Discurso durante a 157ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Transcurso, ontem, do Dia Nacional da Consciência Negra.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Transcurso, ontem, do Dia Nacional da Consciência Negra.
Aparteantes
Lauro Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 21/11/2000 - Página 22656
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO, OPORTUNIDADE, DEFESA, CONTINUAÇÃO, LUTA, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL.
  • IMPORTANCIA, MOBILIZAÇÃO, ORGANIZAÇÃO, COMUNIDADE, GRUPO ETNICO, NEGRO, DEFESA, DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS, IMPLEMENTAÇÃO, ARTIGO, DISPOSIÇÕES TRANSITORIAS, RECONHECIMENTO, TITULARIDADE, PROPRIEDADE, QUILOMBOS.
  • COMENTARIO, TRABALHO, INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA (IPEA), DIVULGAÇÃO, PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DEMONSTRAÇÃO, CRESCIMENTO, CLASSE MEDIA, GRUPO ETNICO, NEGRO, ESTADOS, BRASIL.
  • IMPORTANCIA, INICIATIVA, GOVERNO, CRIAÇÃO, GRUPO DE TRABALHO INTERMINISTERIAL, VALORIZAÇÃO, NEGRO, INSERÇÃO, PROCESSO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL.

  SENADO FEDERAL SF -

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O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, já há algum tempo, na data de hoje, ou quando ela coincide com o final de semana, ocupo a tribuna para fazer uma homenagem justa. Refiro-me à comunidade afro-brasileira pelo transcurso do Dia Nacional da Consciência Negra.

Não há melhor homenagem, Sr. Presidente, que a de trazer o discurso por escrito para que aqui fique o meu pensamento, sem retoques, na avaliação que faço ao longo não só do meu mandato de Senador, mas também no de Deputado Federal, sobretudo como Relator da Assembléia Nacional Constituinte, quando então eram pálidas as manifestações em torno da consciência negra.

Por isso, começo lembrando que foi por iniciativa e autoria da então Senadora Benedita da Silva que o dia 20 de novembro, data da morte do grande líder negro Zumbi dos Palmares, foi incluído no calendário oficial das datas comemorativas brasileiras como dia nacional. A escolha dessa data é de grande significação para uma imensa parcela da população brasileira, que relembra o legado de Zumbi dos Palmares e sua importância como um dos maiores símbolos da luta pela liberdade e pela igualdade em nosso País.

Zumbi dos Palmares é figura emblemática na história dos negros neste Brasil e na história da rebeldia contra o escravismo da América Latina. Ele é, sem dúvida, um dos maiores heróis da luta pela liberdade e por uma sociedade mais justa.

Sabemos que, durante todo o período escravista, o quilombo marcou sua presença em toda a extensão do Território Nacional como sintoma da antinomia básica da sociedade escravista. Na revisão da História Social do Brasil, ocorrida nos últimos anos, vem sendo dada uma importância cada vez maior no papel desempenhado pelos quilombos na dinâmica da nossa sociedade. E, nesse contexto, o Quilombo dos Palmares sobressai aos demais e representa uma das maiores contribuições do povo negro para a formulação dos ideais de democracia, além de uma demonstração inequívoca da capacidade de uma etnia em superar todos os obstáculos e todas as desigualdades ao longo da nossa história.

Sr. Presidente, V. Exª, como médico, dá a devida dimensão ao sofrimento alheio; sofrimento como o daqueles que formaram o Quilombo dos Palmares. Eu não poderia deixar, pois, de ressaltar a atenção com que V. Exª me ouve, ainda que os demais estejam despreocupados com o que representou Zumbi dos Palmares, certamente porque lhe conhecem a vida e, portanto, não precisavam prestar maior atenção. Não se tome isso como descortesia, tal a capacidade da inteligência daqueles que, eventualmente, não querem, como o faz V. Exª, me premiar com sua atenção.

Sr. Presidente, eu não poderia deixar de destacar, neste momento, que, nas três últimas décadas, o dia 20 de novembro passou a ter uma comemoração mais significativa em nosso País.

A partir de 1971, começou a ser realizado pelo Grupo Palmares, em Porto Alegre, um ato público em homenagem ao Estado Negro dos Palmares. Foi, então, proposto que o dia 20 de novembro passasse a ser uma alternativa para as comemorações do dia 13 de maio, data da Abolição da Escravatura no Brasil.

