Discurso durante a 157ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre a discriminação racial no Brasil, por ocasião das comemorações dos 300 anos da morte do herói negro Zumbi dos Palmares.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Considerações sobre a discriminação racial no Brasil, por ocasião das comemorações dos 300 anos da morte do herói negro Zumbi dos Palmares.
Publicação
Publicação no DSF de 21/11/2000 - Página 22682
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, SOCIOLOGIA, BRASIL, DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PREJUIZO, NEGRO, DEMOCRACIA, MANUTENÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, REGISTRO, DADOS.
  • DEFESA, POLITICA SOCIAL, BENEFICIO, NEGRO, ESPECIFICAÇÃO, AMBITO, EDUCAÇÃO.
  • ANALISE, ORGANIZAÇÃO, NEGRO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), ATUAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, CRIAÇÃO, ORGÃO ESPECIAL, LUTA, IGUALDADE, DIREITOS, CONSCIENTIZAÇÃO.
  • ANUNCIO, CONFERENCIA, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, EXPECTATIVA, ATUAÇÃO, GOVERNO, BENEFICIO, CIDADANIA, INCLUSÃO, NEGRO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente Srªs e Srs. Senadores, algumas décadas atrás, o Brasil era considerado pelas populações negras o paraíso, uma vez que não havia discriminação racial neste País abençoado por Deus. O pensamento surgira com a obra de Gilberto Freyre, que, utilizando argumentos culturalistas, chegara à conclusão de um singular padrão brasileiro de relações raciais, cujas raízes vinham do sistema patriarcal da Colônia, caracterizado por laços afetivos entre senhores e escravos.

           Com estudos patrocinados pela Unesco, na década de 70, o mito do paraíso racial começou a ser desfeito. Pesquisadores como Florestan Fernandes e Roger Bastide, com argumentos estruturalistas, concluíram pela prevalência da discriminação racial e da persistência da ideologia do “branqueamento”. Os estudos de Florestan despertaram a consciência de que as relações raciais constituíam um problema para os negros e para a democracia. Com o correr do tempo, verificou-se a existência de um racismo assimilacionista, do ponto de vista cultural e excludente, do ponto de vista socioeconômico.

           Historicamente, a eugenia brasileira surgiu com a abolição da escravatura, provocando a importação de colonos europeus para o trabalho da lavoura. O Brasil havia sido o país que recebera maior número de escravos entre os séculos XVI e XIX: cerca de 3,5 milhões; e o maior número de trabalhadores brancos que vieram para cá: cerca de 4,4 milhões, entre 1890 e 1920, corrobora o interesse das elites brasileiras em considerar inferiores as populações negra e indígena, atribuindo-lhes pouca ou nenhuma capacidade de trabalho. A imigração européia, especialmente no Sul do País, foi tão forte que deslocou o negro do mercado formal de trabalho.

           O movimento eugênico do Brasil, nas décadas de 20 e 30, segundo artigo de Edna Maria Santos Roland, publicado em Mercado de Trabalho, em junho deste ano, “assumiu uma face mais negativa que resultou de uma série de fatores: maior familiaridade com a eugenia americana e alemã; passagem das leis de imigração eugenicamente inspiradas nos Estados Unidos, em 1924; emergência de ideologias antidemocráticas no Brasil que culminaram na fundação da Ação Integralista; e redução da imigração de brancos, o que provocou preocupações com o destino racial do Brasil”.

           No Brasil, as relações sociais foram marcadas pelo autoritarismo que se encarregou de manter as desigualdades sociais. Os índios, os negros, os mestiços cultivaram um sentimento de inferioridade que lhes era imposto pelas classes dominantes. A impotência marchava pari passu com essa situação. A velada discriminação racial brasileira impunha sofrimento às vítimas, sempre alijadas do mercado de trabalho, por lhes faltar oportunidades iguais. As precárias condições de vida dessas pessoas só começaram a ser notadas com o retorno à democracia que não pode admitir tratamento desigual para os iguais.

           Para comemorar os 300 anos da morte do herói negro Zumbi, a Folha de S.Paulo, em colaboração com o Instituto de Pesquisas Datafolha, realizou, em 1995, uma pesquisa sobre a população negra brasileira. As conclusões foram interessantes: 89% dos brasileiros diziam haver preconceito de cor contra negros no Brasil, mas só 10% admitiram ter um pouco de preconceito. De forma indireta, porém, a pesquisa constatou que 87% dos entrevistados tinham algum preconceito. Nessa ocasião, inspirado na definição de “brasileiro homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, batizou-se essa atitude de “preconceito cordial”, uma feroz e amarga face da discriminação, porque sub-reptícia. É de se ressalvar que os 10% que se classificaram como discriminatórios, concordaram - numa demonstração de racismo cordial - que se deve melhorar a condição social do negro no País.

