Discurso durante a 160ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários ao livro do pensador social Anthony Giddens, intitulado "Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de nós".

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Comentários ao livro do pensador social Anthony Giddens, intitulado "Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de nós".
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/2000 - Página 23085
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • REGISTRO, LANÇAMENTO, LIVRO, AUTORIA, ANTHONY GIDDENS, SOCIOLOGO, ANALISE, EFEITO, GLOBALIZAÇÃO, AMBITO INTERNACIONAL, CRESCIMENTO, DESIGUALDADE SOCIAL, NECESSIDADE, ATENÇÃO, RISCOS, DESTRUIÇÃO, MEIO AMBIENTE, COMENTARIO, EXISTENCIA, UTILIZAÇÃO, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, AUMENTO, PARTICIPAÇÃO, POLITICA, VALORIZAÇÃO, DEMOCRACIA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há muito que o pensador social Anthony Giddens tem freqüentado os círculos mais agitados da economia política dos governos ditos liberais de centro. Pelo menos desde a ascensão do atual primeiro-ministro inglês, o trabalhista Tony Blair, sua visibilidade intelectual e política ganhou destaque universal, influenciando realidades e destinos de diversos países de nosso mundo globalizado. Até o próprio Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, tem por Giddens uma estima sublime, a ponto de o considerar como verdadeiro conselheiro.

Mais recentemente, numa de suas viagens ao Brasil, Giddens aproveitou a ocasião para lançar sua mais nova publicação, Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de nós. É exatamente sobre esse livro que pretendo, agora, lançar alguns comentários, ensaiando entabular um diálogo profícuo com o autor nesse turbulento fim de século.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a relevância dessa obra adquire ainda mais gravidade quando observamos que, sem dúvida, trata-se de um dos livros menos entusiasmados do autor com o fenômeno da globalização. Recordemos que Giddens, na qualidade de autêntico “guru” de uma geração de dirigentes auto-intitulados “socialdemocratas”, tem exercido uma força indiscutivelmente poderosa sobre as mentes de parcela considerável das elites ocidentais. No caso do Brasil, o Presidente Fernando Henrique nunca escondeu sua preferência pelas teses pragmáticas de Giddens, com quem tem mantido contatos freqüentes. No entanto, o impacto de sua última publicação não chegou a ser avaliada junto à opinião de sua fiel clientela.

De qualquer forma, o próprio título da publicação causa algo de desconcertante em todos nós. O reconhecimento do “mundo em descontrole” funciona, de chofre, como uma alerta contra o estado de coisas na conjectura da globalização. Trata-se, na verdade, de uma coletânea de conferências proferidas, em 1999, pelo professor Giddens para a rede BBC. Tais conferências, que acontecem anualmente, despertam o interesse de todos, porque necessariamente se debruçam sobre temas e problemas que afetam o estado do mundo em que habitamos.

Sr. Presidente, já na introdução do livro, Giddens faz questão de se filiar à esteira do Iluminismo, comprometendo-se à máxima que diz: “quanto mais formos capazes de compreender racionalmente o mundo, e a nós mesmos, mais poderemos moldar a história para nossos próprios propósitos.” Nesse sentido, se associa às empreitadas intelectuais executadas por Marx e Weber há quase cem anos.

Isso é, não naquilo que eles afirmavam quanto ao papel da tecnologia e da ciência sobre a paulatina estabilidade e ordenação do mundo. Não. O pensador inglês se enfileira com os outros dois no âmbito da disposição intelectual rumo à compreensão da realidade, para que a gerência do mundo seja alcançada em sua mais eficaz plenitude, atendendo aos princípios fundamentais da ordem iluminista.

