Discurso durante a 131ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões sobre o processo político-eleitoral na Iugoslávia.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Reflexões sobre o processo político-eleitoral na Iugoslávia.
Publicação
Publicação no DSF de 10/10/2000 - Página 20112
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, CONCLUSÃO, CONFLITO, PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA, POSTERIORIDADE, PROCESSO ELEITORAL, EFEITO, ALTERAÇÃO, MODELO, ARTICULAÇÃO, NEGOCIAÇÃO, POLITICA INTERNACIONAL.
  • COMENTARIO, EFEITO, GLOBALIZAÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, CRESCIMENTO, INTEGRAÇÃO, DIVERSIDADE, CULTURA, AMBITO INTERNACIONAL.

  SENADO FEDERAL SF -

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O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na semana que passou, o mundo pôde testemunhar uma mudança profunda ocorrida na Iugoslávia.

Após um processo eleitoral cheio de conflito, cheio de turbulência, houve uma mudança de guarda naquele país, ou seja, o Presidente Milosevic foi derrotado nas urnas pelo Presidente Kostunica e possivelmente haja, de fato, uma mudança de método, de formas de conduzir o processo político e, quem sabe, um novo modelo de articulação e negociação política. Surgem algumas esperanças com essa nova realidade da Iugoslávia.

Sempre tive um particular interesse por aquela região, dado o fato de que é um centro nevrálgico e sensível da história do século XX. Foi ali que o conspirador Gavrilo Princip assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria, em 1914, propiciando todas as condições para o advento da chamada Primeira Guerra Mundial. Esse cidadão sérvio tornou-se, portanto, o centro das atenções do mundo, o centro de toda a responsabilização pela queda, pelo desfazimento, pela desestruturação do Império Austro - Húngaro, dando, assim, início à Primeira Guerra Mundial.

Mas, muito menos do que fazer algumas rememorações históricas e muito mais do que tentar aqui trazer de volta os fatos com muita clareza de memória, pretendo nesta intervenção, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, fazer uma reflexão sobre o ensinamento, o conteúdo didático deste recente episódio ocorrido na Iugoslávia.

Recentemente, quando estava no auge o conflito da província de Kosovo e a Otan decidiu intervir na guerra, recordo-me que boa parte dos políticos brasileiros ficou numa posição bastante neutra, para não dizer eqüidistante, com relação ao fato, com medo e, talvez, inseguros para apoiar uma ação do Governo, principalmente do Governo americano, a partir da Otan, com apoio do Japão, da França, da Inglaterra, das grandes potências mundiais. Como de um lado estava a mais tradicional elite do capitalismo financeiro, do capitalismo mundial, e, de outro lado, estava supostamente um velho dirigente ortodoxo do socialismo, boa parcela dos políticos brasileiros ficou em dúvida, ficou numa posição de insegurança, de incerteza quanto à racionalidade daquele gesto de intervenção na guerra de Kosovo.

Não foi o meu caso, Sr. Presidente. Manifestei-me, na época, quanto à necessidade de se mudar as estruturas políticas da Iugoslávia, da Sérvia principalmente, para que aquela região pudesse ter paz.

Um dos fenômenos mais importantes, mais expressivos, mais ilustrativos deste final de século, deste início de século XXI, que no dia 1º de janeiro de 2001 será inaugurado, talvez seja a marca mais sensível, o elemento mais destacável e mais destacado deste período histórico para os governos, para os teóricos, os políticos, os administradores, os pensadores em geral, os formuladores, os tomadores de decisão em qualquer nível e em qualquer lugar, um dos elementos mais gritantes do nosso tempo, um dos elementos mais exemplificativos desta realidade complexa que vivemos, é o multiculturalismo. Ou seja, as nações, os povos, os países, serão obrigados a entrar no século XXI dotados de um grande espírito multicultural: a aceitação plena da complexidade humana, a aceitação plena da diferença. Este será o elemento polar do processo político no próximo século: conviver com os diferentes, conviver até com os contrários, saber negociar, saber estabelecer razões transparentes e pacíficas de convivência. Este será, sem dúvida nenhuma, o mais expressivo problema político que enfrentaremos e que chamará a atenção nesses próximos meses e anos que viveremos no mundo ocidental, já que no mundo oriental essa complexidade não é tão real, não é tão expressiva.

