Discurso durante a 165ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Presta homenagens pelo transcurso do centenário de nascimento do ex-Senador Milton Campos.

Autor
Francelino Pereira (PFL - Partido da Frente Liberal/MG)
Nome completo: Francelino Pereira dos Santos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Presta homenagens pelo transcurso do centenário de nascimento do ex-Senador Milton Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 01/12/2000 - Página 23493
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, MILTON CAMPOS, EX-DEPUTADO, EX GOVERNADOR, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), EX MINISTRO, EX SENADOR, ELOGIO, VIDA PUBLICA, DEFESA, DEMOCRACIA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. FRANCELINO PEREIRA (PFL - MG. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, mineiro e amigo, Carlos da Silva Velloso, Sr. Presidente e também meu fraternal amigo, líder Jarbas Passarinho. Desde logo a emoção de ver e abraçar a família amiga, quase, diria, parente por afinidade de Milton Campos, primeiro o Professor Raul Machado Horta, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, o maior constitucionalista da atualidade, respeitado e glorificado pelo Brasil inteiro.

            Um abraço fraternal e carinhoso a Maria Regina Campos, filha de Milton Campos e esposa de Raul Machado Horta. José Campos Horta Filho - que aqui está, à nossa frente, por favor levante-se e olhe para o povo para que conheçam o Milton Campos da juventude. Sr. Luiz Antônio Sampaio Campos; Srª Juliana Campos Horta de Andrade, filha de Raul Machado Horta; Luiz Souza Lima Lobato, genro de Raul Machado Horta; Tereza Campos Horta Lobato, esposa de Luiz de Souza Lima Lobato e filha de Raul e de Regina; Maria Campos Horta Lobato, neta de Regina e de Raul. Juiz Delmival de Almeida Campos, do Tribunal de Alçada; ex-Senador Murilo Badaró, biógrafo de Milton Campos, e que, convidado, honra esta Casa, para autografar o livro Milton Campos, O Pensador Liberal, que está aqui, na sala do café, para ser autografado por S. Exª; Sr. Ministro Humberto Souto, um dos homens mais competentes, lúcidos e honrados que conheço em toda a minha vida; Sr. Israel Pinheiro Filho, representante do Governador Itamar Franco, filho de Israel Pinheiro que traduz a imagem da linhagem de João Pinheiro, que pertence à história político-cultural e honradez dos mineiros; Sr. José Maria do Couto Moreira, Diretor da Imprensa Oficial de Minas Gerais, filho de Vivaldi de Moreira, autor do livro - Vivaldi é Presidente da Academia Mineira de Letras, está doente em Belo Horizonte. E José Maria está aqui para autografar o livro de Vivaldi que foi reeditado pelo Senado da República para ser autografado na manhã de hoje.

            Sr. Ministro Homero Santos, que presidiu o Tribunal de Contas da União, e vice-presidente da Sasse; meu caro Benedito Domingos, vice-governador de Brasília e mineiro por inteiro; meu amigo Orlando Vaz Filho, inteligente, competente, advogado militante, professor respeitado e um título a mais: é esposo de Isabel; Sr. Dr. Reginaldo de Castro, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, obrigado pela presença; Sr. Dr. Rubens Machado, Presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo; Sr. Dr. Afrânio Melo, Presidente da Ordem dos Advogados da Paraíba; Sr. Dr. Delmival de Almeida Campos, juiz do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais e representante da presidência daquela Casa; e uma ausência sentida, a de Celso Cordeiro Machado, uma das figuras mais exponenciais da cultura e do saber jurídico do meu Estado, Presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, que se transformou no centro mais importante da divulgação do nome de Milton Soares Campos; Srªs. e Srs. Senadores, senhores funcionários, senhores jornalistas, ouçam-me, por favor.

            Para falar de Milton Campos, nos 100 anos de seu nascimento, primeiro, é preciso evocar Minas Gerais. Nenhum homem público deste findante século XX, incorporou tanto quanto ele o espírito e a dimensão de Minas. No século anterior, da História do Brasil independente, esse homem foi Bernardo Pereira de Vasconcelos. Milton e Vasconcelos, cada um a seu tempo, cristalizam e dão contextura e personalidade à política mineira, que chega a todo o Brasil. A menção a Bernardo Pereira de Vasconcelos sugere, antes e simultaneamente, a evocação de Minas em toda a sua dimensão política, econômica, social e cultural. Sua consistência, sua profundidade, sua história. É preciso render-se a essa história, povoada pelos espíritos daqueles que sempre lutaram pela libertação do Brasil, inconfidentemente.

