Discurso durante a 168ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre a peça teatral "A queda para o alto", estreada por jovens de Heliópolis, favela da Cidade de São Paulo.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • Comentários sobre a peça teatral "A queda para o alto", estreada por jovens de Heliópolis, favela da Cidade de São Paulo.
Publicação
Publicação no DSF de 06/12/2000 - Página 24325
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO, FAVELA, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), TRANSFORMAÇÃO, BAIRRO, COMENTARIO, IMPORTANCIA, APRESENTAÇÃO, ELOGIO, QUALIDADE, PEÇA TEATRAL, ATOR, LOCAL, ADAPTAÇÃO, LIVRO, AUTORIA, SANDRA MARA HERZER, ESCRITOR, DEPOIMENTO, VIDA, FUNDAÇÃO ESTADUAL DO BEM ESTAR DO MENOR (FEBEM), DENUNCIA, VIOLENCIA, VITIMA, MENOR.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, poucas semanas atrás, recebi um convite para assistir a uma peça encenada por um grupo de jovens, todos moradores de Heliópolis, na verdade a maior favela da Cidade de São Paulo, onde vivem 85 mil pessoas. Essa favela, que surgiu no início dos anos 80, pouco a pouco vai-se transformando num bairro com construções muito irregulares.

            A partir da luta pelo direito de moradia, no início dos anos 80, quando era Prefeito Mário Covas, houve ali uma ocupação. De início, a Prefeitura imaginava despejar os invasores, mas os ocupantes da área foram ao gabinete do Governador, onde montaram acampamento e só saíram após o Prefeito Mário Covas avaliar que seria importante tomar medidas a fim de resolver o problema social de moradia e adquirir a área para a Cohab - Companhia de Habitação de São Paulo. Nas gestões posteriores, de Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta, houve muita dificuldade de reconhecimento do bairro de Heliópolis para a sua devida urbanização, iluminação, saneamento básico, esgoto e assim por diante. Mas, pouco a pouco, a favela foi se transformando num bairro, ainda que com enorme irregularidade em suas construções.

            Sr. Presidente, esse grupo de aproximadamente 30 jovens convidou-me para a apresentação de uma peça que trata da história de Sandra Mara Herzer, também conhecida por Anderson Herzer, nome com o qual ela resolveu escrever seus poemas.

            Quando deputado estadual, entre 1979 e 1980, fui convidado pela Srª Lia Junqueira, Presidente do Movimento em Defesa do Menor, para conhecer os inúmeros desvios de procedimentos que ocorriam na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor - Febem, em São Paulo - nas unidades da Imigrantes, do Pacaembu, do Tatuapé, que é masculina, e da Vila Maria, que é feminina, além de outras. Verifiquei que havia inúmeras queixas - e continua havendo até hoje, 20 anos depois - de maus-tratos de menores, de abusos por parte dos responsáveis ou dos monitores, dos vigias, inclusive com respeito ao que ocorria, por exemplo, com as adolescentes, em virtude dos procedimentos dos responsáveis pela Febem.

            Certo dia, Lia Junqueira convidou-me para conhecer uma moça que desde os 14 anos estava na Febem - na época, já estava com 17 anos e meio -, explicando-me que, se alguém se responsabilizasse por encontrar algum trabalho para que ela pudesse garantir sua moradia e alimentação, ela poderia sair da Febem. Resolvi escrever ao juiz, o qual autorizou a saída dela.

            Ao contar-me essa moça a sua história, observei sua qualidade de escritora de poemas. Eu lhe disse que a história dela era tão relevante que seria interessante publicar não apenas os seus poemas, mas também sua própria história.

            Convidei-a para trabalhar em meu gabinete, ainda que por modesta remuneração. Dei-lhe a função de ajudar em todas as tarefas do gabinete, para aprender, mas ressaltei que sua principal tarefa seria a de escrever um depoimento sobre sua própria vida. Algum tempo depois, ela encaminhou seus trabalhos para Rose Marie Muraro, responsável editorial da Editora Vozes, que se entusiasmou com eles. Assim também ocorreu com Leonardo Boff, que se emocionou com a leitura do trabalho. Mais de 27 edições foram publicadas desde então. A obra dela é lida, sobretudo, pelos jovens das áreas carentes, nos bairros de São Paulo.

            Tocou-me a notícia de que 30 jovens iriam apresentar essa peça, que estreou na inauguração do Centro Esportivo e Cultural de Heliópolis, na última sexta-feira. A apresentação foi de tão boa qualidade que impressionou até Jose Celso Martinez Correa. Convidei-o porque fiquei impressionado quando lhes perguntei se tinham alguém para ensinar-lhes, se tinham procurado, digamos, um dos grandes dramaturgos brasileiros para lhes mostrar como fazer a peça? Eles, então, disseram-me que fizeram questão de contar apenas com pessoas moradoras da favela, seja o diretor, sejam os jovens atores.

