Discurso durante a 171ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões sobre o crescimento da dívida externa e as contradições do capitalismo.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ECONOMIA NACIONAL.:
  • Reflexões sobre o crescimento da dívida externa e as contradições do capitalismo.
Publicação
Publicação no DSF de 12/12/2000 - Página 24691
Assunto
Outros > ECONOMIA NACIONAL.
Indexação
  • LEITURA, ANALISE, SITUAÇÃO, ECONOMIA NACIONAL, CRESCIMENTO, DIVIDA EXTERNA, CONTRADIÇÃO, CAPITALISMO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


           O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estava na dúvida entre fazer alguns comentários a respeito de diversos projetos de lei de minha autoria, que se encontram - espero eu - tramitando nesta Casa. Mas, em vez de fazê-lo, passarei a ler, coisa que raramente faço, algo que pode parecer canhestro, inadequado para um pronunciamento desta tribuna. Mas como se trata de uma importante admoestação, um importante chamamento, apelo para a conscientização em um assunto dos mais difíceis ao longo de décadas de tentativa de entender um pouco a economia, as relações econômicas, os fenômenos econômicos, tentar distinguir entre a aparência e a realidade interna.

           Finalmente, na velhice, cheguei a algumas conclusões que considero importantes, principalmente em relação ao Brasil que, há quase 500 anos, vem exportando as suas riquezas, exportando as suas madeiras, exportando o seu ouro, a sua prata. O Brasil é um país exportador - vende mais do que compra - e sempre o foi, com exceção de alguns períodos muito curtos, um deles o último período real, terminado em janeiro do ano passado. Apesar disso, continua devedor. Quem vende mais do que compra deveria ter algo a receber, algum valor em dinheiro ou seu equivalente para receber, devia ser credor. No entanto, por mais que exportemos, continuamos aumentando não o nosso crédito - como seria de se esperar -, mas a nossa dívida externa.

           Parece que essa é uma situação normal. Ninguém se espanta com o fato. Hegel, na sua filosofia da História, ao escrever sobre a Grécia, dizia que foi do espanto que nasceu a filosofia grega. Porém, o Brasil não se espanta com nada. Então, aqui teremos tudo, menos filósofos, porque é do espanto que nasce a filosofia, de acordo com Hegel.

            A “ciência” econômica é um produto da Inglaterra e da Irlanda, tão perigoso e embriagador como um legítimo scotch. Nós, caipiras, nos viciamos gostosa e acriticamente em ambos, pagando por eles preços fantásticos em libras, dependência, atraso, saúde e sangue. As imitações que se tenta fazer, fora da Ilha, daqueles produtos - uísques e ideologias - são adulterações grosseiras, imitações intragáveis que só os cérebros e fígados pouco exigentes conseguem ingerir.

            Àqueles sindicalistas semi-analfabetos que se espantam com o fato de alguém ter uma casa grande e pertencer ao PT eu queria lembrar que Friedrich Engels tinha interesses em indústrias, interesses que herdara de seu pai na Inglaterra e, por isso, por ser um próspero industrial inglês, transferiu-se para a Ilha, tendo sido, sem dúvida alguma, um dos maiores socialistas do mundo.

            Os alemães Karl Marx e Friedrich Engels, por terem vivido longo tempo na Inglaterra e analisado de forma crítica os ideólogos irlandeses e ingleses, edificando “uma crítica da economia política”, afirmaram-se sobre o socialistas do continente - Proudhon, Sismondi e outros.

            No Brasil, alguns pseudo-socialistas fizeram uma revista que intitulam de Economia Política como se estivessem fazendo grande coisa. A revista deveria ter se chamado “Crítica da Economia Política”, uma vez que a economia política, em si, é um produto desses intelectuais, ideólogos, defensores do capitalismo. Portanto, uma revista que se pretendia socialista e crítica no Brasil deveria se chamar “Crítica da Economia Política”, e não uma revista de economia política.

            O cinismo e a astúcia, desenvolvidos pela paciência de “intelectuais” que trabalhavam para aumentar o poder dos ilhéus sobre o resto do mundo, são ingredientes tão essenciais à produção da ideologia intitulada “ciência econômica” e, mais tarde, economics, quanto o malte, a temperatura e os tonéis britânicos são necessários à obtenção do verdadeiro e genuíno uísque.

            Os comerciantes, ao se enriquecerem, deixaram de ser os outlaws, marginais, feirantes e abarracados, perseguidos, para ir criando os seus direitos, aproximando-se da nobreza, associando-se a ela em suas companhias de navegação, em seus navios piratas e em seus casamentos.