           Uma das grandes preocupações atuais tem sido o estabelecimento do número correto de negros na população brasileira. Como a metodologia utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE é a da autoclassificação, que apresenta a opção de cinco cores: branca, parda, negra, indígena e amarela, pairam sempre dúvidas sobre o número real de negros brasileiros, especialmente quando o termo pardo é rejeitado pela maioria dos entrevistados. O registro cor/raça é essencial para o estabelecimento das diferenciações de emprego e de salário, totalmente proibidas pela Convenção 111, a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Racial.

           Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, em seu livro Racismo e anti-racismo no Brasil diz que quando se usa a autoclassificação (emic) a tendência é para o embranquecimento. A autoclassificação censitária pode deturpar os dados, pois os mestiços ricos tendem a se definir brancos, cabendo a declaração de negros e pardos para as camadas mais pobres da população, gerando uma confusão entre raça e status.

            O trabalhador brasileiro, em geral, tem sido penalizado nas últimas décadas, pois falta-lhe trabalho. Mais que ele, o trabalhador negro e, em especial, a trabalhadora negra, duplamente discriminada, por ser mulher e por ser negra. Como o mercado de trabalho é uma forma concreta e simples de estabelecer discriminações, porventura existentes em uma nação, a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios - PNAD, conseguiu verificar dois tipos de discriminação no trabalho: contra os negros e contra as mulheres.

           Sergei Soares, técnico do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA, em nota técnica, denominada Discriminação de gênero e raça no mercado de trabalho, examina quantitativamente a Pesquisa do PNAD e conclui: “os negros ganham menos porque sua escolaridade é menor e porque estão em regiões ou setores industriais piores em termos salariais”. Mas adiante lembra: “o salário/horário de homens negros é menos que a metade do salário/horário de homens brancos”. E recomenda que: “o Estado concentre seus esforços onde mais pode e onde mais precisa - políticas públicas para negros e negras no sistema educacional”.

           Essa recomendação é oportuna, se considerarmos que são apenas 4% dos negros que conseguem entrar para uma universidade, em oposição a 13% de brancos. A discriminação tem sido tão cruel que há indícios de que os negros de hoje não conseguem manter o mesmo padrão de vida de seus pais. 

           No Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho no Brasil, realizado recentemente pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE, nas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Salvador, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte e Distrito Federal, uma conclusão é nítida: o preconceito racial prevalece no Brasil.

           Em relação ao rendimento médio mensal, os homens negros ganham entre 47%, em Salvador, e 76%, em Belo Horizonte, do salário dos homens não-negros. A situação das mulheres negras é pior ainda: recebem de 28% a 47% do salário pago aos homens não-negros. A diferença também é verificada em mulheres não-negras, embora em escala menor do que nas negras. Quanto ao rendimento médio mensal dos ocupados é praticamente a metade para os negros em relação aos não-negros e de quase um terço para as mulheres negras.

           Outro fator a ser considerado é a insignificante presença de negros em funções qualificadas. E, evidente, uma vez mais, a discriminação racial impede a ascensão profissional do grupo. O desemprego, por outro lado, também atinge mais fortemente a população negra. Em São Paulo, por exemplo, ainda segundo a pesquisa do DIEESE, a diferença entre as taxas de desemprego é de 19,6% para mulheres negras e não-negras e de 51,4% para homens negros e não-negros; em Salvador é de 36% e 57,9%, respectivamente. As menores taxas encontram-se no Distrito Federal, onde, também, a população negra é mais bem remunerada.

           Alguns movimentos negros como o Movimento Negro Unificado - MNU, o Grupo União e Consciência Negra, o Instituto Palmares de Direitos Humanos, o Raça Brasil, entre outros, têm-se manifestado mostrando a existência de um racismo desumano no Brasil. Conseguiram tornar públicos temas antes considerados privados. Graças à sua atuação, despertaram uma consciência sobre o significado da raça e as complexidades de identidade racial. Como no Brasil não houve um conflito violento no final da escravidão e como a convivência dos negros com os brancos foi pacífica, só recentemente a raça tomou consciência da necessidade de politização e de luta por direitos iguais.