Dividido em cinco partes, Mundo em descontrole foi organizado com os seguintes tópicos. Pela ordem: a) globalização; b) risco; c) tradição; d) família; e e) democracia. Evidentemente, o primeiro capítulo, que se dedica à globalização, é considerado o de peso maior, pois analisa com muito mais crítica as características desse novo sistema. Vale a pena retomarmos algumas das idéias de Giddens sobre o assunto. Estamos impelidos rumo a uma ordem global que ninguém entende muito bem, mas por cujos efeitos somos todos afetados. O mais visível, naturalmente, se prende ao consumo de informações em rede por meio de aparelhos de televisão, computadores personalizados e vídeos. Mas isso não é tudo. Acompanhemos o raciocínio do notável pensador social passo a passo.

Para Giddens, não há dúvidas, “globalização é sob muitos aspectos não só nova, mas também revolucionária”. E ele justifica, argumentando que a comunicação eletrônica instantânea altera a própria estrutura de nossa existência, quer sejamos ricos ou pobres. Mais que isso, sistemas tradicionais de família estão sujeitos a transformações espetaculares, bem como o ressurgimento de identidades culturais locais move-se a passos muitos rápidos. No entanto, ele não discorda de que as forças econômicas, de fato, representam as forças propulsoras do novo modelo globalizado.

E aí surge sua primeira constatação crítica: “a globalização não está se desenvolvendo de uma maneira eqüitativa, e está longe de ser inteiramente benéfica em suas conseqüências”. A americanização do mundo se faz muito agressiva nos domínios da ordem global, caracterizando as empresas multinacionais gigantes como invariavelmente norte-americanas. A isso, acrescentem-se os dados estatísticos que anunciam que a participação da quinta parte mais pobre da população do mundo na renda global caiu de 2,3% para 1,4%, entre 1989 e 1998. Na África, 20 países apresentam renda per capita mais baixa que no final da década de 70.

Além disso, Giddens observa que, inevitavelmente, os riscos ecológicos nos países periféricos estão intimamente ligados à crescente desigualdade acentuada pela sociedade global. Por outro lado, embora não consiga encontrar muita ressonância no que afirma, insiste em frisar que a globalização está se tornando cada vez mais descentralizada, aplicando-se ao sistema financeiro global e a mudanças que afetam a natureza dos governos. Nessa linha, critica aqueles que defendem o protecionismo como tática de resistência contra a globalização econômica.

Diante desse quadro, Giddens acredita que, em nossa contemporaneidade, as nações enfrentam muito mais riscos e perigos que inimigos. Para ele, desde o fim da guerra fria, não podemos mais classificar as relações dos países como um estado permanente de guerra. Em vez disso, uma sociedade eminentemente cosmopolita parece ocupar maior espaço, exigindo em contrapartida instituições públicas que possam fazer face às transformações de um sistema social globalizado. Como ele bem define: “a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje; é uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida.”

No segundo capítulo, Giddens vai-se debruçar sobre a questão do risco ecológico diante do qual a globalização tem-nos arrastado. Por causa do desenvolvimento industrial global, alteramos o clima do mundo, danificando uma parte considerável de nosso planeta. O conceito de risco nessas circunstâncias não somente se opõe ao conceito de segurança, mas também se inscreve dentro de sua acepção mais profunda: a sua face dinâmica, mobilizadora de ações sociais que visem mudanças no futuro, intervenção no rumo de nosso destino. Isso se aplica, igualmente, ao plano dos interesses econômicos, às atividades de mercadores e negociantes.

Em suma, a idéia de risco sempre esteve muito envolvida com o surgimento da modernidade. Mas, hoje, sua conotação ganhou contornos distintos e mais sérios. Trata-se do que se convencionou chamar de “risco fabricado”, para cujo enfrentamento o homem não possui suficiente experiência histórica. Em vez do risco externo, que se traduz no risco experimentado como vindo de fora, da rigidez da tradição ou da natureza, o risco fabricado corresponde àquele gerado pelo próprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre o mundo. Giddens alega que o caso da destruição ambiental se enquadra perfeitamente nessa categoria de risco, implicando alterações não somente no âmbito da natureza, como também no âmbito das instituições sociais, tais como o casamento e a família.