            É a nossa Ouro Preto, de onde saíram os libertadores do Brasil. A liberdade, as confidências e as inconfidências são outros tantos nomes de Minas. Por mais que se perscrute o homem e seu destino, sempre há muito a confidenciar e inconfidenciar. Contudo, guardamos o sentimento de que o enigma de Minas é indesvendável. Por isso mesmo, Alceu de Amoroso Lima, prudente e lúcido, confessa em A Voz de Minas que jamais teve a pretensão de desvendar o mistério e o enigma de Minas. Nós, em Minas, temos uma visão perfeita desse enigma quando estudamos a figura fascinante de Milton Campos e somos instados, até mesmo desafiados, a definir o significado da presença desse mineiro na vida pública, na política, nos costumes e no exemplo que ele legou ao País.

            Reitero que para falar de Milton Campos é necessário antes conhecer Minas. E o Brasil conhece Minas. A Minas altiva, que não se curva, irredenta, que não se rende, conciliadora e ao mesmo tempo inconfidente nos instantes de rebeldia; a Minas do grave senso da ordem e, por vezes, o mais insubmisso Estado da federação. Não é sem razão. De Minas ecoam sempre as palavras e as ações mais candentes em repúdio à opressão e ao totalitarismo.

            Não me canso de repetir que ninguém nivela as montanhas de Minas. Milton que sempre viveu as altitudes, jamais se distanciou da natureza e da história desses desafios. Corajoso, lúcido e altivo, sempre esteve na linha de frente nos grandes momentos de decisão de Minas e do Brasil.

            Sr. Presidente, não resisto à emoção a começar pelo histórico Manifesto dos Mineiros, de 24 de outubro de 1943. Rompeu ele o silêncio das oposições inconformadas, contestou publicamente o regime ditatorial e abalou as estruturas do Estado Novo. A rebeldia e a insurreição de Minas contaminaram a Nação: era o começo do fim da ditadura Vargas. Milton Campos de tudo participou e, afinal, elaborou a redação definitiva do Manifesto pela fusão dos textos produzidos por Odilon Braga, Dario de Almeida Magalhães e Virgílio de Melo Franco.

            Minas foi o centro da rebelião, no silêncio incômodo das montanhas e nas articulações com as lideranças democráticas que representavam o inconformismo da Nação. A reação ao documento histórico de elevado conteúdo político e de corajoso enfrentamento da ditadura era esperada. Entre as vítimas da repressão, o próprio Milton Campos. O Manifesto criticava a realidade opressora e expunha a contradição da proximidade da instauração da ordem democrática em nível mundial com a derrota do nazi-fascismo, ao mesmo tempo em que internamente vivíamos um regime de supressão das liberdades públicas. Mas o Manifesto ia além. Textualmente:

“Fácil é inferir que a democracia por nós preconizada não é a mesma do tempo do liberalismo burguês. Não se constitui pela aglomeração de indivíduos de orientação isolada, mas por movimentos de ação convergente. Preconizamos uma reforma democrática que, sem esquecer a liberdade espiritual, cogite principalmente da democratização da economia.”

            A eleição de Milton Campos para a Constituinte de 1946 consolida a sua liderança. Ele havia se transformado no líder de sua geração. Como relator do texto da nova Carta Constitucional relativo ao Poder Judiciário, mantém sua indesviável fidelidade aos princípios democráticos pregados no Manifesto dos Mineiros. Na verdade, faz desses princípios a bússola permanente de sua vida pública.

            Como governador, Milton Campos legou a Minas e à posteridade não apenas princípios éticos e morais, um inarredável compromisso com a democracia, com a Constituição e com as leis, e um notável senso de equilíbrio na condução, muitas vezes difícil, dos negócios públicos. Ele foi muito além, produzindo extraordinários feitos administrativos que haveriam de preparar o caminho para as realizações de seu sucessor, Juscelino Kubistchek de Oliveira.

            Presidente da República, JK lançou-se ao desafio de construir cinqüenta anos em cinco. Deus poupou-lhe o sentimento do medo. Construiu e promoveu, aos píncaros, a revolução do otimismo. Milton Campos foi Governador de Minas, de 1947 a 1950. Realizou quarenta anos em quatro. No meu governo em Minas, no Palácio da Liberdade, senti a força do legado de Milton Campos. Não esperei nem busquei o meu próprio exemplo, porque o exemplo já estava em Milton Campos, infinitamente. Quem governa Minas, quem se põe por dentro da História de Minas, tem pronto na figura dele o exemplo maior. As lições estão aí, na leitura de sua obra e de todos os textos de sua vida pública, límpidos, puros, escorreitos.