            José Celso Martinez Correa gostou tanto que os convidou para, no próximo sábado, dia 9, às 20h, fazer a apresentação da peça Queda para o Alto no Teatro Oficina.

            Gostaria, portanto, de formular a todos um convite, em nome de José Celso Martinez Correa, responsável pelo Teatro Oficina, e da Companhia de Teatro Heliópolis e da União de Núcleos, Associação e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco para a peça Queda para o Alto, adaptada do livro de mesmo nome de autoria de Sandra Mara Herzer, com a minha apresentação, direção de Miguel, adaptação de Carlinhos Lira, coreografia de Paulo Roberto, fazendo ainda parte do elenco os jovens: Vanusa Santos, Priscila Inácio, Fábio Rubson, Jeferson Bueno, Flávio Amsterdan, Gisele Inácio, Claudenice Galvão, Graice Kelly, Eric, Eduardo, Alexandra Ferreira, Andrezza Ribeiro, Aline Ribeiro, Fabiana da Silva, Miguel Rocha, Ricardo da Silva, Veneriana Rodrigues, Michelly Tavares, Catiane Vieira e Aline Tavares.

            Para que se tenha uma idéia da força desse texto, Senador Maguito Vilela, gostaria de lhe transmitir que, em 05 de agosto de 1980, depois de a autora já ter esse livro pronto, faltando apenas ser impresso e divulgado, chegou ela ao meu gabinete e disse-me que estava muito preocupada, angustiada e entregou-me a seguinte poesia:

Minha Vida, Meu Aplauso

Fiz de minha vida um enorme palco

sem atores, para a peça em cartaz

sem ninguém para aplaudir este meu pranto

que vai pingando e uma poça no palco se faz.

Palco triste é meu mundo desabitado

solitário me apresenta como um astro

astro que chora, ri e se curva à derrota

e derrotado muito mais astro me faço.

Todo mundo reparou no meu olhar triste

mas todo mundo estava cansado de ver isso

e todo mundo se esqueceu de minha estréia

pois todo mundo tinha um outro compromisso.

Mas um dia meu palco, escuro, continuou

e muita gente curiosa veio me ver

viram no palco um corpo já estendido

eram meus fãs que vieram pra me ver morrer.

Esta noite foi a noite em que virei astro

a multidão estava lá, atenta como eu queria

suspirei eterna e vitoriosamente

pois ali o personagem nascia

e eu, ator do mundo, com minha solidão...

morria!

Anderson Herzer

            Disse-lhe que parecia que ela estava pensando em morrer, ao que ela me respondeu que era apenas força de expressão. Todavia, duas semanas depois, eis que ela se joga do Viaduto 23 de Maio, vindo a morrer no Hospital das Clínicas. Uma pessoa a encontrou estendida no asfalto, com uma estrela do PT na lapela do seu terno, muito ferida e com graves lesões na bacia, infelizmente.

            Ela tinha um ideal, conforme consta de sua breve autobiografia escrita no livro Versejando, com dados que assim forneceu:

Anderson Herzer, jovem poeta, escreve desde os 12 anos de idade, e brevemente verá o seu ideal realizado, através do seu primeiro livro. O livro contém denúncias sobre a Febem, onde esteve. O principal tema do livro é tentar diminuir as violências, corrupções e a morte de menores, que necessitam apenas de amor, compreensão e não serem massacrados pela sociedade.

            Ela, em seus poemas, narrava histórias de pessoas que haviam se perdido por alguma razão. Ela escreveu sobre sua mãe e que nasceu em Rolândia, no interior do Paraná. Certo dia soube, pela correria em sua casa, que seu pai, dono de um bar, havia sido assassinado com um tiro no pescoço por motivo de vingança. Descreve que sua mãe, então, não tendo como sobreviver, acabou sendo de Pedro, de João, de Manoel, ou seja, de ninguém e, por se prostituir, acabou ficando doente e faleceu.

            Sr. Presidente, note que aqui ela estava, provavelmente, escrevendo para sua mãe:

Prostituição e o Fim da Vida

Se na madrugada triste você chorou,

se em um canto seu prato derramou

e se para mim, me contasse sua vida

eu conseguiria lhe mostrar aonde errou.

Olhar em seus olhos e vê-los sorrindo,

beijar sua boca, lhe abraçar, lhe sentindo

acariciar sua face e todo seu corpo

e do meu amor sincero ir lhe cobrindo.

Deitar-lhe no solo frio e deixar que seu corpo todo

toque nas regiões sombrias,

com gosto de vida e morte de fogo.

Puxar você pelo braço e deitar-me a seu lado

e mostrar-lhe que te amo, esquecendo seu passado.

Seu passado forte e errado

que marcou sua vida de mulher,

uma mulher que luta por um amor

que mesmo pecando, ainda quer.