O perseverante trabalho do Grupo Palmares, de Porto Alegre, fez com que o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, sete anos mais tarde, em 1978, propusesse para essa data a denominação de Dia Nacional da Consciência Negra, bem antes de sua inclusão formal no calendário oficial.

Ao prestar minhas homenagens a comunidade afro-brasileira, não poderia deixar de destacar também a importância da mobilização das chamadas “comunidades negras rurais ou remanescentes de quilombos” em nosso País, uma das mais importantes dimensões dessa luta pela afirmação da importância dos negros dentro da sociedade brasileira ao longo das décadas de 80 e 90.

Espalhadas pelo Território Nacional, essas comunidades começaram a se organizar e vêm lutando para defender suas terras daqueles que as cobiçam. Lutam em defesa dos direitos humanos, dos direitos civis em geral e também pela implementação do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Mais à frente, Sr. Presidente - e trouxe a Constituição para isso -, relembrarei um fato ocorrido na época da Assembléia Nacional Constituinte, quando éramos todos Deputados Federais Constituintes - Caó, Benedita e eu. Agora, fico, Sr. Presidente, apenas na citação do art. 68 do ADCT, que dispõe, textualmente, ao reconhecer:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Impende salientar que, por intermédio da Fundação Cultural Palmares, criada em 1988 pelo então Presidente da República, José Sarney, com a missão institucional de “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos, decorrentes da influência negra da formação da sociedade brasileira”, o Governo Federal vem progredindo nas questões legais e de cidadania e procurando atender as reivindicações daquelas comunidades.

Com ações afirmativas, o Poder Executivo vem garantindo a posse e a titulação dos espaços geográficos dos quilombos, possibilitando a permanência na terra e o cultivo desta para o sustento; cooperando para a preservação cultural dos quilombolas; e direcionando remanescentes para a vivência de valores de seus ascendentes, os africanos escravos que tanto trabalharam para o crescimento do nosso País.

O Sr. Lauro Campos (Bloco/PT - DF) - Permite V. Exª um aparte?

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM) - Em seguida darei o aparte, querido amigo e eminente Senador Lauro Campos, nosso mestre.

Sr. Presidente, mesmo sabendo que ainda há um longo caminho a ser percorrido para reduzir as discriminações e desigualdades inaceitáveis no limiar do ano 2000, é necessário reconhecer que o processo de construção da cidadania em nosso País está se consolidando.

Sabemos que a população afro-brasileira corresponde a cerca de 48% da população total do País, e que o problema racial no País está longe de ser resolvido. A população de origem negra é produtora de enorme riqueza social, política e cultural, sem que tenha, ao longo da história, participado efetivamente do gerenciamento dos resultados e dos benefícios dessas riquezas.

Há, porém, aspectos positivos a serem destacados. Um trabalho recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA -, divulgado em 18 de agosto deste ano pela revista Veja, mostra que a classe média negra das capitais brasileiras teve um crescimento relativo de 10% nos últimos sete anos. Ou seja, a classe média negra apresenta hoje uma fatia 10% maior do que em 1992.

As estatísticas recentes indicam que os negros da classe média somam oito milhões de pessoas. Estima-se que elas movimentem, por ano, quase R$500 bilhões. Entram, nessa conta, aqueles que possuem renda familiar acima de R$2.300,00, que correspondem a um terço da classe média do País, em termos gerais.

            Antes de conceder o aparte a V. Exª, veja eminente Senador Lauro Campos o que existe no nosso País, em que se diz que não há discriminação racial, porque o Brasil, sobretudo, é aquele que convive ao mesmo tempo tendo se miscigenado, tendo enfrentado, quando da vinda dos portugueses, e no entanto, se não há o chamado preconceito racial, é indubitável que existe o preconceito social. Observe que há uma grita que é absolutamente procedente daqueles que tendo a pele negra, mas a consciência branca e a alma lavada de qualquer impureza, sempre são discriminados nos tratamentos ora em hotel ora em banco ora em elevadores, o que demonstra que é muito fácil dizer que, no País, a inexistência da nossa discriminação racial é um fator ponderável. Não se pode, todavia, excluir, omitir, escamotear que essa discriminação existe. E tanto ela existe, Sr. Presidente, que eu tenho o prazer de ouvir o aparte do meu eminente e querido colega, Senador Lauro Campos.

