Discurso durante a 172ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao centenário do Laudo Arbitral do Presidente da Confederação Suíça que fixou as fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa, pelo qual o Brasil incorporou definitivamente ao seu território cerca de 200.000km quadrados.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao centenário do Laudo Arbitral do Presidente da Confederação Suíça que fixou as fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa, pelo qual o Brasil incorporou definitivamente ao seu território cerca de 200.000km quadrados.
Publicação
Publicação no DSF de 13/12/2000 - Página 24743
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, LAUDO ARBITRAL, PRESIDENTE, CONFEDERAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, SUIÇA, FIXAÇÃO, FRONTEIRA, BRASIL, GUIANA FRANCESA, DEFINIÇÃO, INCORPORAÇÃO, REGIÃO, ESTADO DO AMAPA (AP), TERRITORIO NACIONAL.
  • COMENTARIO, HISTORIA, BRASIL, ESPECIFICAÇÃO, ESTADO DO AMAPA (AP).

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Sr. Ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, Sr. Ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, Srs. Embaixadores, Srs. Senadores, minhas Senhoras e meus Senhores.

            Em 1º de dezembro de 1900 tinha o Brasil resolvido a Questão do Contestado do Amapá. Esta região ficava definitivamente incorporada ao nosso território, através do Laudo Arbitral Suíço, tornado público em Genebra, pelo Conselho da Confederação Helvética.

            Comemoramos hoje, nesta sessão, o seu Centenário. É, sem dúvida uma data da maior importância histórica para o nosso país. Gratidão aos portugueses que por essa região lutaram trezentos anos, lutas vencidas e ratificadas em Tratados que remontam, como o de Lisboa, a 1700, e o de Utrecht, 1715, em ações de defesa e fortificação, combates e ocupação.

            Reverenciamos os brasileiros que, sucessores dos direitos portugueses, ali continuaram a luta e, perdidos na solidão de imensas florestas e encachoeirados rios, enfrentaram todos os sacrifícios para tornar brasileira essa região.

            A melhor maneira de comemorar a data é recordar a História.

O Amapá é o único Estado do Brasil que se tornou brasileiro pela vontade de ser brasileiro.

Afonso Arinos, em seu livro A Voz de outro Sino, diz que Minas Gerais é o único estado do Brasil que jamais teve a tentação de não ser brasileiro, porque nunca teve lutas para ser conquistado. No Amapá, a História se contorceu. Surgiram heróis e mártires. Foi a determinação dos homens e mulheres do Amapá que, em incursões de idealismo e patriotismo, fizeram descer a bandeira da França e alçaram a bandeira do Brasil. O coração de ser brasileiro estava no peito dos amapaenses.

            Essa vontade tem raízes no século XVI. Descoberto o Brasil, os portugueses, na aventura de conquistar o mundo e ocupar o vasto império dos mares que estavam descobrindo, da América às costas da China, visitaram o sul do Brasil em passagens esporádicas, sem verdadeiramente ocupá-lo.

            No Norte, a situação era de ausência. A margem esquerda do rio Amazonas era área deserta, até mesmo de povoação nativa, das tribos que aí habitavam. Eram os tucujus e tapuiaçus (ou tapujuçus). O mapa de João Teixeira Albernaz, de meados do século XVII, incluía mais uma: a dos Marigus. Na verdade eram todos pertencentes aos três grupos indígenas dos Aruaques, dos Caraíbas e dos Tupis-Guaranis. Os dois primeiros desceram da América Central e do mar do Caribe. Já os Tupis-Guaranis vinham do sul, pelo mar, e contra os outros travavam guerra, tentando expulsá-los.

Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o espanhol Vicente Yáñez Pinzón visitou a costa nordeste da América, provavelmente a costa do Ceará e, em vez de ir para o sul - talvez devido às correntes marítimas e aos ventos -, demandou para o norte. Percorreu toda a costa - Carlota de Carvalho refere-se que tinha passado pelo Maranhão e relaciona alguns acidentes geográficos a essa viagem de Pinzón - e chegou à frente de um grande volume de água doce que ele não entendia o que era - água doce que se estendia por cerca de cinqüenta léguas de largo e dezesseis léguas no caminho do mar, toldando o oceano. (Hoje sabemos que a água doce do grande rio alcança trezentos e vinte quilômetros.) Chegou até o estuário de um grande rio que, enroscado em igarapés, furos, rias e passagens, não se dava a conhecer.