            Senhores, agora vou falar de Milton Campos e a Revolução de 1964. No dia 11 de abril daquele ano, através do Rádio e da TV, saudando o povo brasileiro, após ter sido eleito Presidente da República pelo Congresso Nacional, Humberto de Alencar Castello Branco proclamou o compromisso maior. São dele essas palavras alentadoras:

Nesta hora tão decisiva do destino do Brasil, espero em Deus possa entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo, em eleições livres, uma Nação coesa e ainda mais confiante em seu futuro.

            E mais: quatro dias depois, no dia 15 de abril, perante o Congresso Nacional, ao tomar posse no cargo de Presidente da República, declarando-se "escravo das lei do País", ele disse:

Meu procedimento será o de um Chefe de Estado, sem tergiversações, no processo para eleição de um brasileiro a quem entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966.

            Os biógrafos de Castello Branco não tratam desse assunto. Ou seja, Castelo, fiel à democracia, comprometia-se a devolver o poder aos civis, exatamente um ano, nove meses e dezesseis dias após sua posse. Esse seria o curto período da Revolução de 1964.

            Castello disse mais:

O Estado não será estorvo à iniciativa privada, sem prejuízo, porém, do imperativo da justiça social devida ao trabalhador, fator indispensável à nossa prosperidade.

            E concluindo:

Direi mesmo que a minha humildade de toda uma vida cresce neste instante: nunca um só homem precisou tanto da compreensão, do apoio de todos os concidadãos.

            Não faltou sequer ao novo Presidente da República a referência à "Nação brasileira" que "se levantou unida para restaurar a democracia e libertá-la". Cinco dias depois, 20 de abril de 1964, na solenidade de posse dos novos Ministros de Estado, o Presidente Castello Branco declarou que constituíra "um Ministério de homens honrados. Certamente a opinião pública do País pode honrá-los com a sua confiança”.

            Senhores, eis aí o inequívoco compromisso do Governo Castello Branco para limitar no tempo a vigência do movimento revolucionário, já então considerado como de inspiração democrática.

            Foi nesse clima de transição que o Presidente Humberto de Alencar Castello Branco foi buscar em Minas, em sua História, em sua vocação republicana, o homem público, ex-Governador de Minas, Deputado e Senador da República, Milton Campos, para assumir a gigantesca tarefa de, à frente do Ministério da Justiça, institucionalizar, pela via democrática, o ideário da Revolução de 1964.

            A alguns homens públicos, de notória participação na vida política do País, como o então governador Carlos Lacerda, parecia que a lógica do movimento revolucionário não recomendava o convite a Milton Campos.

            Conheci pessoalmente Carlos Lacerda, quando, como presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Minas Gerais, o recebi em palestra polêmica e o acompanhei em visita ao centro da minha encantadora e fascinante Belo Horizonte.

            Para Lacerda, a outro que não Milton Campos, deveria caber a responsabilidade pela adoção de medidas de natureza revolucionária. A Milton Campos, em outra etapa do Governo, caberia a tarefa da consolidação da nova ordem jurídica.

            Mas o Presidente Castello Branco tinha a preocupação de sinalizar ao Brasil e ao mundo que o movimento revolucionário pretendia substituir uma ordem jurídica por outra melhor e, assim, institucionalizar os seus objetivos.

            A seu juízo, ninguém melhor que Milton Campos daria à opinião pública internacional a certeza de que o movimento de 1964 asseguraria a legalidade e o respeito aos direitos, condições essenciais à sua legitimidade perante o mundo.

            Senhores, não é para esquecer nunca mais o comparecimento do Ministro Milton Campos à Câmara dos Deputados, para falar sobre as primeiras eleições diretas, após 1964, que seriam realizadas em 3 de outubro de 1965, em onze Estados, inclusive Minas Gerais - e aí se elegeu Israel Pinheiro, pai de Israel Pinheiro Filho, aqui presente. Eu estava lá, a seu lado. A tudo assistimos. O clima era de expectativa. Nenhuma cadeira vazia. O plenário era um silêncio só. As galerias, inquietas mas silenciosas, esperavam a palavra final sobre a primeira manifestação explícita da democracia, após abril de 1964: a participação do povo, dos eleitores, num pleito direto e livre, em quase metade do País.