            “O capitalismo não nasce na circulação” (no comércio), “mas não pode nascer fora dela”, coloca Marx em determinação de difícil compreensão. Para que se constituam o comércio interno e o internacional é preciso que a produção, que produz os objetos comerciados, interrompa as compras (de matérias-primas, de máquinas e de força de trabalho), realize a metamorfose física daqueles elementos, que é o processo de produção, para reiniciar a circulação com a venda de mercadorias. Para que o comércio exista e se expanda é preciso, pois, que, antes, a produção tenha aumentado.

            Como tudo mais, o comércio nasce na produção. A produção do pensamento acompanha e interage sobre as transformações da vida social. As matérias-primas necessárias para que um novo produto ideológico, que expresse os interesses e fundamente os privilégios que o segmento mercantil manifesta e conquista, vão se constituindo nas cabeças de alguns irlandeses, escoceses e ingleses, porque as condições práticas já as haviam produzido.

            O pensamento humano só é suicida quando constitui uma aberração. Por isso, as versões empobrecedoras, desempregadoras, emagrecedoras, destruidoras das sociedades e da natureza são desvios produzidos pela astúcia humana, geralmente produtos de exportação, aptos para serem exportados e provocar os danos em outros países importadores de uísques e de modelos ideológicos da embriaguez e da loucura.

            “Eu não pergunto se uma proposição é verdadeira, mas se ela é útil, se ajuda a preservar a sociedade”, afirma a penetrante sutileza de Nietzche. Os mercantilistas, cujo pensamento dominou o mundo ocidental por mais de 250 anos, disfarçaram seus interesses particulares de enriquecimento, de aumento de suas vendas, de ampliação dos mercados, numa versão ideológica aparentemente consistente - e, infelizmente, o mercantilismo sobrevive até hoje em países atrasados como o Brasil.

            O “novo” sistema ideológico exigiu, para sua produção, conceitos novos de riqueza, uma nova visão das atividades enriquecedoras e do relacionamento entre seu enriquecimento próprio e a riqueza do soberano e da nação, “provando” como o aumento das exportações beneficiaria também os pobres, abriria novas oportunidades de emprego interno e estimularia a agricultura. Esse “exportacionismo”, próprio dos mercantilistas, é o que se instaurou no Brasil logo após a maxidesvalorização de janeiro do ano passado. Agora só se fala em exportar, e o Governo importador do ano atrasado se transformou neste estimulante das exportações desarvoradas.

            Os advogados da modernidade mercantilista e de seus interesses particulares defendiam suas teses com argumentos frágeis e capengas, tão absurdos quanto os dos neoliberais de hoje, que defendem a sangria do enxugamento, o desemprego de funcionários e de trabalhadores, o império da máquina e do capital financeiro sobre a vida e a sobrevida sobrevivente da sociedade, a doação de empresas estatais, o emagrecimento e a anorexia resultantes do corte de “carnes e gorduras”, a falência e a destruição de empresas produtivas, a desnacionalização das riquezas, e diante do panorama de uma sociedade desesperada e exasperada, o salvacionismo dos bancos, a transfusão de sangue da saúde, da educação, do ensino, das pesquisas, do salário mínimo e do minimizado, transfusão da vida para o sistema financeiro, imperialista, senil e devorador insaciável.

            É conhecida a exacerbação da ideologia dos comerciantes que se expressou na frase “o medo às mercadorias”, que estaria dirigindo sua atividade exportadora, que visava obter saldos de exportação. “Exportar é o que importa”, afirmam os velhos mercantilistas e os novos e ignorantes dirigentes do Banco do Brasil, do Banco Central, da Fazenda e do próprio País.

            Do ponto de vista dos comerciantes exportadores, não pode haver dúvida de que quanto mais exportarem maiores serão suas receitas e seus lucros. Mas o que é verdade do ponto de vista de um indivíduo ou de um grupo pode não do ser do ponto de vista da sociedade, do todo. Um país empenhado em aumentar o saldo da balança comercial - e isso os mercantilistas escondiam - reduzia os bens consumíveis internamente, reduzia a oferta doméstica de mercadorias e, ao mesmo tempo, aumentava as rendas monetárias, a base monetária, gerando uma pressão inflacionária. A inflação dos séculos XV e XVI, provocada pela remessa de ouro do Novo Mundo para o Velho, inaugura “the new age”, por razões óbvias que o Lord Keynes, autor da assertiva, não expôs. O esperto Lord afirma que deixa de esclarecer a fantástica dinâmica da chamada acumulação primitiva para “não complicar a argumentação” (encumber the argument).