Desse modo, as inundações e as secas deixaram de ser apenas fenômenos tipicamente explicados pela força da natureza. Pelo contrário, se converteram em tragédias “fabricadas” pela intervenção desmedida do homem na ordem natural das coisas. O acidente com a usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, o efeito estufa, cheias dos rios, avanço dos desertos, a contaminação dos alimentos e a Aids, todos esses fenômenos foram incorporados por Giddens na categoria de risco fabricado, na medida em que se instauraram no exato momento em que o homem decide interferir, em escala global, nos processos naturais da reprodução orgânica.

Para tanto, a ciência e a tecnologia exercem papel igualmente extraordinário nesse processo, difundindo a artificial certeza de que dominamos a chave do conhecimento de tudo. Acontece que nem a ciência, tampouco a tecnologia, se responsabilizam pelos efeitos perversos de seus discursos e práticas. No entanto, o próprio Giddens esclarece que isso acaba por suscitar o aparecimento do princípio do acautelamento nas pessoas, que desconfiam dos riscos de saúde embutidos na globalização.

Com a difusão desse risco, os governos não podem fingir que a administração deles não lhes compete. Há uma urgência por mais colaboração entre as fronteiras nacionais, para que a solução dos problemas apareça o mais rápido possível. Nessa direção, o autor defende a tese de que os governos e as sociedades devem criar instituições que nos permitam monitorar a mudança tecnológica com mais segurança. Em resumo, o risco não é absolutamente negativo em nossa atualidade, mas precisa ser disciplinado.

O terceiro capítulo versa sobre a questão do impacto da globalização sobre a tradição. Após um breve relato histórico, Giddens demonstra que o capitalismo sempre imprimiu sua marca na produção dos costumes e na cultura ocidentais. Na raiz etimológica da palavra “tradição, o autor vai encontrar sua associação com a imutabilidade das leis coletivamente estabelecidas. Nessa ordem, nenhuma sociedade tradicional era inteiramente tradicional, reforçando a idéia de que as tradições e os costumes foram inventados por uma diversidade de razões e interesses.

Para garantir sua imutabilidade e seu valor de verdade, as características formais da tradição são o ritual e a repetição. Contra tal autoridade, o projeto iluminista finca suas estacas ideológicas. Com o advento da globalização, Giddens entende que duas mudanças básicas estão ocorrendo nessa área. Nos países ocidentais, as instituições públicas e a vida cotidiana estão radicalmente se libertando do jugo da tradição. Não se trata do fim da tradição, mas sim de sua reacomodação num mundo atravessado por diversidades culturais.

Isso, naturalmente, produz certo esvaziamento do discurso tradicional, se sucumbindo à voz da ciência e da tecnologia. Triunfo do Iluminismo, autonomia e liberdade podem substituir o poder oculto da tradição por uma discussão e um diálogo mais abertos. Contudo, o lado oculto da tomada de decisão consistiria no culto à dependência e à compulsão, causadas pela expansão descontrolada da ansiedade global. Mais uma vez, a estrutura da dependência restaura a influência do passado sobre o presente, destruindo o valor emancipador da autonomia individual.

Nesse jogo de contradições e ambivalências, Giddens enfatiza o caso da revitalização de religiões fundamentalistas como resultado direto da globalização: ao mesmo tempo que reage contra ela, se utiliza de seus instrumentos. Por fim, o autor se pergunta se a modernidade pode sobreviver sem o culto ao sagrado, como tanto pretendiam os iluministas e os cosmopolitas, entre os quais se inclui o próprio Giddens.

No quarto capítulo, intitulado “Família”, o leitor é convidado a refletir sobre casamento, grupos sociais e sexualidade dentro do mundo globalizado. Aqui, Giddens discorre sobre a igualdade sexual, a regulação da sexualidade e o futuro da família. Depois de um relato histórico sobre o tema, dispara a seguinte constatação: “a separação entre sexualidade e reprodução está a princípio completa no ocidente”. Para ele, a família abandonou sua forma anterior, na qual era pensada como entidade econômica e se transformou num núcleo mais flexível de relações e formatos.