            Milton Campos disse textualmente:

Vós clamais pela democracia, e nós lutamos pela criação das condições de sua sobrevivência. Vós reivindicais a liberdade, e nós trabalhamos para que ela se implante de modo definitivo no solo político do Brasil. Vós, da margem, clamais para deter as águas revoltas, e nós, em meio à torrente, nos consumimos para cavar os leitos por onde corram naturalmente as águas da normalidade constitucional. e, se a inspiração é a mesma, qual é então a diferença? É que, com a revolução e depois dela, a nós nos coube um quinhão específico de responsabilidade, que vamos cumprindo com o mesmo amor ao Brasil e a mesma fidelidade à democracia. É possível que nos procureis e não nos vejais convosco. Mas buscais nas águas. Vergai a fronte sobre a terra revolvida, e aí nos encontrareis, no esforço de realizar aquilo que pregais. Nós não mudamos nem vós; somos as vossas palavras projetadas na ação.

            Como nós sabemos e a história o registra, as eleições foram realizadas. Os Governadores eleitos, muitos da oposição, foram empossados. Mais uma vez realizava-se um dos capítulos mais importantes e comoventes da história política do País, em meio às revoltas águas dos acontecimentos.

            A oração de Milton Campos, à imagem de um sermão, que todos ouvimos em silêncio, tranqüilizou a Nação e a democracia fez-se plena.

            Também não é para esquecer jamais, até porque é um outro capítulo da História do Brasil, o gesto de coragem cívica e política de Milton Campos, que, sem perder a serenidade e a elegância, demitiu-se do Ministério da Justiça, em carta ao Presidente Castello Branco, com quem comungava dos mesmos ideais de defesa das liberdades públicas e dos princípios democráticos. Relembra Milton Campos ao Presidente Castello Branco que sua convocação para integrar o governo, ocupando a pasta da Justiça, destinava-se a restabelecer a ordem jurídica do País, e que o Presidente havia tornado público esse propósito no ato de sua posse. Estava em marcha o Ato Institucional nº 2. O Presidente Castello Branco tentou demovê-lo, mostrando-lhe que ele próprio não pretendia afastar-se da Constituição e continuava fiel aos princípios democráticos, submetendo-se, no entanto, ao sacrifício que a dinâmica dos fatos políticos impunha.

            Milton Campos serenamente argumentou que, como chefe de governo, caberia ao Presidente permanecer no cargo: “O senhor me permita, Presidente, que eu use do meu privilégio de Ministro e me demita”.

            A carta de Milton Campos ao Presidente Castello Branco manifestando sua determinação de deixar o governo diz tudo. Não resisto à tentação de lê-la. Estou certo de que a Nação deseja ouvi-la agora e sempre, como foi no passado e será no futuro.

            A referida carta ao Presidente tenho-a no rascunho, que será distribuído após a sessão:

Muito me honrou V. Exª quando, vencendo minhas resistências para ser Ministro da Justiça de seu governo, reclamou a minha colaboração para o restabelecimento da ordem jurídica do País. Foi essa a incumbência que V. Exª me deu e que repetiu de público por ocasião de minha posse. Não prevaleceu a restrição rigorosamente sincera que então lhe manifestei - a de que não me sentia com temperamento e condições para ser o braço executivo que a Revolução reclamava. Dela, na hora inicial e incerta, participei com modéstia, mas com inteira convicção, e por isso preferia posição mais discreta para ajudar o seu êxito, que eu tanto desejava e desejo. Farei uma experiência, disse a V. Exª no fim da nossa conversa telefônica na manhã de 14 de abril de 1964. Essa experiência me tem sido muito proveitosa por vários motivos.

Convivi com um chefe de Estado digno de sua alta posição e que sabe conquistar, pela sua compostura e pelo seu trato, o apreço e a estima dos que com ele trabalham. Conheci, no círculo do governo, brasileiros animados das mais patrióticas inspirações. De minha parte, tive oportunidade de me esforçar ao máximo para que o governo de V. Exª cumprisse o compromisso da Revolução, que é atingir, por métodos democráticos, os objetivos de mudança impostos pela realidade nacional. Neste sentido, fiz o que pude. Por tão somente a de resistir a idéias, planos e projetos que me pareceram incompatíveis com o ideal democrático. Essas resistências, aliás, coincidiam sempre com as de V. Exª e permita Deus que elas continuem a prevalecer no seu espírito.