O Ocidente é o universo da complexidade, é o universo da contradição, do conflito, da diferença, portanto, do multiculturalismo. É preciso que os povos aprendam a fazer conviver muçulmanos com católicos, hindus com muçulmanos, ortodoxos russos com católicos; é preciso que haja o direito e a plena aceitação da convivência multicultural. O país que não souber conduzir pacificamente, democraticamente esse tipo de relação humana será um país conflagrado, sob iminente ameaça de guerra civil.

E talvez seja essa a grande explicação para essa zona precisa dos Bálcãs, que é a Sérvia, hoje ainda conhecida como a República da Iugoslávia. A questão da convivência multicultural ali tem sido muito mal tratada. Muito próximo dali, na fronteira entre países como Hungria, Romênia e Bulgária, que também saíram de um regime comunista ortodoxo de 50 anos praticamente, nesses países não têm havido conflitos dessa natureza, não têm surgido oportunidade ou causa para guerras de tanta profundidade, violência e barbárie.

Será a causa disso tudo um ódio reprimido, retido durante muitos anos? Será a causa de tudo a diferença étnica, racial?

Na Romênia, exatamente na fronteira entre a Romênia e a Hungria, há uma região na qual a maioria é húngara, e os romenos ali convivem pacificamente com os húngaros; estabelecem padrões de sociabilidade, de intercomunicação social, aceitam as diferenças, distinguem os valores e os respeitam.

O que há ali na fronteira da Hungria que não há na Iugoslávia? A história é a mesma: 50 anos de socialismo, países de origem eslava, com grande presença histórica muçulmana, principalmente presença cultural do islamismo. Os povos da Bósnia, Croácia e Sérvia não têm diferença étnica propriamente dita, são eslavos, pertencem à mesma grande vertente racial, são pessoas da mesma origem. Assim, a diferença de raça não é precisamente a causa da facilidade para a guerra, para a morte, destruição e ódio, como tem sido visto naquele lugar.

O que tem causado, portanto, o conflito da Bósnia? Há muitos anos, em 1961, foi publicado um pequeno livro - não sei se foi traduzido para o português, conheço-o apenas em espanhol -, que comprei em Buenos Aires, numa daquelas livrarias em que se compram livros nos caixotes, intilulado El Puente sobre el Drina, uma tradução para o espanhol do romance de Ivo Andric, um grande escritor bósnio deste século. O Brasil não tem nenhum Prêmio Nobel, mas a Bósnia tem um Prêmio Nobel de Literatura: Ivo Andric, autor de A Ponte Sobre o Drina, uma história realmente reveladora das tensões, crises, conflitos, guerras, que remanescem há 400 anos de história da conquista otomana naquela região. O rio Drina tem uma ponte famosa, construída no século XVI pelos otomanos, a ponte de pedras brancas, que custou suor e sangue aos povos eslavos, então dominados pelo Império Otomano.

A Ponte sobre o Drina é uma história que começa sob o impacto dramático de um empalamento, chamado Empalamento Otomano. Quando os turcos otomanos invadiram aquela região dos Bálcãs, não só submetiam do ponto de vista militar, mas empalavam as mais expressivas lideranças políticas e militares, como exemplo da sua dominação. Será que a história do empalamento foi gerando esse ódio entre sérvios e mulçumano-bósnios, por exemplo?