Nesse sentido, o casamento informal ocupa lugar relevante em quase todo o mundo, privilegiando a unidade do casal baseada na comunicação e na intimidade emocional. Da mesma maneira, a relação dos pais com as crianças mudou drasticamente. Nos países ocidentais, o nascimento de um filho implica, hoje, um grande encargo financeiro, o que exige, por parte dos pais, um planejamento previamente definido sobre as reais condições de sustento.

Mais preocupado em discutir a comunicação emocional dentro das esferas das relações no mundo globalizado, Giddens sustenta que os relacionamentos sexuais, de pais e filhos e os da amizade se comprometem, agora, com os valores da franqueza, da confiança ativa e da democracia. Denominado relacionamento puro, promove o diálogo e o respeito entre as partes, enfatizando a democracia das emoções, aposentando de vez o velho modelo autoritário. Embora o risco de turbulência seja alto, o autor registra que poucos são aqueles que desejam retornar aos papéis sexuais tradicionais, ou ao estado de desigualdade legalmente definida.

No quinto e último capítulo, Giddens discute a democracia, salientando que, pelo menos desde a queda do muro de Berlim, o mundo tem experimentado a participação política por intermédio dos meios de comunicação de massa, globalmente estruturados. A difusão da democracia tem garantido sua definição como sistema que envolve competição efetiva entre partidos políticos por cargos de poder. Para ele, não restam mais dúvidas sobre a supremacia da democracia como sistema de organização política.

De maneira generalizada, os estados nacionais estão invariavelmente adotando a democracia como modelo político institucional. Apesar de alguns realizarem muito lentamente a transição para a democracia, sua disseminação é indiscutível, pois a transformação se deu na mentalidade das pessoas. Giddens argumenta que, com a globalização, a vida deixou de ser vivida como destino fixo e determinado. Não sobra mais lugar para sistemas autoritários, que congelam a competição econômica na era da eletrônica global. A necessidade da flexibilização e da descentralização na economia resvalou para a esfera da política, desabando todo o sistema de poder baseado no monopólio da informação.

Em que pese a maior disseminação da democracia, há suspeitas de que suas instituições padecem de uma descrença generalizada. Para Giddens, isso é fruto de uma interpretação equivocada da realidade. Pois o alegado ceticismo dos jovens não se confirma quando política é associada a ecologia, a direitos humanos e a liberdade sexual. Nesse contexto, o que se faz necessário nos países democráticos é, segundo o autor, um aprofundamento da própria democracia. Trata-se da democratização da democracia, que envolveria o soerguimento de um projeto moral transnacional contra a corrupção, o corporativismo e as redes de favoritismo.

No fundo, implicaria a promoção de um processo de descentralização efetiva do poder e transparência nos assuntos políticos, por via de reforma constitucional. Além disso, Giddens chama a atenção para a construção de uma vigorosa cultura cívica, a partir da qual se pode cogitar da quebra das tradicionais dualidades antagônicas, tais como estado e mercado, público e privado, família e sociedade etc. Por sua vez, a mídia assume papel crucial no processo de democratização da democracia, por meio de sua poderosa rede de informações.

Em suma, para o autor, a democracia não é assunto para ser debatido entre quatro paredes nacionais, mas sim acima delas. É sob tal lógica que defende a radicalização da democracia como uma fonte de eterna inspiração contra os pessimistas de plantão, que se satisfazem com críticas que acirram ainda mais o descontrole de nosso mundo.

Para concluir, em que pese a histórica associação do autor com os ideais liberais da globalização, a leitura de Mundo em descontrole emite a impressão de que nem tudo são flores na rota da transnacionalidade. O incômodo gerado se reflete na voz de Giddens, que parece menos confiante no processo e mais inclinado a uma crítica pontuada dos problemas. Enfim, embora seu otimismo permaneça firme na globalização, Giddens já demonstra que é necessário se fazer alterações no curso de nossa história globalizada.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/2000 - Página 23085