Os últimos acontecimentos políticos, todavia, levam-me a encerrar a experiência sempre no propósito de servir. Não me considero melhor intérprete da revolução, mas entendo que não é útil a ela muito do que recentemente se fez, sobretudo pela maneira como foi feito. Volta-me então ao espírito a restrição da primeira hora, manifestada a V. Exª. A revolução pode ter exigências de que meu temperamento e minha formação me constrangem em ser elemento executor. Por que, então, não mudar o meu setor de serviço, se o tenho marcado, e é a minha cadeira no Senado, por Minas Gerais.

A ela volto com a consciência do dever cumprido, para com V. Exª, para com o meu País e para comigo mesmo, nas funções que a honrosa confiança de V. Exª me designou. E volto de coração alto e tão leve que nenhuma sombra sinto na sinceridade que apresento a V. Exª os meus agradecimentos pela distinções recebidas e os meus votos pelo êxito de seu governo, tão intimamente associado ao destino do nosso povo e à afirmação democrática da Revolução de 31 de março. Por isso, esta carta não é uma despedida nem uma renúncia. Solicito a V. Exª exoneração das funções de Ministro da Justiça e Negócios Interiores, mas continuarei, no Senado ou onde estiver, a serviço da causa que V. Exª tão superiormente representa.

            De volta a esta Casa, diante de um Plenário atento e com os olhos de uma Nação para ela voltados, Milton Campos fez uma clara distinção entre a Revolução e seu processo. A anomalia, por ele observada, não poderia perdurar. Textualmente:

A Revolução há de ser permanente como idéia e inspiração, para que, com a colaboração do tempo, invocada pacientemente, possa produzir seus frutos. O processo revolucionário há de ser transitório e breve, porque sua duração tende à consagração do arbítrio, que elimina o direito, intranqüiliza os cidadãos e paralisa a evolução do meio social. O que urge institucionalizar, portanto, é a Revolução e não o seu processo.

            A dor maior de Milton Campos, Sr. Presidente, como figura humana e homem público, foi o tormento que viveu Pedro Aleixo, seu amigo, compadre e irmão, companheiro de advocacia no edifício Mariana, em Belo Horizonte, aliado inseparável das lutas libertárias desde os bancos acadêmicos. Eleito Governador de Minas, Milton Campos fez de Pedro Aleixo o seu Secretário de Interior e Justiça. Era a figura maior. A malícia da cidade, uma só: para falar com o Governador Milton Campos, seria bom falar com Pedro primeiro. Milton se divertia e se encantava com a graça mineira.

            A casa de Pedro Aleixo, na rua Antônio Albuquerque, esquina com a rua Rio de Janeiro, projeto de Niemeyer, era uma casa simples, que nós, jovens universitários, visitávamos, para fortalecer a nossa vocação para o exercício da atividade política e da vida pública. Mais abaixo, perto do Armazém Medeiros, na rua Tomás Gonzaga, 271, era a casa de Milton Campos, que também freqüentávamos para enriquecer o nosso aprendizado com vistas à liberdade e à integração social.

            Estive lá muitas vezes, ao lado de Raul Machado Horta, que amava os livros de Milton Campos, que amava Milton Campos, e ainda ama Regina de Melo Campos, sua esposa, que está aqui ao lado.

            O brusco impedimento de Pedro Aleixo para assumir a Presidência da República trouxe, mais uma vez, Milton Campos a esta Casa, em apoio ao amigo e Vice-Presidente da República. Foi aqui, Sr. Presidente, desta tribuna, que Milton Campos produziu a sua última manifestação política de amor e respeito à legalidade democrática. Esse seu discurso também integra a sua história de vida e a própria História da República.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não basta o compromisso assumido com a democracia, com as liberdades públicas, com as garantias individuais, com o antigo liberalismo político que fez a História e ainda está implantado em vários países desenvolvidos e emergentes do mundo de hoje. Na lição de Milton Campos, é preciso ser explícito, incisivo, inequívoco, a priorização no discurso, falado ou escrito, da questão das desigualdades sociais e da pobreza que deprimem a humanidade nestes vastos Brasis de misérias e de contrastes. Falta-nos a consistência de sua dimensão social. É certo que falamos sempre em política social, e esta tem sido a temática dominante dos governos, mas não a convicção básica, a temática que penetra a sociedade mediana, sensibiliza e atormenta a mídia dos tempos de hoje. O liberalismo, a democratização ou a redemocratização, as liberdades democráticas, os direitos individuais, o federalismo parecem ser um fim em si mesmos, o objetivo final, e não o meio para chegar ao tema básico, à temática substantiva da igualdade social. A doutrina de Milton Campos é clara e consistente, mas sobrepõe-se-lhe, até hoje, a imagem do homem conciliador, do diálogo e do entendimento, do mito que a todos encanta. Vêem-lhe a imagem, o vulto heráldico, a sobriedade, a elegância, a cultura, o porte sereno e seguro do estadista. Mas não é só isto. É de extrema clareza o pensamento de Milton Campos, em toda a sua vida pública, especialmente nos governos de Minas e na República.