Venha cantar a sua canção aqui

e a dedique a quem você amou,

cante tudo o que fez na vida

e diga a todos que você pecou.

MULHER...

Você errou no destino puro,

pôs em jogo uma vida alheia

mas pode se recuperar agora

pois sua vida, você mesmo semeia.

Você defrontou-se com a noite fria,

deitou seu corpo a quem quisesse usar,

mas ninguém sabia que você, mulher,

era humana, e também precisava amar.

Agora que se arrependeu, antes de fechar os olhos,

e que sua vida Deus vai levar

explique a Ele o porquê da vida e a morte,

tenha certeza Ele vai te perdoar.

            Ela, tantas vezes, disse das coisas que eram importantes para as pessoas que, de alguma forma, encontravam-se muito sós neste Brasil. Foi dura com seu pai ou com seu novo pai. Conta, neste livro que mostra a maneira como as pessoas acabam indo parar na Febem, como ela foi adotada por sua tia e um tio bem mais velho, o qual, infelizmente, certo dia resolveu tentar acariciá-la, violentá-la. Com ele, então, ela lutou, acabando por quebrar o próprio braço. Ela soube dizer das vozes daqueles que, em muitos lugares, vivem tão sós e nem sempre têm o direito à vida com dignidade.

            Para encerrar, Sr. Presidente, lerei apenas mais um poema de Sandra Mara ou Anderson Herzer.

Mataram João Ninguém

Quando o próximo sangue jorrar

daquele por quem ninguém irá chorar,

daquele que não deixará nada para se lembrar

daquele em quem ninguém quis acreditar.

Quando seus olhos só puderem fitar o escuro

quando seu corpo já estiver inerte, frio e duro,

quando todos perceberem morto João Ninguém

e quando longe de todos ele será seu próprio alguém.

Tantas mãos, tantas linhas incertas,

tantas vidas cobertas, sem ninguém pra sentir,

Tantas dores, tantas noites desertas

tantas mãos entreabertas, sem ninguém pra acudir.

Qualquer dia vou despir-me da luta

pisar em coisas brutas, sem me arrepender.

Tão difícil ver a vida assassinada

quando estamos já tontos pra tentar sobreviver.

As perguntas sem respostas, sem nada,

as vidas curtas e desamparadas

o último grito que não foi ouvido

calaram mais um homem iludido.

E no mundo não dão mais argumentos

pra fugir aos lamentos

De quem sozinho falece.

de quem sozinho falece.

Para esses, não há mais compreensão,

não há mais permissão, para que se tropece.

Na televisão, o aguardo da cotação

um instante ocupado, para dizer morto João Ninguém

mas a aflição ataca, a cotação subiu ou caiu?

e João morreu... ninguém ouviu.

Eu vou distribuir panfletos,

dizendo que João morreu

talvez alguém se recorde

do João que falo eu.

Falo daquele mendigo que somos

pelo menos em matéria de amor,

daquele amor que esquecemos de cultivar

o qual com tanto dinheiro, ninguém jamais coroou.

            É a obra dessa jovem, que, até em face das circunstâncias, acabou se transformando mesmo na sua adolescência. Embora fosse mulher, passou a usar cabelo curto e roupas de homem. Em verdade, aqui está uma obra inteiramente dedicada ao objetivo de que todas as pessoas no Brasil, sobretudo os menores, as crianças, venham a ser tratadas com dignidade e como seres humanos. Tamanha é a comoção que tem ocorrido quando esse grupo de jovens de Heliópolis apresenta essa peça, que o próprio José Celso Martinez Correa ficou tão impressionado que convidou a todos a vir ao teatro-oficina. O que tanto impressionou, Senador Maguito Vilela, foi que mais de 400 pessoas apinhadas assistindo ao grupo de jovens, torcia tanto, falava tanto, dava risadas, que às vezes até ficava difícil de ouvir os atores, e eu, ao lado de José Celso, perguntei: José Celso você quer que eu peça silêncio? Ele falou: “Não. Isto é que é o teatro. O teatro é isto, é o povo interagindo com o que se passa, com os atores, é assim que o teatro nasceu, é assim que deve ser.

            Por essa razão convido a todos, inclusive o Senador Maguito Vilela se puder ir a São Paulo - ou quem sabe um dia em Goiânia, possa ser apresentada a Queda Para o Alto -, porque tenho certeza de que esse testemunho vai continuar sendo apresentado em muitos outros lugares do Brasil, por esse extraordinário grupo de jovens que percebeu a importância dos poemas em favor da justiça e do direito de todas as crianças e adolescentes brasileiros à vida com dignidade.

            Muito obrigado.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR EDUARDO SUPLICY EM SEU PRONUNCIAMENTO.

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            Modelo14/25/248:24



Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/12/2000 - Página 24325