Discurso durante a 159ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem à escritora Rachel de Queiróz.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à escritora Rachel de Queiróz.
Aparteantes
Artur da Tavola, Bello Parga, Bernardo Cabral, Francelino Pereira, Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 23/11/2000 - Página 22837
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, RACHEL DE QUEIROZ, ESCRITOR, JORNALISTA, ESTADO DO CEARA (CE), ASSOCIADO, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL), ELOGIO, OBRA LITERARIA, CONTRIBUIÇÃO, FEMINISMO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, antes de mais nada, quero dizer que me sinto particularmente honrado, ao participar desta homenagem à escritora Rachel de Queiroz pela passagem de seus 90 anos. Penso que, ao homenageá-la, quem ganha é o Senado Federal, pois a figura dessa minha ilustre conterrânea só nos traz honrarias.

Homenagear Rachel de Queiroz, apesar de relativamente fácil, é, ao mesmo tempo, tarefa complexa. Fácil, porque prazerosa; difícil, porque Rachel é mulher em quem os adjetivos não colam facilmente. Ao tempo em que encontramos motivos de sobra para elogiá-la, temos dificuldade em encontrar as qualificações adequadas, pois seu espírito libertário repele quaisquer rótulos que se lhe queiram impingir.

            Rachel é pessoa múltipla. De suas atribuições profissionais, podemos considerá-la professora, jornalista, escritora. É uma cearense que se tornou carioca, sem nunca ter deixado o sertão, a fazenda Não me Deixes, lá no seu querido Quixadá, no centro do meu Estado, o Estado do Ceará. Como militante política, foi comunista na juventude, identificada, posteriormente, como liberal de esquerda; em 1964, apoiou Castello Branco - de quem era parenta e amiga - e, hoje, declara-se doce anarquista. Mulher pioneira. Rompeu com vários tabus. Como vêem, Rachel não é facilmente classificável. É uma só, mas, ao mesmo tempo, muitas pessoas. Mesmo assim, não resisto à tentação de pontuar uma grande qualidade de Rachel de Queiroz, traduzida por um adjetivo: fundadora. Arriscar-me-ei, então, a apresentá-la como fundadora.

Iniciemos, mais exatamente, com o marco fundador: O Quinze. Há pouco, o Senador Francelino Pereira me falava da suas veleidades literárias - que não são veleidades, porque S. Exª é um homem culto -, quando, na sua juventude, lia e se deliciava com O Quinze, escrito quando ela mal tinha saído da adolescência, sob a luz de um lampião, no Sítio do Pici, nos arredores de Fortaleza, utilizando seu próprio mundo, o cenário do sertão, as lembranças da seca e as histórias que ouvira. Esse livro representou verdadeira revolução literária no Brasil.

E Rachel tem dito, em muitas de suas entrevistas, que não gosta de ler o que escreveu. Não relê, não olha para trás, para a sua obra; escreve porque é da sua natureza escrever.

O Quinze é uma ação magistralmente conduzida em dois planos, ligados pela figura central de Conceição. E é por meio de sua experiência, de seus sentimentos que os personagens confluem. É Conceição, pela inevitável fusão da personagem com a autora, que, integrando numa humanidade única os dois veios da ação romanesca, a ambos torna reais, pois a receptividade da personagem é a mesma da romancista, imprimindo autenticidade a cada um dos mundos, tornando-os próximos.

Como observou Adolfo Casais Monteiro, grande crítico literário, O Quinze é o mais notável romance social brasileiro no bojo de toda aquela literatura, a chamada literatura do Norte ou o ciclo nordestino da literatura brasileira, em que está Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, com A Bagaceira, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, enfim, tantos nordestinos que se notabilizaram na literatura brasileira. As classes sociais não existem em fórmulas sublinhadas pela romancista, mas no irremediável das coisas, na espontaneidade dos próprios fatos, quer sejam exteriores ou interiores, que se passem na escala dos grupos ou na de cada indivíduo.

A maestria de Rachel se deve, de certa forma, à sua inocência, a de ter posto sua emoção sem a condicionar a uma tese, ou sequer à preocupação de procurar inocentes e culpados.