            O seu texto é histórico:

Sem a liberdade, cairemos na opressão política. Sem a igualdade, consolidaremos a opressão econômica. Num e noutro caso estará esquecida a pessoa humana e a democracia falhará na sua missão.

            E mais:

Vencida, como está sendo, a fase de organização da liberdade política, o conteúdo do ideal democrático passará a ser, como vem sendo, a organização da igualdade social, a fim de que se nivelem as desigualdades que assinalam o insondável destino dos homens.

            Teremos nós, discípulos de Milton Campos, devotos de sua escola, apreendido a dimensão do pensamento do mestre? Não teremos nós apenas permanecido na pregação da antinomia democracia versus autoritarismo? Não teremos nós, até nos dias de hoje, apenas desfraldado a bandeira das liberdades democráticas, sem nos inclinarmos ao debate consistente das questões sociais, passando ao largo daqueles que, ao nosso lado, lutaram pela formação de um Brasil justo, como se não estivéssemos à porta da exclusão que aí está aos olhos de quem queira ver? Não teríamos nós olvidado a advertência de Milton Campos, ao dirigir-se aos mineiros no limiar do ano de 1951, no Palácio da Liberdade? Textualmente:

A fidelidade aos princípios é o único meio de evitar que o homem público adote passivamente as idéias de sua posição, em vez de, como lhe compete, tomar sempre a posição de suas idéias.

            Como já se disse, era um chamado à coerência dentro da coalizão partidária que, impulsionada pela vontade popular, o elegera Governador de Minas e dos mineiros.

            Querem mais, Srs. Senadores e convidados? E esta é a mais clara e cintilante visão de cidadania social que à sua época ele pregava:

Há quem se iluda com a idéia da felicidade de um mundo restrito, criado à imagem e ao gosto de tendências pessoais. Hoje, porém, o bem-estar só pode prevalecer como quinhão numa vasta partilha igualitária, em que não valem os morgados do capricho e os legados do acaso.

            Aí está, Srs. Senadores, a essência da democracia social, direi mesmo, da socialdemocracia. Este o ideário, a doutrina, a cartilha de Milton Campos que, historicamente, nos pertence, embora não a tenhamos seguido com a tenacidade necessária. Esta, mais do que a cartilha, mais do que o pensamento, é a histórica Constituição de Milton Campos. Esta foi a pregação de quem participou, ativamente, das lutas contra o Estado Novo, antes, durante e depois do Manifesto dos Mineiros. Antes, durante e depois da ditadura de Vargas. Antes, durante e depois de quem, na serenidade dos gestos e no exemplo dos justos, acompanhou as emoções da sociedade brasileira, na primeira fase da revolução de 1964.

            Personalidades expressivas do mundo político e do jornalismo deixaram uma história de vida no desempenho de sua profissão, sem jamais aceitar a contingência da longevidade do processo revolucionário.

            Essa omissão, que atinge, em diferentes formas, os partidos neste século que se finda, retardou a nossa responsabilidade social, a nossa cidadania social, agravando as nossas desigualdades, aprofundando-as diante de um mundo que se abre rapidamente para os processos de aculturação e socialização em todas as classes, níveis etários e populações comunitárias. Entre nós, as pesquisas revelam desconhecimentos desalentadores, sempre abaixo de 50%, sobre os nossos direitos sociais, civis e políticos, inscritos na Constituição, não obstante a massificação das informações. A doutrina de Milton Campos, ao lado de outras, também consistentes, pouco tem contribuído para as transformações sociais. Eis que, até hoje, sobrepõem-se-lhes os perfis, as virtudes peregrinas, as imagens românticas ou carismáticas de seus líderes e de seus formuladores. Aí está, ainda hoje, o nosso desafio: um convite à ventura de se descobrir o Brasil pelos mais diferentes caminhos, sobretudo através de uma linguagem acessível a todos. Em outras palavras: levar o povo ao palco dos acontecimentos. Felizmente, senhores, já estamos vivendo o social liberalismo, pregado pelo Vice-Presidente da República, Marco Maciel que é o ideólogo da legenda partidária que representamos no Brasil.