            Era o Amazonas, indiferente a tudo, que abre a sua boca num estuário imenso. Tolda de barro as águas azuis. Corre por entre igarapés, rias, estreitos, canais. Invade florestas, oscila nas marés e nas estações. Sua margem esquerda serpenteia entre ilhas e bancos de areia, recebe o rio Jari, majestoso, que se despenca das alturas das belas cachoeiras de Santo Antônio. Chega largo e com a cabeleira ondulante das primeiras ondas, chega à foz, já no Atlântico. Só céu e águas. Ao lado aparece a cidade de Macapá, rica de história, com o seu forte de São José, imponente, heróico, sombra da missão que lhe deram de defender este lado, para afastar corsários e aventureiros, impedindo-os de subir o grande rio, reservado a domínio e a amores de Portugal.

            Pinzón conheceu a ilha de Marajó que chamou de Marinatãbalo, assinalou um cabo que chamou de São Vicente, que deve ser o cabo Orange, e chamou o Amazonas de Santa María de la Mar Dulce. À região para o Norte, onde é hoje o Amapá, era, como chamou, de costas anegadas, isto é, “terras afogadas”. Descobriu o rio Oiapoque, que logo recebeu seu nome. Esta era a região aproximada da linha de Tordesilhas, que, tanto pelas indefinições do texto do Tratado, como pela própria dificuldade de se saber exatamente onde se estava, não se sabia onde passava.

            Mais assinalada ficou a viagem de Orellana, de 1540 a 1542. Partiu ele de Quito e chegou, pelo Amazonas -- naquele tempo em geral chamado de rio Marañón --, ao Atlântico. De volta à Espanha, ganha a concessão dessas imensas terras, incluindo o Amapá, e, ao vir ocupá-las, morre na foz do rio que explorara, depois de naufrágios sucessivos. Em seguida, no ano de 1546, Luís de Melo e Silva passa pela boca do Amazonas, e do rei de Portugal consegue também uma concessão, uma capitania cujo nome e documentos não nos chegaram. Mas também morre no desejo de possuí-la, tragado em suas águas.

            Apesar dos malogros e da falta de documentos, sabemos que eram freqüentes as passagens dos portugueses pela área do Amapá. Como assinalou o Barão do Rio Branco, os mapas desse tempo, inclusive os holandeses, em geral já trazem marcado o nome português de Cabo do Norte. Mas a visita seguinte, documentada, é de franceses. De dois deles guardamos os nomes, porque depois se fixaram em terras da ilha de Ipaon-açu (hoje a ilha de São Luís), no Maranhão: Jacques Riffault e Charles des Vaux.

            Pois é daquela região, entre a foz do Orinoco e a do Amazonas, mediterrânea, área das caravelas espanholas, que se levavam o ouro e a prata do México, e da costa norte do Brasil, de onde as naus portuguesas levavam açúcar e paus de tinta, peles e papagaios.

Francisco I mesmo formulou a célebre questão: queria ver o testamento de Adão que tinha dividido o mundo em duas partes -- metade dos portugueses e metade dos espanhóis.

Nesses episódios de pirataria, há um fato, de certo modo, pitoresco. Quando foi saqueada a nau La Pélerine, o armador francês reivindicou do governo português a indenização das cargas que iam nessa caravela, as cargas de paus de tinta, peles de animais selvagens e papagaios - 600 papagaios, diz o relatório de bordo, “sachant déjà quelques mots français”. Era, sem dúvida, uma grande mercadoria que iria para a Europa daquele tempo.