O Sr. Lauro Campos (Bloco/PT - DF) - Eminente Senador Bernardo Cabral, quero congratular-me com V. Exª por essa iniciativa que, ao partir de V. Exª, apenas enfatiza e esclarece a sua preocupação sempre presente com os mais graves problemas da nacionalidade. Essa oportunidade que V. Exª nos traz para comemorarmos do ponto de vista negro, do ponto de vista escravo e não do ponto de vista branco, daqueles que concederam como um favor a abolição da escravatura, mas do lado daqueles que consideram a abolição como um processo ainda a ser completado, uma luta contínua, uma luta que hoje vemos e há muito tempo verificamos que engrandeceu o Brasil. O que realmente pretenderam os movimentos dos Quilombos, os movimentos de reação, de luta, foi a conquista da liberdade humana. Do meu ponto de vista, que sou utópico, parece-me que a humanidade sempre lutará até realizar esse sonho, essa utopia: a conquista da liberdade para todos. Obviamente, no Brasil percebemos que também ocorreu aquilo que nas Américas foi registrado: brancos cínicos vão à África seqüestrar negros e também matam os índios - seqüestro e genocídio, portanto; assim, colocam os negros trabalhando nas terras pertencentes aos índios para realizar a riqueza dos brancos. Não posso me estender muito, pois o discurso de V. Exª não deve ser interrompido, mesmo porque ele se afirma em termos elevados e proposições muito bem elaboradas, mas sabemos muito bem que a grande luta foi feita por eles mesmos. O doutor, professor, Presidente Fernando Henrique Cardoso mencionou em sua tese Escravidão e Capitalismo que o Capitalismo no Brasil realizou a abolição, porque não encontrou seus limites de exploração, de espoliação dos trabalhadores dentro da escravidão. Então, a economia dita livre permitiu uma maior exploração dos trabalhadores brasileiros do que ela era permitida pelo regime escravocrata. Vimos, então, que realmente houve esses momentos de afirmação, que continuaram felizmente na luta que é de todos aqueles que têm sensibilidade social como V. Exª demonstra, que possui e participa com sua consciência e com sua ação no substrato que nos identifica, que é a luta pela consecução da liberdade e para a superação de um sistema que estabelece a concorrência, mas retira dos negros escravos, a propriedade, qualquer instrumento de luta e de concorrência. Não me considero branco, nunca me considerei, mas sei que é uma espécie de cinismo falar que não me considero branco porque, obviamente, nunca passei pelas discriminações e pelos problemas que só aqueles que nascem com a pigmentação bem mais acentuada que a minha, é que podem ter a consciência negra. Assim, acompanho a luta de V. Exª na constituinte e em outros momentos da vida nacional e, portanto, quero parabenizá-lo por este pronunciamento que sei que é apenas mais um dentro do conjunto de afirmações que V. Exª tem feito ao longo de sua vida. V. Exª, mais uma vez, está de parabéns. Muito obrigado.

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM) - Senador Lauro Campos, só quero fazer um reparo ao aparte de V. Exª, que é denso, rico. O aparte só merece esta ressalva: quando V. Exª diz que não deveria interromper meu discurso. É o único reparo. Ele só faz enriquecê-lo.

Quando V. Exª fala em utopia, lembra-me aquele poeta que andava países afora visitando sempre as catedrais. E como poeta que queria compor uma poesia diferente, ele se dirigia sempre para observar os pobres que ficavam à frente, à porta das catedrais. E foi juntando, nas suas anotações, várias e diversas opiniões que ele carregava. Até que um belo dia, chegava defronte de uma catedral e viu que um dos pobres conseguia reunir em torno dele muito maior número do que o casual. Ao aproximar-se para ver do que se tratava, ele viu que o pobre que reunia mais pessoas, que recebia mais esmolas, tinha um papelão pendurado no peito com esta inscrição: “Faz-se hoje o início da primavera. E eu sou cego”.

Talvez, na sua utopia, pudesse dizer-se que, quando se concedeu a liberdade aos escravos, foi exatamente como se dissesse: “Estás livre, mas és cego para contemplar a beleza da liberdade”, tal era o tacão que vinha em cima de cada um.