Muitos foram os desdobramentos da publicação de O Quinze, no já longínquo ano de 1930. A primeira impressão, bancada pela autora (com dois contos de reis que tomou emprestados dos pais), de mil exemplares, não chegou a levantar maiores elogios da crítica do Ceará. Foi a repercussão provocada no Rio de Janeiro, mais especificamente por um artigo de Augusto Frederico Schmidt, que conduziu o romance e, com ele, Rachel para a Literatura nacional. Os elogios de Schmidt não deixaram de ter eco junto a outros escritores, até então inéditos, como Graciliano Ramos, que confessa não acreditar tratar-se de romance escrito por uma mulher. Para ele, aquilo era escrita de homem. O que era tido como escrita de mulher traduzia-se por romances açucarados e não um relato denso e árido sobre a seca e suas agruras, como é o caso de O Quinze.

Visitemos outros trabalhos da autora: João Miguel é emblemático na carreira da escritora, que, então engajada no Partido Comunista e comprometida com a causa dos trabalhadores, vê seu romance censurado, justamente por seus companheiros, que não o consideravam suficientemente proletário. Ela mesma narrou como foi convocada pela direção do Partido Comunista, que desejou enquadrá-la; ela deveria refazer a sua obra para torná-la mais proletária, mais de acordo com a visão do Partido Comunista. E, aí, ela terminou deixando o Partido Comunista, justamente porque não aceitava condicionar a sua criatividade àquelas linhas políticas “stalinistamente” definidas pelo comando do Partido no Rio de Janeiro.

O romance seguinte, Caminho de Pedras, embora a autora negue, traz, de alguma forma, a denúncia desse tipo de censura que ela sofreu.

O romance As Três Marias, que tem traços autobiográficos, relata a história de três amigas, alunas internas do colégio; diz-se que era ela, a escritora Alba Frota e a D. Odorina Castello Branco, viúva de Leão Sampaio, Deputado Federal pelo Ceará, representando o Cariri por muitos anos e depois sucedido pelo seu filho Mauro Castello Branco Sampaio, hoje Prefeito da cidade de Juazeiro do Norte. Em 1939, viria à luz As Três Marias, aparentemente fechando a carreira de romancista de Rachel, pois passariam mais de três décadas até o romance seguinte, lançado em 1975.

O Galo de Ouro, publicado na forma de folhetim na revista O Cruzeiro, a partir de 1950, também guarda sua beleza. Segundo relata Rachel, em Tantos Anos, esse romance em folhetim se originou de seu desejo de conhecer a Europa, pois, após a Segunda Guerra, segundo ela, todo mundo já tinha ido à Europa, menos ela e o marido, o médico Oyama. De uma queixa pública feita em O Cruzeiro, ela obtém um contrato para escrever o folhetim e angariar o dinheiro necessário à viagem. Embora revele que tem preguiça de escrever e que só escreve por obrigação, mesmo quando a encomenda de um livro é dela mesma, mantém-se sempre ativa nesses mais de 70 anos como escritora.

Bendita preguiça, que tem produzido tantas obras e de tanta qualidade!

Dôra, Doralina, de 1975, retoma a aparentemente interrompida carreira de romancista, que viria a ser coroada, dois anos mais tarde, com uma vaga na Academia Brasileira de Letras.

O Senador Artur da Távola fez um gesto de quem gostaria de apartear-me, o que para mim é motivo de grande alegria.

O Sr. Artur da Távola (PSDB - RJ) - Não vou apartear V. Exª, porque é uma maldade fazê-lo. V. Exª fez alusão à preguiça, a que a própria Rachel se refere. Não é preguiça. O estudo de um psicólogo chamado Rollo May mostra muito com o que ele chama de ócio criativo, uma espécie de espaço no qual as pessoas de criatividade operam e laboram e que nada tem a ver com os espaços da sociedade na organização em que vivemos, com o tempo todo tomado...

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Espaços operacionais.

