transposições do São Francisco para o Nordeste setentrional, assim como transposições de bacias do Centro-Oeste e do Sudeste para o São Francisco, poderão vir a favorecer o Nordeste, se bem estudadas, bem formuladas, suficientemente discutidas e acompanhadas pela sociedade, vigilantemente, na sua implantação, na sua gestão e no esforço de trazer reais benefícios ao povo sofrido da região.

Muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/09/2000 - Página 18704