Discurso durante a 170ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao centenário de nascimento do ex-deputado e ex-senador Gustavo Capanema.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao centenário de nascimento do ex-deputado e ex-senador Gustavo Capanema.
Publicação
Publicação no DSF de 08/12/2000 - Página 24468
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GUSTAVO CAPANEMA, EX-DEPUTADO, EX SENADOR, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, EMPENHO, INCENTIVO, EDUCAÇÃO, SAUDE, PAIS.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a atuação política não é das que se fazem em um mundo abstrato ou ideal, longe das contingências e conturbações do presente. A política é, certamente, uma das atividades humanas mais sujeitas a erros e equívocos - permeada, particularmente, pelos erros do tempo em que ela é exercida, com seus ideais, aspirações e plataformas que se mostram, tantas vezes, transitórios e imperfeitos, sob o olhar distanciado da história.

            Gustavo Capanema foi, antes de tudo, um político, que assim queria ser reconhecido e assim inscreveu seu nome em nossa história. Começou sua carreira nos últimos anos da República Velha, participou da Revolução de 30, tornou-se um dos ministros mais marcantes da Ditadura de Getúlio Vargas e ainda manteve destacada atuação parlamentar após a redemocratização do País. Capanema era um político, entretanto, singular, que se distingue, sob o olhar retrospectivo a que nos referíamos, por ter promovido uma aliança extremamente feliz entre a política e a cultura. Aliança que não foi alcançada por uma simples sobreposição de duas esferas distintas, mas que já se encontrava formulada no íntimo e, eu diria até, no âmago daquele que a conduziu e a executou.

            Homem de cultura - e de cultura autêntica e profunda -, Gustavo Capanema soube intuir e enxergar a verdadeira dimensão do problema da cultura nacional, em uma fase decisiva de sua formação. Tratava-se da formação da cultura brasileira moderna, momento no qual devemos situar o pleno amadurecimento de um País em que se confrontaram e miscigenaram, durante quatro séculos, elementos de diversas origens culturais e étnicas. Capanema, profundamente ligado ao passado da cultura clássica, das tradições católicas e do legado artístico brasileiro, buscou preservar o melhor dele e afiná-lo com o espírito modernista emergente, que se lançava, com tanto vigor, no rumo do futuro e do inexplorado.

            Ele não se limitou a desenvolver, como Ministro de Estado, o importante papel de mecenas dos grandes criadores de nossas Letras e Artes, que então surgiam. Homem político, como enfatizamos, Gustavo Capanema enxergava a cultura em sua dimensão mais ampla, sem dissociá-la da questão educacional e dos destinos de nossa Nação. E foi sua inconteste vocação política que lhe permitiu, superando as inúmeras dificuldades que se antepunham em um período e um regime autoritários, realizar a sua grande obra construtiva e renovadora. Seu inquebrantável compromisso com valores essenciais de nossa nacionalidade e de nossa humanidade, somado a sua tenacidade e a seu pragmatismo, fez com que a figura de Gustavo Capanema ultrapassasse as limitações e os enganos do tempo histórico que viveu, transmitindo o seu legado, por assim dizer, intacto às mãos das gerações que lhe sucederam.

            Como desenhar o perfil desse homem ao mesmo tempo simples e complexo, talvez um “claro enigma”, para utilizarmos o título de um livro de um de seus maiores amigos, o poeta Carlos Drummond de Andrade? Talvez devamos começar lembrando do período de sua juventude em Belo Horizonte, período crucial de sua formação, no qual, ao mesmo tempo em que cursava a Faculdade de Direito, conviveu com aqueles que seriam destacadas expressões da intelectualidade mineira e brasileira nos anos seguintes, a maior parte dos quais sintonizada com o nascente movimento modernista. Além do inseparável Drummond, citemos os nomes de Pedro Nava, Abgar Renault, Emílio Moura, João Alphonsus, Milton Campos e Afonso Arinos de Melo Franco. “Talvez o mais terrível consumidor de livros” do grupo, como afirmou o próprio Drummond, Capanema retornaria, logo após a formatura, para a cidade natal de Pitangui. Em pouco tempo, concorria e era eleito para a Câmara de Vereadores. Desviava-se assim para a política, no entender de Pedro Nava, “uma vocação literária e cultural da maior raridade e qualidade”.

            A ascensão de sua carreira política seria das mais rápidas. Em 1930, ele é nomeado oficial-de-gabinete do Governador de Minas Gerais Olegário Maciel. Participando ativamente do movimento revolucionário, torna-se, com o sucesso da mesma, Secretário do Interior. Em 1933, substitui interinamente o falecido Olegário Maciel como Interventor no Estado, assim permanecendo por três meses. Capanema não foi, entretanto, confirmado no cargo por Getúlio Vargas, lançando-se então à fundação do Partido Progressista Mineiro, que obtém ampla votação nas eleições para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934. Nesse mesmo ano, é chamado pelo Presidente da República para ocupar o posto de Ministro da Educação e Saúde, o segundo a fazê-lo, substituindo Francisco Campos, seu conterrâneo de Pitangui e ex-professor na Faculdade de Direito.