           Muitos desses movimentos têm procurado desenvolver políticas de identidade étnica, a fim de atingir a igualdade social, derrubando o estigma de grupos considerados inferiores. E o atual Governo tem feito esforços no sentido de superar a discriminação racial, utilizando-se de algumas ações afirmativas, como a sensibilização dos funcionários públicos, por intermédio do Programa Brasil, Gênero e Raça. O Programa visa a despertar a sociedade civil para as práticas discriminatórias no trabalho e a adotar medidas concretas que promovam a igualdade de oportunidades para todos.

           O Grupo de Trabalho Interministerial - GTI para a Valorização da População Negra tem envidado esforços para garantir a igualdade de oportunidades a todos, embora ainda não tenha concretizado nenhuma mudança. As propostas de iniciativas na área de educação, trabalho, saúde e comunicação, que vão da criação de cursos noturnos nas escolas e do desenvolvimento de novo material didático à visibilidade positiva dos negros nos meios de comunicação e a sua presença obrigatória na publicidade oficial, ainda não saíram do papel.

           O negro brasileiro reduzido à escravidão, perdeu todas as oportunidades de manter a sua cultura. Teve que assimilar os ensinamentos dos senhores brancos. Alguns, descontentes e ciosos de preservar suas tradições, fugiram e organizaram os quilombos. Graças aos esforços de alguns poucos aventureiros foi possível manter a identidades negra pelos afoxés, grupos de raízes religiosas, que mantêm as tradições afro-brasileiras do candomblé, do idioma nagô falado pelos escravos iorubas. A culinária negra foi das poucas coisas imediatamente assimiladas das senzalas, uma vez que o sabor era especial e que o Brasil tinha produtos iguais ou semelhantes aos da África.

           Interessante notar que a população negra corresponde a quase metade de toda a população brasileira e ainda é considerada minoria e tem sido motivo de estudos acadêmicos profusos, quando deveria ser o foco de ações afirmativas que tirassem os negros da miséria em que vivem e lhes oferecessem melhores oportunidades, livrando-os da marginalização social, educacional, cultural e política. Precisamos pôr um fim definitivo a essa discriminação, tanto mais perniciosa quanto não assumida.

           Na realidade, não podemos permitir a existência de excluídos na sociedade brasileira. E excluídos estão todos os que vivem na faixa de pobreza. Como a maioria é negra, políticas públicas de combate à pobreza, de educação de massa, de acesso à saúde, de habitação popular, de saneamento básico, de oportunidade de emprego viriam beneficiar essa classe, sem necessidade de adoção de políticas discriminatórias, combatidas pelos sociólogos modernos e nem sempre bem aceitas pelas populações negras.

           Sr. Presidente, a Organização das Nações Unidas - ONU convocou a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância para agosto do próximo ano, na África do Sul. A decisão provavelmente baseou-se no Relatório “Para além do Racismo: Abraçando um Futuro Independente”, da Southern Education Foundation, resultado de um estudo elaborado, durante quatro anos, sobre as relações raciais no Brasil, Estados Unidos e África do Sul.

            Será uma oportunidade ímpar de o Governo brasileiro mostrar atos concretos no combate ao racismo e à discriminação racial. O momento é de reflexão, de aceitação das injustiças que vêm sendo cometidas contra os negros, de constatação da inércia com que esse grave problema vem sendo encarado. A desmistificação da democracia racial brasileira e o amplo diagnóstico de racismo e discriminação racial, obriga-nos a adotar, neste novo milênio, políticas públicas com garantias legais de igualdade; promoção de oportunidades educacionais, econômicas, culturais, empresariais, políticas, de emprego e treinamento; interação dos meios de comunicação, eliminando os estereótipos; e adoção de relações raciais igualitárias.

           Esperamos, Sr. Presidente, a continuação de ações afirmativas por parte do Governo Federal, na trilha de uma luta gloriosa por cidadania, que deverá ser pugnada não só nos meios acadêmicos e científicos, mas em toda a sociedade brasileira. Não podemos aceitar um país em que alguns grupos gozam de uma cidadania inconclusa. No limiar do novo milênio, precisamos encontrar o caminho certo para oportunidades e responsabilidades iguais. Precisamos manter a unidade nacional, cumprindo, definitivamente, a norma constitucional de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

           Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.

           Muito obrigado.


C:\Arquivos de Programas\taquigrafia\macros\normal_teste.dot 6/18/2412:52



Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/11/2000 - Página 22682