Poucos eram visitantes. Já no início do século XVII aparece o nobre francês Daniel de La Touche, Seigneur de La Ravardière, que, partindo de Cancale, na Bretanha, navega por estes mares até o rio Caiena, visita a terra de Yapoco, corre a costa do hoje Amapá, chega à foz do Amazonas, e volta à França levando um índio, Itapucu, que depois o acompanha em várias viagens. Com ele vinha Jean Mocquet, chefe do Gabinete de Singularidades de Henrique IV, o primeiro cronista do Amapá, quando conta a viagem de La Ravardière e as lutas entre os índios, e as novidades desse novo mundo. Esse La Ravardière ocupará logo posição muito importante na história das descobertas. Recebe de Henrique IV uma concessão para colonizar tão vasta região, fundar a França Equinocial.

Os franceses, então, chegaram ali para uma missão que, segundo João Lisboa, era diferente da dos holandeses, que chegaram depois, já que os holandeses tinham missão conquistadora e colonizadora, enquanto os franceses vinham em missão civilizadora.

Devemos a essa viagem de La Ravardière a fundação da França Equinocial. Sem dúvida, dois dos primeiros livros mais importantes da literatura de informação do Brasil são: Histoire de la Mission des Pères Capucins en L’Isle de Maragnon et Terres Circonvoisines, de Claude d’Abbeville, e o livro do Padre Yves D’Évreux, Voyage au Nord du Brésil. São livros extremamente importantes porque nos dão uma noção da terra. O livro de Claude d’Abbeville é o primeiro livro de informação da América do Sul que conta como os índios viam o cosmo.

Depois de derrotado pelos portugueses, que já ocupavam a área com Jerônimo de Albuquerque, na ilha de Ipaon-açu, La Ravardière é preso, perde o sonho de dominar o futuro estado do Grão-Pará e Maranhão, onde se encontravam encravadas as terras do Amapá.

            A região que começava no Amapá foi visitada por navegantes, corsários e piratas de várias nacionalidades. O desejo de colonizá-la aflora no fato de Richelieu ter criado, em 1633, uma empresa, a Companhia do Cabo Norte, para explorá-la até o Orinoco.

            Também, desde 1596, os ingleses aparecem, na pessoa do explorador Keymis, quem primeiro deu o nome de Oiapoque ao rio de Vicente Pinzón. Nesse período ingleses, irlandeses e holandeses fazem várias visitas registradas à foz do Amazonas, o que supõe ser as terras amapaenses. Eles, também, ganham concessão do rei da Inglaterra, James I. O mais importante deles, o notório Sir Walter Raleigh, estava convencido que ali era o Eldorado, e divulgou esse mito. Até o Duque de Buckingham foi dono do Amapá. Todos eles, depois da derrota dos franceses em São Luís do Maranhão, foram expulsos da região.

            Começa verdadeiramente em 1637 a colonização européia do Amapá com a sua concessão, a Bento Maciel Parente, governador do Maranhão e Grão-Pará, como Capitania do Cabo Norte, por Filipe IV de Espanha e III de Portugal. As terras do Amapá são delimitadas, pela primeira vez, do Oiapoque ao Paru, passando pelo Jari. Como desde 1580 estavam unidos os reinos de Portugal e Espanha, e não havia a questão do limite entre suas terras na América, não se examinou se este limite estava aquém ou se estava além da linha de Tordesilhas. Bento Maciel Parente logo começa a fazer a ocupação efetiva de sua Capitania.

            Outro capitão português, também importante nessa ocupação da região, foi Pedro Teixeira. Alertado pela viagem que fazem os franciscanos Domingos de Brieva e André de Toledo, do Napo até Belém, sobe o Amazonas e vai a Quito com 47 canoas, setenta soldados, 2000 índios. Em sua viagem de volta, nesta exploração mais cuidada do Amazonas, veio seguindo pela margem esquerda, que os jesuítas Alonso de Rojas e Christoval de Acuña, enviados em sua companhia, na narração da viagem, chamam de Banda do Norte. Acuña afirma, ao se referir ao atual Amapá:

As terras da Capitania do Cabo do Norte, além de serem elas sós maiores que toda a Espanha junta, e haver nelas muitas notícias de minas, têm pela maior parte o solo mais fértil e para dar maiores proveitos e melhores frutos do que quantas há neste imenso rio da Amazonas.