            O que não foi determinado na era mercantilista e nem na idade da razão esquizofrênica, neoliberal, é que, tanto o processo das importações quanto o das exportações é regido por leis dialéticas. A partir de certo montante quantitativo de exportações, uma nação percebe que está se empobrecendo, transferindo riqueza real para o exterior. É o que o Governo brasileiro tenta fazer agora. Se os saldos comerciais que enriquecem os exportadores levam os consumidores nacionais à penúria, é da cesta de consumo dos pobres que se exportam os alimentos e as commodities com as quais se pagam as importações de artigos de luxo (os carros, os perfumes, os uísques, as gravatas Hermes etc) que sobejam na cesta de consumo dos ricos. Como o saldo na balança comercial gera um aumento da entrada de dólares, que o Banco Central deve cambiar por reais para pagar os exportadores sorridentes, a base monetária se alarga. Os saldos comerciais provocam outra pressão inflacionária que obriga o Governo a aumentar a dívida pública, vender papéis, títulos da dívida pública, para tentar enxugar o sistema e evitar o galope da inflação. A dívida pública se eleva no lugar da taxa de inflação, para evitar que a inflação dispare. A dívida líquida total do setor público se elevou de R$152.408 milhões, em dezembro de 1994, para R$516.572 milhões, em dezembro de 1999. Portanto, nesse curto espaço do Governo Fernando Henrique Cardoso.

            O aumento das exportações, que foi um dos principais culpados pela elevação da dívida pública, significou, no momento anterior, redução da oferta de mercadorias que deixaram de ser oferecidas ao mercado interno para serem desviadas para o exterior, exportadas. As exportações, que são maravilhosas aparentemente, voltam a ser festejadas pelo Governo brasileiro que, há pouco tempo, erigiu as importações e o déficit na balança comercial em âncoras douradas do fantástico Plano Real.

            Se a taxa de câmbio que sobrevalorizou o real para estimular as importações a preços subsidiados - importações que achataram a inflação interna e destruíram a produção e o emprego nacionais -, provocou a elevação exponencial da dívida externa, a mágica de Gustavo Franco só poderia durar enquanto se pudesse “dar linha” para o endividamento externo. E a corda se acabou com a fuga das reservas voláteis e com a certeza dos banqueiros, credores do mundo, de que aquela mágica besta teria vida micróbia e perigosa.

            O achatamento dos preços internos foi viabilizado no período do real, em parte, porque a dívida externa total passou de US$148.295 bilhões, em dezembro de 1994, para US$243.165 bilhões, em dezembro de 1998. Em seis anos de responsabilidade social e de sorrisos narcísicos, a dívida externa cresceu tanto quanto o fizera nos 500 anos anteriores. Conseguiram fazer 500 em cinco. Em cinco anos, aumentaram a dívida tanto quanto a haviam aumentado nos 500 anos anteriores. Isso é que é fazer 500 em cinco, ultrapassando a meta do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, que era bem diferente dessa.

            Recorde-se de que o Plano Real foi mais esperto que os anteriores. Em vez de congelar preços no nível do dia em que o pacote foi baixado e os salários pela média do período anterior, o Plano Real surripiou 12% do poder de compra de vencimentos e salários e deixou os preços subirem liberalmente e livremente.

            Outra novidade neoliberal, usada para reduzir vencimentos e salários reais, foi a transferência de despesas públicas - da saúde, educação, estradas, serviços públicos de comunicação, eletricidade etc. - para os bolsos dos cidadãos.

            Os acréscimos de despesas privatizadas reduziu os salários e vencimentos. O pagamento de pedágios sobre estradas, ensino, educação, saúde fez reduzir os salários e vencimentos anteriormente disponíveis para a compra de meios de consumo, lazer etc.

            De modo que esse foi um instrumento novo que os fabricantes do Plano Real introduziram na economia brasileira. Além de não repor os salários reduzidos pela inflação residual, eles transferiram do orçamento público para o orçamento familiar todas essas despesas. Isso não aparece como redução de salário.

            O Ministro Rubens Ricupero, que tem o hábito insuportável, mortal para o capitalismo, de dizer a verdade, esclareceu que a elevação de preço se deteria quando os comerciantes e produtores percebessem que, se continuassem a aumentar preços, os consumidores deixariam de efetuar suas compras. As vendas cairiam e, com elas, as receitas e os lucros dos remarcadores, decepcionados.