O Sr. Artur da Távola (PSDB - RJ) - Operacionais. Rachel é, até nisso, uma mestra. Desculpe-me, mas não quero interromper V. Exª. A preguiça dela é o ócio criativo maravilhoso que permite aquelas obras. Obrigado.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado pelo aparte de V. Exª. V. Exª não me interrompe, mas sim acrescenta, como sempre.

Memorial de Maria Moura, seu romance mais recente, além de sucesso editorial, tornou-se minissérie de televisão.

Não poderíamos deixar de falar das heroínas, ou anti-heroínas, de Rachel de Queiroz.

Em O Quinze, Conceição é a figura principal, que foge ao destino convencional das mocinhas de sua época. Com suas leituras socialistas e idéias inovadoras sobre casamento e demais papéis femininos, dá a medida de uma nova mulher: intelectualizada, independente, com pensamento próprio, o que, aliás, remete às figuras femininas da família de Rachel. Segundo a autora, ainda menina, sua mãe retirou-lhe as leituras açucaradas para moças e lhe deu As Cidades e as Serras, de Eça de Queiroz.

A Noemi, de O Caminho das Pedras, vem a ser um dos motivos da rejeição do Partido Comunista à obra, pois trazia uma heroína burguesa e não o modelo de heroína proletária.

Lampião era para se chamar Maria Bonita, dando realce à cangaceira, mas acabou levando o nome do protagonista masculino. Mas a Maria Bonita de 1953 seria vingada em 1992 ,com o Memorial de Maria Moura, em que uma chefe guerreira é a indiscutível protagonista. Maria Moura, segundo Rachel, nasceu sob inspiração da pernambucana Maria Oliveira, uma chefe de família que, numa das primeiras secas de que se tem notícia, em 1602, saía com a família saqueando fazendas.

Em depoimento aos Cadernos de Literatura Brasileira, a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda relata como veio a se apaixonar pelas matriarcas nordestinas, segundo a leitura de Rachel de Queiroz. Para Heloísa, nos relatos de Rachel, tais matriarcas - fazendeiras ricas - não aparecem como cruéis e autoritárias, como nas narrativas populares, mas como mulheres fortes, que exerciam o poder, até então negado pelas estruturas machistas. A figura feminina seria, pois, na obra de Rachel motivo de afirmação das mulheres, mesmo que a autora lhes negue qualquer conotação feminista.

Nós, principalmente os que somos do Nordeste, conhecemos muitas dessas figuras, dessas matriarcas do sertão nordestino que exercitavam o poder, a força e a liderança com grande determinação e competência. Hoje, realçamos muito a ascensão da mulher no mundo moderno, os novos espaços que ela está conquistando. No entanto, as matriarcas que estavam lá, naquelas casas de fazenda do interior do Nordeste, na verdade, exercitaram o poder político, o poder temporal com determinação, energia e grande capacidade de mando.

Rachel de Queiroz costuma dizer que a sua profissão mesmo é jornalista. De fato, é como cronista que se tem mantido ativa. Nos últimos dias, em O Estado de S.Paulo, fez uma crônica muito interessante sobre os tecnocratas que, depois, querem transformar-se em políticos. E lembra 30, dizendo que naquela época eram os militares que queriam mudar, alterar tudo, revolucionar, modernizar o País, trazendo uma mensagem de renovação contra os carcomidos, assim chamados na época. Atualmente, no entanto, diz ela, são os tecnocratas, os que gravitam na área da economia e da administração, que, de repente, descobrem que deveriam transformar-se em políticos. Afirma isso em uma de suas crônicas mais recentes e muito interessante.