            É a época em que as fortificações se sucedem, primeiro com a consolidação de Gurupá, logo com a de Cumaú, que, deslocada da ilha de Santana para a margem norte, daria origem a Macapá. Época também da penetração dos religiosos jesuítas e franciscanos, que fixou os índios nas aldeias das missões.

No final do século XVII os franceses, finalmente instalados em Caiena, tentam pela primeira vez estabelecer seu domínio na margem esquerda do Amazonas.

Já que eles estavam em Caiena e não havia uma noção de delimitação, eles achavam que a posse da França ia até a margem esquerda do rio Amazonas.

            O Marquês de Ferroles desce pessoalmente duas vezes ao futuro Amapá; da primeira vez até ao Araguari, onde encontra um forte português que o faz tornar caminho; uns poucos anos depois desce com mais armas e toma Cumaú: na ilha de Santana permanece por menos de um mês, logo expulso pelos soldados lusitanos.

            O princípio do século XVIII é a época da solução diplomática. Tenta-se a submissão de Portugal, Mas em 1713 é firmado em Utrecht, em meio a grandes negociações entre as potências européias, um tratado que fixa a fronteira entre as terras de França e Portugal, na América, no rio Yapoco ou Vicente Pinzón. A França abre mão de todo e qualquer direito e pretensão que pode ou poderá ter sobre a propriedade das terras chamadas do Cabo do Norte, e situadas entre o Rio das Amazonas e o de Japoc, ou Vicente Pinzón. Em virtude desta dupla alusão, duraria quase duzentos anos a discussão sobre se o Oiapoque e o Vicente Pinzón eram o mesmo rio, e quais rios eram. Isto é: onde a fronteira.

            Mas, mesmo com a indefinição dos limites, os portugueses ocuparam a região e a defenderam desde Gomes Freire de Andrade. Com Pombal, seu irmão Francisco Xavier Mendonça Furtado é nomeado Governador do Grão-Pará e Maranhão, e constrói o forte de S. José de Macapá para defender a margem esquerda do Amazonas, fortificação esta até hoje preservada como a maior e mais bela representação da engenharia militar colonial no Brasil. Nasceu com ele a vida de Macapá, em 1758.

            Para defender a região, são construídos os fortes de Maiacari, 1776; de Araguari, 1781; de Macari, 1783. Em 1793, Dom Francisco de Sousa Coutinho manda recuperá-los e reequipá-los.

            Conquistador da Europa continental, Napoleão fez constar, nos vários tratados que impôs a Portugal -- Badajós, Madri, Amiens, Fontainebleau -- que a Guiana vinha até o Amazonas. Mas, ao afugentar a família real portuguesa de Lisboa, deu origem a uma reação militar que resultou na determinação de D. João VI de mandar ocupar Caiena. A 1º de maio de 1808 D. João denunciou formalmente aqueles tratados. Em dezembro nossa esquadra atingiu o Oiapoque, em cuja desembocadura o forte Saint Louis estava coberto de mato. A 6 de janeiro de 1809 efetuou-se o desembarque na ilha de Caiena. O futuro Marquês de Queluz, Maciel da Costa, governou a antiga colônia francesa por sete anos, e recebeu, ao entregá-la de volta à França, feita a paz entre os dois países e anulados os tratados impostos pelo imperador francês, as lágrimas de saudade da população.

            Resolução do Congresso de Viena, em 1815, determinou devolver-se a Guiana até o Oiapoque, o que foi confirmado pelo Tratado de Paris, de 1817. Mas o documento determina que se procederá imediatamente das duas partes à nomeação e envio de Comissários para fixar definitivamente os limites das Guianas Francesa e Portuguesa, conforme ao sentido exato do artigo VIII do Tratado de Utrecht. Permanece um estado de dúvida sobre a fronteira durante os primeiros anos do Império brasileiro. O governo de Louis Philipe adota uma política expansionista, e sustenta que a fronteira é no rio Araguari. O Brasil admite uma situação de contestação do território entre o Oiapoque e o Araguari, e acorda com a França uma neutralidade em que nenhum dos dois países deve intervir, a não ser como polícia e justiça de seus respectivos cidadãos.