            Assim, ao invés de um simples congelamento de preço no zênite e de salários no nadir, o esperto Plano Real inovou: deixou os preços subirem até as alturas em que o congelamento alcança temperaturas negativas enormes, mumificando os preços. Qualquer temperatura positiva, qualquer elevação residual de preços não pôde contagiar os salários, que permaneceram em rigidez cadavérica. Os sindicatos foram desmoralizados, a fim de quebrar-se o termômetro das pressões sociais dos indicadores de greve.

            Como meu tempo já está terminado e, como sempre, não tenho condições de chegar até o fim do meu discurso, saltarei algumas páginas para tentar me concentrar no que me inspirou o título: Os déspotas sem pescoço.

            Estou querendo dizer que o capitalismo é tão contraditório que quando se aumentam as exportações, o país empobrece, obviamente. E nós fazemos isso há 500 anos, com exceção da década de 70 deste século e de agora, recentemente, no Plano Real. Para permitir que importássemos, achatando os preços internos e destruindo empregos, indústrias etc., o que eles fizeram? Valorizaram o real, para que importássemos barato. Essas importações subsidiadas pela taxa de câmbio alucinada imposta pelo Sr. Gustavo Franco, ao invés de trazer fartura geral, aumentando a oferta de mercadorias, acabou destruindo empregos e indústrias e aumentando a dívida externa, o que colocou um ponto final na farra do Sr. Gustavo Franco, na mania de importação que dominou o Banco Central e seu Presidente.

            O que acontecia na Inglaterra quando se exportavam mercadorias sem elaboração, sem serem manufaturadas naquele país, como, por exemplo, os carneiros ingleses? Quando, no mundo dos mercantilistas, algum inglês ousasse exportar in natura, sem beneficiamento, havia no tempo da Rainha Elizabeth I, que vigorou de 1565 a 1566, a proibição de exportação de ovelhas vivas. A mesma proibição de exportação de matérias-primas foi baixada em ato promulgado no tempo de Carlos II, de 1660 a 1685. A primeira infração era apenada com o confisco da propriedade. Quem exportasse in natura na Inglaterra liberal, mercantilista, perdia a sua propriedade, era condenado a um ano de prisão e “decepação” da mão esquerda. Foi assim surgindo o liberalismo inglês.

            Isso se encontra no livro de Jacob Oser, The Evolution of Economic Thought, página 11.

            A pena de morte era aplicada em caso de reincidência. Quem exportasse produtos in natura na Inglaterra era condenado à morte. Se os presidentes do Banco Central, Banco do Brasil e os ministros e tecnocratas, exportadores de nossas riquezas in natura e de nossas commodities não fossem americanos de dupla nacionalidade, estariam todos com suas mãos esquerdas cortadas e os reincidentes sem pescoço. Imaginem que espetáculo se os tecnocratas com as mãos esquerdas cortadas e alguns deles sem pescoço perambulassem por aí!

            Até mesmo na liberal Inglaterra, a economia já foi coisa séria, mas nunca deixou de ser muito perigosa, como disse Keynes, para os que sofrem suas conseqüências e mesmo para os que aplicam seus tremendos princípios.

            Se os importadores escancarados e os exportadores criminosos mereceram perder propriedade, mãos e pescoços, como sobreviver diante da necessidade indiscutível de exportar e de importar mercadorias? O ideal seria o equilíbrio entre importações e exportações, incompatível com uma economia capitalista, de mercado, que tem o objetivo de maximizar os lucros e, portanto, a diferença entre o custo de obtenção e o preço de venda das mercadorias?

            A solução é simples, óbvia: a mercadoria nasce como produto social que permite a valorização, a extração de mais-valia. Ela expressa a força e o poder de uma classe social sobre a outra. As mercadorias são portadoras de poder, são instrumentos de dominação interna e internacional, e não apenas quando produzidas sob a forma de armas, de bombas, de napalm ou de dólares; são instrumentos de guerras e de conquistas. Assim, o metabolismo entre os homens e entre eles e a natureza só poderá ser proveitoso para a sociedade e a civilização, quando os produtos do trabalho humano e da técnica deixarem de ser mercadorias, perderem suas determinações bárbaras, mercantilistas, capitalistas.

            Sr. Presidente, solicito inserção nos Anais do Senado do meu pronunciamento na íntegra.

            Muito obrigado.

 

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SEGUE, NA ÍNTEGRA, PRONUNCIAMENTO DO SR. SENADOR LAURO CAMPOS:

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            Modelo15/4/243:10



Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/12/2000 - Página 24691