De seu ofício de cronista regular, seja de O Ceará, O Cruzeiro ou O Estado de S.Paulo, foram publicados vários livros, como A Donzela e a Moura Torta (1948), 100 Crônicas Escolhidas (1958), O Brasileiro Perplexo (1964), Mapinguari (1964), O Caçador de Tatu (1967), As Meninas e Outras Crônicas (1980), As Terras Ásperas (1993). Além do texto leve, machadiano, como classifica Carlos Heitor Cony, em seus escritos, temos a mulher de seu tempo, que é Rachel de Queiroz, sempre preocupada com as questões que mais afligem as épocas em que escreve. Se era na década de 40, a tônica era a participação ou não do Brasil na Grande Guerra; se era o Governo de Getúlio Vargas, o autoritarismo do caudilho; se era o desenvolvimentismo de Juscelino, a fragilidade dos programas; se são os tempos da Internet, a sua influência sobre a juventude. Enfim, são sempre assuntos candentes de cada tempo. Lembraria, a propósito desse compromisso de Rachel, o poema de Carlos Drummond de Andrade, Mãos Dadas, em que declara:

O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Profícua também foi a atividade de Rachel de Queiroz como tradutora, quando teve oportunidade, por escolha própria e aceitação de seu editor, José Olympio, de verter para o português autores como Jane Austen, Balzac, Emily Brönte, Dostoievski e Júlio Verne, entre outros.

E aqui vai uma homenagem ao nosso grande tradutor - pouca gente sabe disso -, o Senador Bello Parga, exímio tradutor, principalmente da língua inglesa, da literatura inglesa. Este trecho do discurso também homenageia V. Exª como tradutor, dos melhores que conheço: em recente entrevista para os Cadernos de Literatura Brasileira, Rachel de Queiroz declara que essas traduções a teriam de algum modo influenciado, pois se sentia como que “desmanchando a costura, desfazendo o crochê de certos escritores, descobrindo os pontos, os truques prediletos deles”.

            Embora sua produção para teatro se resuma a Lampião e A Beata Maria do Egito, essas duas peças consagraram seu talento para os diálogos, que é o forte dos seus romances. Segundo ela, só não escreveu mais porque ninguém encomendou. Se encomendassem, escreveria mais. Só não escreve para a televisão, pois esse é um trabalho coletivo, para o qual ela não tem paciência.

Saindo um pouco da esfera literária, embora isso pareça impossível, se encararmos sua atuação do ponto de vista da condição de mulher, encontraremos o retrato de uma polemista. Heloísa Buarque de Hollanda, ao traçar uma espécie de itinerário de Rachel, assinala que, mesmo não assumindo posições ditas feministas, nossa homenageada contribuiu muito para afirmar a posição da mulher na sociedade brasileira, começando pela profissão. Ser jornalista, há sessenta anos, era atividade reservada a homens. Portanto, a atuação de Rachel como repórter, mesmo por pouco tempo, significou a abertura de um campo antes reservado aos homens. A coragem de se lançar como escritora de um romance como O Quinze, que não era “escrita de mulher”, também representou um avanço - na época, houve quem duvidasse, no Ceará, que o romance fosse de autoria daquela adolescente, que ela tivesse escrito uma obra tão densa, com tanta repercussão, sobre um dos dramas mais recorrentes no Ceará e no Nordeste, que é a seca. Sua militância em um partido clandestino revelava, do mesmo modo, uma atitude corajosa. Separar-se do marido, na década de 30, também não deixava de ser uma atitude ousada.

Em seus romances, lembramos, as figuras femininas exercem papel marcante, mesmo que não sejam protagonistas. Em tom de brincadeira, Rachel afirma que suas heroínas são tudo o que ela queria ser e nunca foi. Bem, posso dizer que ela não terá sido nenhuma matriarca nem tampouco uma chefe guerreira no sentido tradicional, mas com certeza é mulher que sabe exercer seu poder.

Ressalte-se que, ao longo de sua vida, Rachel sempre exerceu um certo poder, algo que lhe é mais natural do que atribuído, que lhe veio, como de diz, “de berço”. Na esfera pública, a proximidade com o poder manifestou-se mais pela sutileza de suas influências do que pelo exercício direto de algum cargo ou atribuição. Amiga de políticos, sempre opinou sobre questões fundamentais. Combateu Getúlio e o fascismo no Estado Novo; apoiou a eleição de Jânio, mas se opôs a Jango, a quem considerava a reedição dos males do getulismo; apoiou Castello, mas afastou-se dos militares quando a “linha dura” assumiu o comando. De cargos públicos não teve outros além do de membro do Conselho Federal de Cultura e outro de representante brasileira numa missão junto à Organização das Nações Unidas, a ONU. Convidada por Jânio para ser Ministra da Educação, resistiu, dizendo que não tinha vocação para ser “mulher pública”.