É da maior importância, Senhores Senadores, verificar todo esse processo que ocorreu naquela região - e acho que a melhor maneira de comemorarmos esse centenário é recordar a História - para que se possa ter noção de como se constrói uma nação, pela visão dos que nos antecederam na construção de um país e o que ocorreu, realmente, naquela região. E hoje nós sabemos quanto foi importante para o Brasil, no momento em que - sabemos, a água doce é hoje o recurso natural mais crítico na face da Terra, e que aquela região, o Amazonas, tem cerca de 12% da água doce de todo o mundo -- podemos avaliar o que constituiu esse fato, que hoje comemoramos, e também a ambição de ceder o rio à navegação e ao comércio internacionais. Porque até hoje se discute que, naquele tempo, pela solução que foi dada, o Brasil pôde incorporar ao seu patrimônio a navegação do seu grande rio e tornar-se, naquela região, o grande país possuidor dessas riquezas.

Chamo-lhes agora a atenção para um fato muito interessante. Durante a discussão sobre o Tratado, na Suíça, no fim do século XIX, o governo francês invocava: “O Brasil é tão grande, com mais de 8 milhões de quilômetros quadrados e está brigando por 300 mil quilômetros quadrados?” O Barão Rio Branco respondeu: “Maior do que o Brasil é a França”. Num argumento de muita acuidade, somou todos os territórios coloniais franceses e disse que a França era maior do que o Brasil, porque somava 12 milhões de quilômetros quadrados.

            Na discussão dessa região, surge uma figura interessante, que hoje devemos também reverenciar e lembrar: o gaúcho Joaquim Caetano da Silva. Cônsul-geral do Brasil na Holanda, desde 1850, dedicou-se a estudar a questão do Oiapoque e da fronteira com a Guiana francesa. Fez a leitura de uma primeira memória -- Memória sobre os limites do Brasil com a Guiana Francesa, conforme o sentido exato do artigo oitavo do Tratado de Utrecht -- e apresentou seu estudo no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1851, diante do Imperador. Continuou aprimorando seu trabalho, até que o apresentou à Sociedade de Geografia de Paris em 1858. A esta versão chamou L’Oyapock et l’Amazone. Um vade-mécum.

Durante todo o tempo da discussão desse assunto, cerca de 80% dos argumentos apresentados pelo Barão do Rio Branco encontram-se nesse livro, que, infelizmente, até hoje, não tem uma edição em língua portuguesa. A primeira e única edição que consegui, com essa mania de visitar livreiros, comprei em uma livraria de Paris, um exemplar, que trouxe aqui comigo, hoje, a mostrar nesta sessão comemorativa do Senado Federal.

Esse homem dedicou-se ao estudo dessa questão. Levantou mapas, identificou acidentes geográficos, visitou os arquivos europeus e construiu toda a argumentação da qual o Brasil vai se utilizar, na Suíça, na defesa dos seus direitos, sobre a margem esquerda do rio Amazonas.

            A este homem - Joaquim Caetano da Silva - devemos reverenciar, também, neste Centenário.

            Senhor Presidente,

            Na história do Amapá, dois fatos singulares foram a corrida do ouro e a República do Cunani. A República do Cunani era tida como uma iniciativa sem qualquer dimensão. Resolvi estudá-la. Revistei os arquivos brasileiros e franceses. Fiz uma releitura. Cheguei à conclusão de que não era o que parecia ser. Tratava-se na verdade de uma inteligente e sábia ação diplomática e política, com o objetivo de criar-se uma região independente, sob a proteção da França. Por trás de toda a história dessa república, que escolheu bandeira, elaborou leis, selo, e instituiu condecorações, está a razão política de tentar desvincular o sentimento brasileiro da questão do contestado.