            Não julguemos que a infeliz guinada do Governo Revolucionário, que leva à criação da ditadura do Estado Novo em 1937, tenha sido um choque completo para o culto e progressista ministro. Se Capanema era, sob vários aspectos, progressista, não deixava de sofrer a influência das fortes tendências contemporâneas, tanto à direita como à esquerda, que tinham em descrédito a capacidade do regime democrático de resolver os problemas de uma sociedade que passava por grandes mudanças. Capanema foi marcado pelas idéias de Francisco Campos, político e jurista de grande capacidade intelectual, que se tornou o principal ideólogo do Estado Novo, mesmo que, nesse momento, as relações entre os dois conterrâneos já estivessem um tanto estremecidas. Por outro lado, era grande sua proximidade a setores extremamente conservadores da Igreja Católica, representados principalmente pelas pessoas do Padre Leonel Franca e de Alceu Amoroso Lima, o importante crítico literário e militante católico, que, em futura metamorfose, tanto se destacaria como corajoso defensor da democracia e das liberdades individuais.

            O Ministro Gustavo Capanema, que, por sua conformação intelectual e por seu estilo pessoal, tinha o perfil característico de um democrata liberal, participou, sem dificuldades incontornáveis, do regime estadonovista, nos seus longos nove anos de existência. Deve ser dito, entretanto, que Capanema portou-se, nesse período marcante de sua atuação política, de forma digna, reta e corajosa, não aderindo à politicagem miúda ou obscurantista que se exercia em torno do Chefe de Estado e em diversos setores do Governo. Capanema soube impor e concretizar suas idéias e seus projetos, nas áreas de Educação, de Cultura e de Saúde, mesmo que, para atingir os fins visados, tivesse que negociar, recuar, compor - além de enfrentar a incompreensão surda, a ignorância arrogante e a mentalidade tacanha, que tão bem vicejam em uma ditadura.

            Seus ideais e projetos eram, sem dúvida, grandiosos, destinando-se a áreas em que quase tudo estava por se fazer. Não dispomos de tempo para enumerar todas as suas realizações marcantes. Diremos, apenas, no que se refere à Saúde, que Capanema desenhou uma estrutura que era praticamente inexistente em âmbito nacional, criando o Departamento Nacional da Criança, o Departamento de Tuberculose e o de Endemias Rurais, organizando campanhas sanitárias em todo o País, como a que levou à erradicação da febre amarela.

            Na área de Educação, o Ministro realizou substantivas ações e reformas, que marcaram o sistema e a prática educacional brasileira por várias décadas. Em sua gestão, é reestruturado o ensino secundário, que passa a compreender o ginasial de quatro anos e o colegial de três anos, este dividido nas modalidades clássica e científica. O ensino industrial é também reestruturado e ampliado. Institucionaliza-se a pesquisa em educação, com o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, cuja direção é entregue a um dos expoentes do movimento da Escola Nova, Lourenço Filho. Foi criada, ainda, a Comissão do Livro Didático e dinamizou-se, com sua competência ampliada, o Conselho Federal de Educação.

            Cedendo a pressões que se diziam anti-comunistas, mas que eram antes de tudo contrárias à liberdade de pensamento, Capanema cometeu talvez o seu maior erro administrativo, ao permitir o fechamento, em 1936, da Universidade do Distrito Federal, criada por Anísio Teixeira. Como compensação, o Ministro consegue inaugurar, em 1939, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, que se torna modelo para dezenas de outras faculdades que passam a surgir no País. Mesmo um crítico acerbo da política educacional de Capanema como Darcy Ribeiro reconhece que a criação da Universidade do Brasil e a multiplicação de faculdades que se seguiu “melhoraram consideravelmente a qualificação do magistério e ampliaram enormemente a preocupação com a pesquisa científica e os estudos humanísticos”.

            Em que pesem realizações tão notórias, foi, sem dúvida, na área da Cultura que se sobressaiu a atuação de Gustavo Capanema, e onde ele imprimiu sua forte marca pessoal, que nos chega nítida até os dias de hoje. Um primeiro sinal de que esta preocupação seria central foi o fato de ter mantido, em sua longa gestão ministerial, Carlos Drummond de Andrade como seu chefe de gabinete.