            Neste livro de Andric, talvez haja alguns elementos e pistas para entender isso, mas seguramente não é o que explica a facilidade, a enorme disposição para a guerra que tem essa região. Não é. Porque, na verdade, passaram-se 400 anos desde a invasão otomana, e praticamente não há uma presença étnica de manifestação claramente turca, otomana, nessa região. O predomínio é realmente eslavo. O que permaneceu foi a religião. Portanto, é uma questão cultural e não étnica ou racial, e a dificuldade de fazer conviver diferentes culturas é o grande nó górdio não desatado na Bósnia, em Kosovo, enfim, nessa área da República da Iugoslávia que hoje se tornou alvo e parte de interesse do mundo inteiro.

Falam a mesma língua: fala-se na Bósnia o que se fala na Sérvia, o que se fala em Montenegro, o que se fala em Kosovo, que é essa língua servo-croata, mais ou menos padronizada e comum a todos esses povos. Portanto, também não é uma diferença lingüística.

A história política é mais ou menos semelhante: com a desestruturação do Império Austro-Húngaro, nos períodos que se seguiram à I Guerra Mundial, constituiu-se a divisão que existe hoje e se criou a República da Iugoslávia após a II Guerra Mundial.

Mas o fato é que ali se morre e se mata muito, não porque o Sr. Milosevic fosse um assassino contumaz, um homem disposto permanentemente a aniquilar pessoas e grupos sociais. O que o Sr. Milosevic não tem, não tinha e, possivelmente, jamais terá é uma formação democrática. Isso ficou agora inteiramente comprovado, pela sua inaceitação do resultado da eleição. Ele e sua mulher - cujo nome não me recordo, mas que ficou famosa pela suas posturas, pela sua ambição e pela influência que exerce sobre o marido, para que ele não abandonasse o poder em hipótese nenhuma - tornaram-se lendários e históricos pelo seu apego ao poder e seu profundo conteúdo antidemocrático, repito, profundo conteúdo antidemocrático.

O Sr. Milosevic foi um dirigente do partido comunista iugoslavo. Estou eu aqui a dizer que foi o comunismo que lhe deu essa formação? Estou aqui a dizer que foi o socialismo que lhe deu essa concepção autoritária do mundo, essa incapacidade de aceitar a convivência e a democracia? Não, porque a Romênia foi comunista, a Hungria foi comunista e a maioria húngara na Romênia não é aniquilada, não há guerra étnica, não há limpeza étnica na fronteira da Hungria com a Romênia. Ao contrário, a convivência pacífica é plena e elogiosa, é o pleno multiculturalismo deste final de século.

Então, o que realmente explica?

Quando se vê o que ocorreu na Tchecoslováquia também se tem outra lição. A Tchecoslováquia também foi, durante várias décadas, dominada pelo regime de partido único, mas nem por isso perderam-se o espírito e as instituições democráticas; manteve-se a espiritualidade da democracia. Os países da Europa têm uma grande tradição iluminista de pensamento liberal - e falo em liberalismo político. Muitas vezes, o liberalismo político está associado ao liberalismo econômico, mas nem sempre.

Talvez uma das heranças mais ricas da história européia do século XVIII seja o Iluminismo: Rousseau, Voltaire, Diderot, os grandes pensadores que formularam as bases dessa democracia ocidental, tradicional que conhecemos, do pensamento democrático liberal de respeito à vontade do outro, de respeito ao pluralismo, à complexidade, à diversidade de opiniões e de origens.

Na República Tcheca, hoje assim chamada, também houve uma divisão de território. A Tchecoslováquia constituía um país só e dividiu-se em dois. Dizem os tchecos que eles são muito diferentes dos eslovacos. O tcheco tem uma capacidade empreendedora, é grande individualista, é muito mais liberal do ponto de vista econômico; já o eslovaco é mais voltado para as organizações estatais. A Eslováquia depende mais da política estatal, é menos empreendedora e, portanto, menos liberal economicamente. Há grandes diferenças entre um povo e outro. Na então Tchecoslováquia, houve um Presidente chamado Vaclav Havel, que fez uma grande diferença. Era um diretor de teatro, dramaturgo, escritor e um grande pensador político liberal, capaz de negociar e entender as razões profundas e vitais da diferença e da necessidade de fazer conviverem harmônica e pacificamente os diferentes. A geração de Havel, na Tchecoslováquia, é herdeira exatamente desse espírito democrático, herdeira do pensamento iluminista, do pensamento democrático, do respeito à pluralidade e à diversidade. Como isso se manteve? Eles foram capazes de negociar sem derramar sangue e sem disparar um tiro sequer. Houve um acordo pacífico que surpreendeu o mundo. Entretanto, na Bósnia e em Kosovo, Iugoslávia, mortes e mortes foram necessárias.