O Sr. Bello Parga (PFL - MA) - Iria justamente fazer menção a esse convite que ela recusou.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - V. Exª ratifica a informação.

Mas seu caráter de fundadora confirmou-se na eleição para a Academia Brasileira de Letras em 1977. Não obstante aquela casa ter tido em seus quadros intelectuais de primeira grandeza, até então havia resistência de ferro à entrada de mulheres na Academia. Havia mesmo a alegação de que a expressão “brasileiros natos”, dos estatutos, era o impeditivo para a entrada de uma “brasileira” - há sempre um sofisma, não é? Por décadas, desde 1930, quando a escritora Amélia Bevilácqua propôs seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, essa questão gramatical impediu a entrada de uma escritora brasileira na Casa de Machado de Assis.

Contrariando o ritual de ingresso na Academia, que inclui visita aos acadêmicos, distribuição de afagos e pedidos de votos, Rachel, apresentada a sua candidatura, foi para o Ceará, de onde voltou vitoriosa. Rebelde e avessa a cargos, fez com que seu amigo Austregésilo de Athayde lhe assegurasse que não seria obrigada a assumir um cargo na Academia, conforme prevêem os estatutos.

Impondo-se como escritora, atuou pioneiramente, pois, após sua entrada, a presença de escritoras tornou-se tão natural que uma delas, a escritora Nélida Piñon, já ocupou a presidência da entidade. Rachel desconversa sobre a conquista feminista desse ato; alega que foram os amigos que a elegeram; que foi seu mérito literário e não a causa feminina que venceu. Enfim, não há como negar o poder dessa conquista para a luta das mulheres brasileiras.

Não poderia concluir esta homenagem sem falar do reconhecimento de sua obra em forma de prêmios que ela recebeu. Citarei apenas alguns, pois não são poucos. Destaco o Prêmio Fundação Graça Aranha, pelo O Quinze, em 1930; Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, em 1957; o Jabuti de Literatura Infantil, em 1969; o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano, da Associação Brasileira de Escritores, em 1992, pelo Memorial de Maria Moura; e o Prêmio Camões de Literatura, prêmio binacional a ela atribuído em 1993.

            Há muitas outras rachéis sobre quem falar, além da escritora, da militante política, da conquistadora. Carlos Heitor Cony, por exemplo, aponta Rachel como a madrinha dos escritores brasileiros. Não no sentido de proteção a amigos, mas no sentido de modelo de dignidade profissional. Existe a Rachel família: a irmã dedicada, a fazendeira do “Não me Deixes”, que é a propriedade dela no seu querido Quixadá e que ela, num gesto de grande importância, já transformou, perante o Ibama, em reserva ecológica particular - embora ela detenha a propriedade do bem, ele já não pode ser transformado, alterado, modificado, porque passou a ser uma reserva ecológica, nos termos da lei, o que dá uma idéia da preocupação dela também com a questão ambiental. Rachel mudou-se para o Rio de Janeiro há 60 anos, mas nunca saiu de lá. Quer dizer, ao mesmo tempo, ela é carioca e quixadaense; está no Leblon e está no “Não me Deixes”. Talvez nessa dualidade é que se encontre a fortaleza de sua criatividade, de sua imaginação, de seu vigor literário.

Poderíamos ficar horas por conta dessa homenagem, mas vou parar...

O Sr. Francelino Pereira (PFL - MG) - Senador Lúcio Alcântara, V. Exª me concede um aparte?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Ouço V. Exª com prazer, Senador Francelino Pereira.