            Politicamente, o fio revelador está na figura de um homem simplesmente chamado de Trajano. Tido pelos historiadores que trataram do fato como o Preto Trajano, na realidade era o Capitão Trajano Benitez, protegido da França e o criador da République du Counani. Publiquei, no livro Amapá: Terra onde o Brasil Começa, documento encontrado no Quai d’Orsay, altamente revelador porque explica o motivo de o Governador de Caiena enviar uma missão tão grande libertar o Capitão Benitez na vila de Amapá, onde fora preso por Veiga Cabral, Cabralzinho, em 23 de outubro de 1886. Cito:

Eu Trajano, Capitão Chefe do rio Cunani, Chefe da Capitania da Guiana Independente, em nome e delegado pelos principais negociantes e pela maioria dos habitantes declaro o que se segue:

1) Organizar no nosso país um governo que será República e reconhecido depois pelas duas potências, a França e o Brasil.

2) O governo em questão já tendo sido declarado e proclamado em mais de 10 reuniões públicas às quais assistiu o Sr. Guigues, explorador. Segue-se que queremos:

a) nos reger pelas leis francesas, quer dizer que adotamos o código francês como legislação de nosso país

b) que a língua francesa seja a língua governamental

c) … nosso presidente, o Sr. Jules Gros…

Nossa república tendo sido declarada… pedimos a proteção dos Estados vizinhos.

Viva a França

Revela-se aqui que o Capitão Trajano Benitez era o encarregado de fundar uma república tampão naquela região, que se chamaria République du Counani, fundada na Vila do Counani, que visitei recentemente. É um vilarejo com dez casas e uma igrejinha - naquela época, deveria contar 20 casas -, onde se fundou uma república que emitiu selos e moeda. Hoje, cria-se no Brasil, aqui nesta sessão do Senado, o selo comemorativo dos 100 anos do Laudo Arbitral que circularão pelo mundo inteiro, enquanto isso, os selos da republica do Cunani constituem uma raridade.

            É quando surge, para resistir, a figura de Veiga Cabral, o Cabralzinho, mistura de herói e fanático. A coragem deste homem não tinha limites e foi ele quem, dominado pelo sentimento brasileiro, fez que os franceses recuassem da aventura de possuir, sem resistência, aqueles territórios.

            Cabralzinho funda outra República do Cunani, esta, do lado brasileiro. E logo preside o triunvirato que a governa.

            Veja-se como naqueles lugares solitários era lançada uma cartada política da maior importância! O Congresso americano mesmo tomou conhecimento do fato através da Mensagem Anual, dirigida pelo Presidente Cleveland. Embora a dimensão do fato tenha sido limitada, ele revela que a questão do Contestado constituiu a ameaça de criar-se um país cunha entre a Guiana francesa e o Brasil.

            Foi a luta dos amapaenses que fez abortar tudo isso. Deve o Brasil aos amapaenses, nessa luta, também, a liquidação de uma questão maior: a navegação internacional do Amazonas, aspiração alienígena que ainda persiste.

            Depois dela, Brasil e França foram forçados a resolver de uma vez por todas as questões. E foi a complexa e notável figura do Barão do Rio Branco quem dirigiu a guerra diplomática. Do saber enciclopédico ao charme e à sedução, do texto escorreito em várias línguas à montagem de uma rede de agentes a vasculhar os arquivos europeus, usou ele de todas as armas. E a vitória foi completa. O Brasil pôde então reunir novamente a região entre o Oiapoque e o Jari. Eis o Amapá!

            Mas, Senhor Presidente, há um capítulo a destacar na luta por aquelas terras: a descoberta do ouro, em 1894, que provocou a cobiça e agravou a disputa territorial já acirrada que ali se travava. Em busca daquela nova riqueza descoberta, descem os franceses de Caiena e se concentram em Calçoene.

            No dia 10 de dezembro de 1894 os brasileiros passaram à ofensiva na região do Cunani. Reuniram-se em Amapá os homens de maior prestígio: Francisco Xavier da Veiga Cabral, dito o Cabralzinho, Desidério Antônio Coelho, Manuel Gonçalves Tocantins. Desidério foi aclamado chefe do movimento.