Ao olharmos essa longa vertente, percebemos que em certos locais o iluminismo e o pensamento democrático foram inteiramente extirpados. Não quero dizer que tenha sido extirpado das bibliotecas, que tenha sido eliminado dos livros ou da memória política. Na república iugoslava não restou nas elites de poder, nas elites que desempenhavam politicamente o poder, ninguém capaz de restaurar essa memória do pensamento democrático liberal da grande tradição, da grande vertente iluminista da Europa. Só os aparatchik, só os burocratas, somente esse pensamento autoritário que tomou conta do país foi, pouco a pouco, suprimindo os professores, os dramaturgos, os contadores de História, os grandes repositários do pensamento democrático. Isso não ocorreu na Hungria, isso não ocorreu na Romênia, nem na Bulgária, nem na Tchecoslováquia, que hoje é República Tcheca e República da Eslováquia, mas ocorreu na Iugoslávia. E a enorme perseguição que se fez contra os representantes desse pensamento tradicional iluminista europeu levou praticamente a sua extinção.

E portanto essa, para mim, é a razão maior, sem dúvida alguma, para que o nacionalismo sérvio só saiba se impor mediante guerra e destruição. Espero é que o novo Presidente do país, Presidente Kostunica, seja minimamente portador da memória iluminista liberal e democrática de tradição européia para que possa gerir de forma negociada e estabelecer a convivência multicultural como é necessário no mundo de hoje. Um governante que não tiver essa habilidade, essa competência e capacidade não pode governar um país, não pode governar nem o Brasil nem qualquer outra parte do Planeta e muito menos os Balcãs, que são permanentemente barril de pólvora.

Sr. Presidente, faço esta pequena lembrança porque em um país em que toda a memória democrática é destruída, em que o padrão autoritário se impõe, em que uma concepção totalitária do mundo consegue sufocar e apagar inteiramente a concepção pluralista, em um país assim a herança é a morte, o ódio, a guerra, a destruição. Esse tesouro da humanidade que é o pensamento liberal democrático de conteúdo político precisa ser permanentemente conservado. Mas não se conserva um pensamento só em livros; é preciso que esteja na cabeça das pessoas. Tecnologia e teoria política, se não estiverem na cabeça das pessoas, não existem, não servem para nada. Pois na Iugoslávia, praticamente todos os pensadores liberais foram extirpados, foram suprimidos, foram banidos, foram eliminados da elite e da nomenclatura que governava o país. Conseqüentemente, deu no que deu.

Alguns procuram atribuir isso, com muita insistência, a diferenças religiosas, e até justificam isso, como eu disse, com as atrocidades praticados pelos otomanos durante sua invasão, atrocidades tão graves que levaram um escritor inglês a criar e a imaginar, na floresta da Transilvânia, na Romênia, a figura de Drácula. Seria o herdeiro da maldade otomana. Esse nobre que se transformaria em Drácula, na verdade, era apenas alguém que incorporara, que assimilara a maldade do anticristo otomano e se tornara, portanto, o Drácula, o anticristo. Essa figura do Drácula talvez sirva também para explicar um pouco aquilo que viveu a República da Iugoslávia, ou seja, o desaparecimento do pensamento tolerante, da capacidade de tolerar o outro sem se submeter a ele, de admitir o outro sem se subordinar a ele, de conviver com o outro sem ser servo dele. Esse ensinamento do pensamento democrático liberal tinha sido expurgado da Iugoslávia, e eu espero que volte agora com o novo Presidente da República.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

 


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/10/2000 - Página 20112