O Sr. Francelino Pereira (PFL - MG) - Senador Lúcio Alcântara, não é fácil chegar aqui às 14h30min, como determina o Regimento, pois os nossos compromissos e afazeres são tormentosos. Conseqüentemente, as sessões de 14h30min são pouco povoadas. Mas eu não poderia deixar de estar aqui para louvar a iniciativa de V. Exª e prestar uma homenagem à sua coestaduana, uma figura brasileira que exerceu - e ainda exerce - um grande papel na literatura brasileira e que, ao longo de sua vida, muito nos tem ensinado, como integrante da Academia Brasileira de Letras. Quero confessar a V. Exª que esta é uma oportunidade para algumas evocações, porque todos nós que nascemos no Nordeste brasileiro - tomamos o caminho do Ceará, depois desistimos do Ceará e fomos a Minas Gerais, que talvez seja a melhor terra do mundo - temos uma recordação imensa de Rachel de Queiroz. Seu romance O Quinze foi naquele momento o de maior repercussão do regionalismo brasileiro. Por meio de Rachel de Queiroz foi que chegamos a Jubiabá, de Jorge Amado; chegamos a Graciliano Ramos; chegamos a A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Foi por aí, entre a veleidade literária e a veleidade política, que chegamos a Minas Gerais, onde a luta em nome dos libertadores do Brasil que saíram de Ouro Preto nos transformou em lidadores contra a ditadura Vargas. E essa luta foi tão forte, tão profunda, tão dramática que nos retirou o caminho da literatura para permanecermos na vida política, como estamos hoje, aqui, diante de V. Exª, na tribuna do Senado da República. Quero felicitá-lo pela iniciativa. Lamentar que por motivo de doença Rachel de Queiroz, famosa deste Brasil inteiro, não possa estar presente, mas representada por um Senador do Ceará, filho de um grande amigo, Waldemar Alcântara, e que, também nesta hora, gostaria de estar presente, aqui, na homenagem a esta grande cidadã do Nordeste brasileiro que é Rachel de Queiroz. Um abraço.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado, Senador Francelino Pereira, pelas referências que fez. A literatura perdeu, certamente, um grande valor, mas a política ganhou com a participação de V. Exª, que já tem dado tantas provas de sua fibra como homem público, como um dos políticos mais importantes no País por tantas funções relevantes que já exerceu e pela competência e dedicação com que aqui, no Senado, representa o glorioso Estado de Minas Gerais.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Ouço o Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Senador Lúcio Alcântara, V. Exª já deve ter percebido que sou, na lista de oradores, o segundo inscrito para tecer considerações sobre essa notável cearense que é Rachel de Queiroz. Eu digo que estou inscrito, porque quero registrar que estava inscrito. O discurso de V. Exª é sempre de grande densidade, e médico que é, a anatomia do seu discurso mostra forma perfeita e precisão no conteúdo. Não é apenas o conterrâneo que homenageia uma grande escritora, uma mulher corajosa que empurrou, pari passu, as portas da Academia dizendo: "Abram as portas que eu quero passar." Não, não é apenas o cearense. Quero, como amazonense, deixar de usar a palavra, nesta hora, para registrar a beleza do seu discurso e faço mais, nobre Senador Lúcio Alcântara: quero lhe pedir permissão para que o meu aparte seja incluído nessa sua obra literária e de oratória e digo o porquê, dou-lhe as minhas razões: o projeto não fica sem justificativa. V. Exª sabe as ligações que existem entre o Ceará e o Amazonas. O seu pai, inclusive, foi colega de velhos companheiros da Faculdade de Medicina que lá ficaram. V. Exª, mesmo, tem essa relação e não quero nem fazer menção àquela epopéia dos "soldados da borracha", que os cearenses implantaram no Estado, nem mesmo a minha própria sogra, cearense, mãe de Zuleide, que também ali fincou as suas raízes. De que forma eu lhe poderia prestar esta homenagem? Sabe que foi Quintino Cunha, um poeta, seu conterrâneo....