            Podemos julgar que pedir a colaboração e apoiar, dos mais diversos modos, artistas e intelectuais da envergadura de Drummond, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Burle Marx e Bruno Giorgi, para só citar alguns de tantos nomes imprescindíveis para a cultura brasileira - podemos julgar que tal atitude tenha sido, antes de tudo, uma manifestação de lucidez por parte do Ministro Capanema. Certamente o foi, mas também significou uma atitude de coragem e de compromisso profundo com a mentalidade renovadora e audaciosa do nosso modernismo. 

            Se tais nomes hoje em dia são consagrados e indiscutíveis, bem diferente era a situação nos anos 30 e 40, em que quase todos eram menosprezados por causa da incompreensão da arte moderna, e em que vários deles eram discriminados e atacados por serem esquerdistas ou comunistas. Um dos principais alvos era o próprio Drummond, que, mesmo antes de acentuar sua inclinação à esquerda nos anos da guerra, se viu tachado de “idiota, cretino, imbecil”, e teve sua permanência no cargo questionada por ter escrito, em um poema, “sejamos pornográficos”. Capanema não recuou em seu apoio, de inumeráveis braços, mesmo quando se tratava de perseguidos políticos do regime, como Graciliano Ramos.

            Uma das principais realizações do Ministro Capanema foi a criação do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN, que teve papel decisivo para preservar muitos dos tesouros de nossa cultura, como os que compõem as cidades de Ouro Preto, Congonhas do Campo e Olinda, servindo ainda hoje de referência para os trabalhos desenvolvidos na área de preservação. Os objetivos e a estrutura do SPHAN foram delineados por um projeto do grande Mário de Andrade e a sua direção entregue às mãos inspiradas e preparadíssimas de Rodrigo Mello Franco de Andrade.

            Mas o grande símbolo da gestão de Gustavo Capanema foi certamente a construção do edifício-sede do Ministério no centro do Rio de Janeiro. O concurso promovido pelo Ministério foi ganho, em 1936, por um renomado arquiteto da época, Arquimedes Memória, com um projeto perfeitamente integrado aos padrões acadêmicos então dominantes. Capanema resolveu pagar o prêmio estabelecido ao vencedor do concurso, mas entregou a responsabilidade do projeto “para valer” a um grupo de jovens arquitetos liderados por Lúcio Costa, entre os quais já se destacava Oscar Niemeyer. Chamou ainda, por sugestão do chefe da equipe, um dos mais importantes arquitetos modernos, o francês Le Corbusier, para assessorar o trabalho. Choveram as críticas costumeiras, mas o edifício foi construído, integrado por murais de Portinari, e se tornou o grande marco da introdução da arquitetura moderna no Brasil.

            A importância transcendente da construção desse edifício, o atual Palácio da Cultura, foi expressa de forma agudíssima por Pedro Nava, ao avaliar a importância da atuação de Capanema: “As conseqüências do que ele fez são incalculáveis. Siga você o meu raciocínio. Sem o prédio do Ministério da Educação (recebido na ocasião como obra de um mentecapto) não teríamos a projeção que tiveram na época Lúcio Costa, Niemeyer, Carlos Leão e Cândido Portinari. Foram entendidos por Capanema e seus auxiliares próximos (Drummond, Rodrigo, Mário de Andrade e outros). Sem essa compreensão não teríamos tido a Pampulha, concepção paisagística e arquitetônica prestigiada pelo imenso Kubitschek. Sem Pampulha não teríamos tido Brasília, do mesmo Juscelino Kubitschek, que desviou nosso curso histórico - levando o Brasil para o Oeste. A raiz de tudo isto, a semente geradora, o adubo nutridor estão na inteligência de Capanema e de seus auxiliares de gabinete.”

            Gostaríamos ainda, Senhoras e Senhores Senadores, não fossem as limitações do tempo disponível, de estendermo-nos sobre a marcante atuação parlamentar de Gustavo Capanema nos anos que se seguiram à democratização do País em 1945, até o ano de 1979, em que se despede, com a saúde já muito abalada, desta Casa legislativa; sobre sua grande flama oratória, demonstrada cabalmente em discurso antológico, veemente, mas também conciliador, pronunciado logo após o suicídio de Getúlio Vargas; e sobre diversos outros aspectos desta personalidade fascinante.

            Temos esperança, no entanto, de que o que pudemos expor, juntamente com os demais pronunciamentos dos nobres Senadores, seja o suficiente para dar uma idéia da importância de preservamos a memória deste grande brasileiro; e de estudar e discutir as suas realizações, especialmente em um tempo em que o conceito de cultura nacional deve se defrontar com uma nova realidade cultural, globalizada e em estreita simbiose com as modernas tecnologias. Temos a convicção de que muito da lição de Capanema, como arrojado incentivador da cultura brasileira moderna, continua vivo, mostrando como os méritos singulares de sua pessoa levaram-no além das limitações do contexto político onde atuou.

            Muito obrigado.


            Modelo15/18/242:55



Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/12/2000 - Página 24468