            Senhores, Minas inteira abomina o abuso do poder econômico e a corrupção. Milton Campos afirmava que governar é sobretudo resistir. Reitero: resistir à utilização indevida dos bens públicos no exercício do poder ou fora dele. Como se expressa José Saramago, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura: “Repelir a tentação de sentar-se à porta dos obséquios, recebê-los das mãos afáveis da corrupção”. Disse-o em O Conto da Ilha Desconhecida e por lá, no meio de nós, ficaram e perpetuaram-se. Ninguém, na face, nas entranhas e na história da terra mineira, simboliza tanto, com nitidez absoluta, a transparência nas ações de governo, a rigorosa postulação à moralidade pública e o intransigente combate à corrupção.

            Falando aos moços do Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1953, Milton interrogava: “Que mal é mais funesto, no quadro clássico das nossas endemias morais, do que a corrupção que ameaça dominar o País? Podemos ser moderados, mas, por mais que o sejamos, não podemos levar a moderação à complacência, que chegaria a ser cumplicidade. Os escândalos administrativos e econômicos, que vêm sendo denunciados corajosamente, sobretudo por meio de inquéritos parlamentares, dão a medida da crescente desenvoltura com que se vem tratando a coisa pública entre nós. É preciso deter essa onda, que compromete a República, uma vez que ela é, por definição, incompatível com os costumes de licença, de facilidade e de impunição e antes impõe métodos de austeridade dizendo mais rigoroso no comportamento em face da coisa pública”. E mais: “Estamos assistindo, em nosso País, à invenção de uma nova física, em que o velho princípio de Arquimedes se alterou: dai-me um cargo público e um ponto de apoio no Tesouro e eu levantarei um patrimônio”.

            Sr. Presidente Carlos Patrocínio, mineiro do meu Estado, que impressionante atualidade nessas afirmações de mais de meio século! Srs. Senadores, reitero, concisamente, Milton Campos: “É preciso agir enquanto é tempo”. O tempo de ontem é o tempo de hoje. Esta Nação está perplexa diante dos escândalos que, cotidianamente, a imprensa livre do País divulga e condena.

            Mas, afinal, senhores, pergunto eu, que País é este? O combate à corrupção é mais uma herança que Milton Campos nos deixou. Não há, por lá, na terra mineira, como estender as mãos e envolvê-las na sedução do furto e do roubo, enriquecê-las entre cumprimentos e afagos, ou no silêncio, na deserção e na impunidade. Não, Srs. Senadores, esta segunda natureza do silêncio não existe porque muitos a conhecem. Quem mais conhece o crime é o criminoso. É sempre oportuno recordar a advertência de Rui Babosa, de quem Milton Campos foi discípulo. “Em política não se calcam impunemente as leis da moralidade”.

            O poder enriquece, por que não? Porque o impede o sentimento de Minas. Porque incomoda, afronta, viola, destrói a nossa riqueza interior, a nossa concepção de vida pública, as linhas sinuosas e históricas do meu Palácio da Liberdade, com sua leveza quase feminina, o retrato de um Estado cujas tradições fascinam o mundo inteiro. À imagem e semelhança de Milton Campos. Onde os jornais e os canais de rádio e televisão de Milton Campos? Onde o nepotismo de Milton Campos? Onde, na família de Milton Campos, o cartorialismo? Onde os canais de rádio e de televisão de Francelino Pereira, que, no Governo Geisel, tinha todos os poderes, oportunidades para possuí-los? Onde os cartórios de Francelino Pereira? Onde os cartórios daqueles que com ele se locupletam? Magalhães Pinto ofereceu-me um cartório. Não sei se brincando ou falando sério. Apenas respondi: por favor, não quero ser uma ilha; quero viver no meio do povo.

            Não, Sr. Presidente, o poder, exercido honradamente não enriquece. Ao contrário, enobrece, dignifica e exalta o sentimento da vida pública. É a vocação de Minas.

            Sras e Srs. Senadores, no momento em que as discussões sobre ética, em especial a ética política, inundam o país, vale lembrar a postura permanentemente ética de Milton Campos. Convidado para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal - uma antiga e justa aspiração sua - teve a coragem de recusar os convites, por imperativos puramente éticos. Castello Branco o convidara para ocupar uma das vagas resultantes do aumento do número de ministros daquela Corte. Convite não aceito. Em sua gestão no Ministério da Justiça, foi aumentado o número de ministros do Supremo. Dois anos depois, novo convite, dessa feita do Presidente Costa e Silva. Nova recusa. Milton alegou que estaria próximo da compulsória, aos 70 anos, e não seria ético permanecer apenas alguns meses no Tribunal para em seguida aposentar-se.