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Pelo Solimões.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - ...cearense que fez o melhor poema sobre o encontro das águas dos dois rios: rio Negro e rio Solimões. Pois ali chegando, no encontro dos dois grandes rios, ele, Quintino Cunha, que estava ao lado da sua mulher amada, o navio, e era prática que se fizesse isso, parava, e ele compôs o poema “Encontro das Águas”, de que lhe dou a primeira e a última estrofe. Chamou a Maria, do tombadilho olhou para baixo, e disse: “Vê bem, Maria, aqui se cruzam. Este é o Rio Negro, aquele é o Solimões. Vê bem como este contra aquele investe com uma saudade, com recordações”. E ao final ele dizia: “Se esses dois rios fôssemos, Maria, todas as vezes em que nos encontramos, que Amazonas de amor não sairia de mim, de nós, que nos amamos”. Está saindo uma Amazonas de poesia, de literatura do seu discurso, Senador Lúcio Alcântara, e não me atreveria, falta-me ousadia para tanto, para falar depois dele. Portanto, está aí a justificativa. Se V. Exª acolhê-la, deixe que eu figure no seu discurso com o meu simples, mas sincero aparte de quem lhe cumprimenta e lhe dá os parabéns pela obra que realizou Rachel de Queiroz.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado, Senador Bernardo Cabral pelo aparte, que só contribui para tornar ainda mais denso o pronunciamento que faço nesta tarde e também porque, ao lado das belezas literárias das passagens que V. Exª citou, do nosso Quintino Cunha, autor de Pelo Solimões, há também um lado trágico na nossa relação - Amazonas e o Nordeste, Amazonas e o Ceará -, em que V. Exª se refere àquela migração atabalhoada, fugindo da seca para morrer, muitas vezes, na abundância das águas do Amazonas. Mas V. Exª, como Relator da Constituinte, tem uma página escrita em relação a esse problema - assim como o Senador Nabor Júnior, que não se encontra aqui neste momento - quando tratamos dos “soldados da borracha”, o antigo Serviço de Mobilização de Trabalhadores da Amazônia, que recrutou o Semta e o Caeta. Esses serviços recrutaram milhares de nordestinos, de cearenses.

Os estudiosos estimam que morreram, no Amazonas, fruto da inadaptação e da falta de assistência, daquela exuberância da natureza, onde se escrevia, como disse Euclides da Cunha, o “último capítulo do gênesis”, dez mil cearenses: justamente os chamados “soldados da borracha”, que foram, afinal, contemplados na Constituição de 1988, para que os que porventura existissem ou seus descendentes pudessem ter o reconhecimento da pátria. Enquanto na Segunda Guerra Mundial, o Brasil deve ter perdido cerca de 500 homens na Itália, na mobilização de nordestinos para a Amazônia morreram dez mil, fruto da falta de assistência do Governo.

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - V. Exª me permite um aparte?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Nobre Senador Ney Suassuna, V. Exª, como paraibano, não poderia deixar de falar nesta tarde, porque no Ceará, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, do Senador Geraldo Melo, que há pouco presidia esta sessão, são os Estados onde a seca incide com maior abrangência, força e intensidade, trazendo tragédias ainda não de todo banidas da nossa vida.

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Nobre Senador Lúcio Alcântara, a convivência com V. Exªs nesta Casa é extremamente agradável, instrutiva, maravilhosa, mas é muito difícil. Sou o terceiro inscrito e ao ouvir o discurso de V. Exª pensei que não tinha mais nada a dizer. Assim, levantei o microfone quando começava a falar o Senador Bernardo Cabral, mas ele me precedeu no ato. É difícil a convivência, porque tudo o que pensamos em fazer V. Exªs já fazem naturalmente e com muito mais propriedade. Mas, como terceiro orador, que agora pede o cancelamento da sua inscrição, já que tudo o que poderia ser dito V. Exª está dizendo, não posso deixar de louvar o seu discurso e a grande Rachel de Queiroz, que completa 90 anos. Para nós, nordestinos, é um orgulho, porque todos sabemos, no sudeste, no leste, no sul, que somos vistos como se fôssemos de outro país. E essa notável senhora quebrou todos esses preconceitos, não só obtendo sucesso, mas, mais do que isso, sendo a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Ela não é uma glória só do Ceará, mas de todos nós brasileiros, e muito mais de todos nós nordestinos. Por isso, ao pedir o cancelamento da minha inscrição, faço-o porque V. Exª fala por todos nós e com uma propriedade que nenhum de nós seria capaz de fazer. Mais uma vez parabenizo V. Exª e nossas homenagens também à incrível, fabulosa, maravilhosa e exuberante mulher nordestina que é Rachel de Queiroz.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado, Senador Ney Suassuna, pela participação de V. Exª, pela bondade dos conceitos que emite sobre o nosso pronunciamento. A palavra de V. Exª é importante, porque é representante de um dos Estados mais castigados pela seca, que está na raiz da obra de Rachel de Queiroz e na ligação forte que ela tem com a terra.