Observe V. Exª que isso vai para lembrar Joaquim Nabuco, filho e homem de engenho, que lutou pela Abolição da Escravatura; e, mais tarde, Afonso Arinos de Mello Franco - também de tradicional família - com a chamada Lei Afonso Arinos. Mas foi na Constituinte, com o nosso Caó, com a nossa Benedita, que resolvi não só acolher a emenda, mas também a ela dar a minha defesa integral. Conseguiu-se, no art. 5º, que, queiram ou não queiram os que falam mal da nossa Constituição, é o melhor capítulo de direitos individuais e coletivos de que qualquer Constituição dispõe, dizer o seguinte: Art. 5º, inciso XLII: “A prática do racismo constitui crime inafiançável, imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.

Eis aí uma das maiores conquistas levadas ao âmbito institucional, para que não fiquemos exatamente nessa utopia que V. Exª falou, não fosse V. Exª, filho de jurista e homem altamente credenciado também pelo magistério, a fazer uma interrupção, uma interferência, que só enriquece qualquer discurso.

Quero agradecer-lhe, Senador Lauro Campos, pela maneira como V. Exª perfila-se a meu lado e verifico que não estou só na luta que é de todos nós. Quando na Constituinte, Sr. Presidente, debatíamos o problema dos negros, nossa Senadora Benedita da Silva fez um discurso pungente, fantástico, eloqüente, para que cortássemos as relações - colocando isso no texto constitucional - com a África do Sul, porque havia o apartheid ali terrível. Quase que ela vencia, não fosse eu, ponderado, ir à tribuna, modificar, segundo disse o então Senador Jarbas Passarinho, “o seu voto, que se inclinava pela aprovação”, ao dizer que era preciso ter cuidado, pois não agüentaria muito a África do Sul com o seu apartheid. Um dia cairia. E, quem sabe, se consignássemos no texto constitucional o rompimento, a ruptura das relações, não sofreríamos depois para corrigi-lo. Anos depois, Nelson Mandela é libertado, assume a presidência, e hoje temos boas relações com a África do Sul. Foi a ponderação que fez com que os negros neste país tivessem sempre, como uma bandeira de soldado ao sabor de todas as intempéries, o lado do castigo que lhes era infligido.

Por isso mesmo, Sr. Presidente, quando trago à colação a chamada imprescritibilidade e inafiançabilidade da prática do racismo, é porque se buscou, desde então, construir uma convivência igualitária e democrática entre os povos que formam a população de nosso imenso País.

A inclusão - estou terminando, Sr. Presidente - na agenda nacional de temas fundamentais como o da necessidade de investimento na reparação das desigualdades sociais é prova do que acabo de afirmar.

A criação do Grupo Interministerial para a Valorização da População Negra, em 20 de novembro de 1995, ano do Tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, também é considerada um marco significativo da expressão da vontade política do Governo de começar a promover, em parceria com os movimentos afro-brasileiros e a sociedade civil organizada, a inclusão do povo negro no processo de desenvolvimento nacional.

E é bom que se diga, ao finalizar, que, enquanto os carrascos, assassinos do Zumbi hoje estejam execrados, sua figura está sendo reverenciada no Senado Federal, que é a mais alta Casa deste País, sobretudo no âmbito do Legislativo, o que demonstra que os heróis têm encontro marcado com a posteridade e aqueles que sangram o povo têm apenas, quando ainda se lhes dá, o esquecimento, para não dizer a repulsa aos atos que cometeram.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, considerando que a compreensão de que a diversidade racial e cultural é fator de riqueza nacional, torna-se necessário e inevitável investir para compensar a exclusão sociopolítica a que a população afro-brasileira tem sido submetida como um passo decisivo que possibilitará ao Brasil entrar no novo milênio com perspectivas reais de desenvolvimento e de consolidação da democracia participativa.

Ao concluir este meu pronunciamento, gostaria de reiterar minhas homenagens à comunidade afro-brasileira neste Dia Nacional da Consciência Negra, fazendo votos de que, no próximo século, sejamos uma sociedade menos excludente e um País socialmente mais justo.

Por isso mesmo, Sr. Presidente, na forma regimental, peço a V. Exª que dê conhecimento deste pronunciamento - quando nada porque nele foi incluído o aparte do Senador Lauro Campos -, para que a comunidade negra saiba que o Senado da República, no Dia Nacional da Consciência Negra, prestou-lhe uma homenagem que além de justa é oportuna.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/11/2000 - Página 22656