            Voltar a Minas, por que não? Não foi de lá, de Ouro Preto, que saíram os libertadores do Brasil? E o esquartejamento de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes? Não foi Bernardo Pereira de Vasconcelos, o grande homem de Estado, nascido em Ouro Preto, que promoveu a concertação do Brasil, até pelas aparentes incoerências de seu lúcido e corajoso patriotismo? Por que não nos inclinarmos perante Milton Campos, no seguro pressuposto de uma visão conjunta, e, de lá, soerguermos esta Nação, sem eventuais excentricidades, tendo como principal fundamento a idéia da liberdade e da igualdade, que exclui os preconceitos sociais, elimina a opressão e promove a convergência desta Nação, que está despertando o olhar do mundo inteiro?

            Toda instituição, já se disse, é a sombra alongada de um homem. Somos, lá em Minas, a sombra alongada de Milton Campos. Assim como alongamos em nossas vidas a sombra alongada e às vezes enlouquecida da liberdade, das insurreições e dos sonhos de uma pátria livre. As Minas - Minas não é uma só, são muitas - que todos os brasileiros admiram e respeitam na múltipla identidade de seu perfil e de seu impressionante sentimento, que ninguém viola impunemente.

            Perguntou-me o Presidente Antonio Carlos Magalhães, ontem pela manhã, se me seria possível agradecer, em nome da família, a homenagem que esta Casa presta a Milton Campos. A lei do Senado não permite que fale desta tribuna, nestes instantes solenes, quem não exerça mandato popular. Tenho-o, Sr. Presidente, inspirado em Milton Campos, em sua escola, em seu exemplo de vida. Só os homens livres possuem o dom de Minas, e eu o tenho, e, por isso, posso e devo agradecer em nome da família de Milton Campos, por este ato solene de admiração e respeito ao maior dos homens públicos de toda a história mineira. De todas as manifestações em louvor a Milton Campos, nesses cem anos de sua vida, em Minas e no Brasil, a mais tocante, a mais profunda, foi a celebração da missa na Basílica de Lourdes, na Rua da Bahia, pelo Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, mineiro de Minas Novas.

            A religiosidade de Milton Campos era uma dádiva superior e, por isso, “a sua memória não desaparecera”. “O seu nome será repetido de geração em geração”. E mais, diz a liturgia da palavra, “a sua descendência será forte sobre a Terra, abençoada a geração dos homens retos”.

            Esse é o agradecimento do Senado da República, pela presença, entre nós, da família de Milton Campos, cujos nomes inicialmente proferi.

            Das tantas homenagens a Milton Campos, destaco duas: a do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, presidido pelo ilustre Prof. Celso Cordeiro Machado, que aqui está no meio de nós, neste plenário, e a do Senado Federal que, além desta solenidade, homenageará Milton Campos, fazendo publicar, logo mais, toda a produção intelectual, na vida pública, inclusive no Congresso Nacional, do grande mineiro. Essa publicação estará sob a responsabilidade de um dos mais eméritos professores da Universidade Federal de Minas Gerais, o eminente doutor Raul Machado Horta, que está aqui ao nosso lado. Ele e os demais familiares de Milton Campos vieram de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro para assistir a esta sessão. Conheço-os todos. Formam, luminosamente, abençoada geração dos homens retos.

            Afinal, o que tem a oferecer ao seu ídolo o jovem de ontem, que chegava a Belo Horizonte, pela Central do Brasil, sem conhecer uma só pessoa e logo incorporou-se à fascinante e vitoriosa campanha de Milton Campos ao governo de Minas, tornando-se mineiro ontem, hoje, amanhã, por todo o infinito? Reitero que, no Palácio da Liberdade, governei com o povo, ao seu lado, de braços dados, em cada canto da Minas rica e da Minas pobre. Terminara a exceção, e a liberdade levou o povo às ruas, às greves, ao diálogo, à conciliação, ao sentimento que une e exalta. Tudo foi rápido, eis que a liberdade chegara. E aí abracei Minas inteira, seu nome, seu mistério, sua vocação, seu povo, seus líderes, sua história. As realizações e os feitos estão lá, testemunhando o desempenho e a honradez de um governo que Minas considera um dos melhores de sua história. Militante do meu destino, confesso que o entreguei a Milton Campos e à história de Minas, sem desonrá-los. Ainda assim, sou devedor aos mineiros, a Milton e a Minas.

            Muito obrigado. (Palmas)


            Modelo15/5/245:53



Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/12/2000 - Página 23493