Já falamos, por mais de uma vez, que Rachel, apesar de estar no Rio de Janeiro há mais de sessenta anos, continua uma quixadaense, uma sertaneja, uma mulher profundamente identificada com o sertão cearense, que é, de certa forma, o mesmo sertão da Paraíba, que V. Exª representa.

Que Deus dê muita saúde a Rachel, que infelizmente não pôde estar aqui, mas teremos a oportunidade de ouvir e ver uma mensagem que gravou no Rio de Janeiro, dirigida ao Senado Federal.

E, mesmo que ela não venha nos premiar com um novo romance, que possamos ter a graça de continuar a ler suas deliciosas crônicas, que retratam o nosso tempo e nos fazem refletir sobre formas de recuperarmos a dignidade deste País. Afinal, Rachel é um patrimônio vivo da literatura brasileira.

Para concluir, lerei um poema sobre Rachel de outro nordestino, Manuel Bandeira, que está em Estrela da Vida Inteira, José Olympio, 1980, p. 237:

“Louvo o Padre, louvo o Filho,

O Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel, minha amiga,

nata e flor do nosso povo.

Ninguém tão Brasil quanto ela,

pois que, com ser do Ceará,

tem todos os Estados

do Rio Grande ao Pará.

Tão Brasil: quero dizer

Brasil de toda maneira

- brasílica, brasiliense,

brasiliana, brasileira

Louvo o Padre, louvo o Filho,

o Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel e, louvada

uma vez, louvo-a de novo.

Louvo a sua inteligência,

e louvo seu coração.

Qual maior? Sinceramente,

meus amigos, não sei não.

Louvo seus olhos bonitos,

louvo sua simpatia.

Louvo a sua voz nortista,

louvo o seu amor de tia.

Louvo o Padre, louvo o Filho,

o Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel e, louvada

duas vezes, louvo-a de novo.

Louvo seu romance: O Quinze

e os três: louvo As Três

Marias especialmente,

mais minhas que de vocês.

Louvo a cronista gostosa.

Louvo seu teatro: Lampião

e a nossa Beata Maria.

Mas chega de louvação,

porque, por mais que louvemos,

nunca a louvaremos bem.

Em nome do Pai, do Filho e

do Espírito Santo, amém”.

            Bela Rachel, louvada seja.

(Palmas)

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senador Lúcio Alcântara, V. Exª me concede um aparte?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Permita-me, Senador, também louvar a escritora Rachel de Queiroz, por meio das suas belas palavras e de seu testemunho, como cearense, a respeito de uma das mais importantes, criativas e talentosas escritoras brasileiras. V. Exª presta uma merecida e bonita homenagem a Rachel de Queiroz. Meus cumprimentos, inclusive em nome do Partido dos Trabalhadores.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado, Senador Eduardo Suplicy, pela manifestação de V. Exª, que só vem dar maior realce a Rachel, nossa homenageada. Tínhamos nos pronunciado os nordestinos, o Senador Bernardo Cabral, que é híbrido - representa o Amazonas, mas tem vínculos muito fortes com o Nordeste, com o Ceará - , e agora V. Exª, que traz a palavra de São Paulo. Hoje, Rachel de Queiroz é cronista de O Estado de S.Paulo, talvez o jornal mais identificado com a forma de ser paulista, da cultura paulista. Então, o aparte de V. Exª tem uma importância muito grande.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Felizmente, O Estado de S.Paulo tem-nos permitido dialogar intelectualmente com as palavras de Rachel de Queiroz, que honram o caderno dois daquele jornal.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Muito obrigado, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/11/2000 - Página 22837