            Convocou-se uma Assembléia Geral do Cunani para o dia 26 de dezembro. Lavrou-se ata:

Aos vinte e seis dias do mês de dezembro do ano de mil oitocentos e noventa e quatro pelas sete horas da nuite [sic] na sala da Capitania do Amapá, achando-se reunidos grande número de habitantes e muitas famílias o sr. Desidério Antônio Coelho que, achava-se no governo deste distrito, abriu a sessão e agradecendo a nomeação do Capm. do lugar pediu a sua demissão; foi então por ele mesmo lembrado da criação de um novo Governo conforme o programa incluso a do Triunvirato e seus suplentes sendo eleitos por unanimidade para Presidente o reverendo Cônego Maltez, Francisco X. da Veiga Cabral e Desidério Antônio Coelho. Suplentes: os Senrs. Raimundo Antônio Gomes, João Lopes Pereira, Manuel Joaquim Ferreira. Foi então nomeada uma Comissão para comunicar esta decisão ao Revmo. cônego Maltez, foi saudada por todos os presentes. Aceito o cargo, depois dos presentes terem prometido o seu apoio para que pudesse Governar (sic) com segurança. O ex-Capitão Eugenio Voizen (sic), declarou publicamente aceitar a nova forma de Governo, tendo sido nesta ocasião nomeado Cap. Honorário do Exército Amapaense.

            É quando ressurge Trajano Benitez. Assumindo uma atitude de contestação, provoca um manifesto da parte dos brasileiros:

O povo brasileiro residente no Counany leva ao conhecimento de V. Ex.as que o ex-capitão Trajano tem continuado a içar aqui a bandeira francesa, depois de ter por várias vezes rasgado e pisado o nosso pavilhão brasileiro e com impropérios tem sempre insultado a nossa cara Pátria Brasileira.

            O Triunvirato insistiu:

Este Governo atendendo as constantes queixas que tem recebido contra o infame procedimento que aí tem tido o degenerado brasileiro Trajano e seus comparsas, de desrespeito à nossa cara pátria, tendo tido o arrojo de rasgar e pisar o pavilhão brasileiro, e perseguindo os nossos bons patrícios e patriotas, que não se têm querido sujeitar aos procedimentos como os que acima ficam ditos. Atendendo que o fim de nosso governo é especialmente tratar do progresso deste território e mais, acabar de uma vez para sempre com os abusos até hoje praticados contra brasileiros RESOLVE este Governo expulsar deste território o infame e mísero brasileiro Trajano ... e seus companheiros de igual procedimento. … Cumpram e façam cumprir sob pena de desobediência a este Governo. Cidade do Amapá, 25 de abril de 1895.

            Trajano foi preso por Cabral na pequena vila de Cunani e levado para Amapá. No dia 9 de maio, em reação natural de defesa dos interesses dos franceses e também do sentimento patriótico ainda tão exacerbado naqueles dias, o governador da Guiana iniciou uma ação desproporcional. Pretendendo criar, para a França, uma política de fato consumado, resolveu “enviar sem nenhuma demora o aviso BENGALI ao Amapá a fim de libertar o nosso representante [dela, França], e prender, se possível, os autores de seu rapto”.

            Nascia uma missão de guerra com estas instruções:

A missão que vos incumbe é a seguinte:

“Atingir a vila do Amapá para arrebatar o capitão Trajano que se acha prisioneiro, e também o de nome Cabral, seu raptor, e no caso em que nem Cabral, nem Trajano se encontrem na vila, tomar o número de reféns que julgardes necessário.”

            O relato francês, a meio-termo entre a justificativa e a vanglória, é claro: os soldados franceses

…executam um combate de ruas, conquistam o resto da vila que durante a ação e sucessivamente, à medida que avança o ataque, é entregue às chamas.

Trajano, apavorado com a fuzilaria, se refugia na mata.

Os homens do bando de Cabral que puderam escapar ao nosso tiroteio desapareceram na direção [do] terreno arborizado, pantanoso, quase impenetrável, à margem do qual muitos deles foram mortos.

Depois da tomada total da vila, cessados os tiros (uma hora da tarde, mais ou menos), um pouco de ordem foi restabelecida em todas as frações, instalando-se um serviço de segurança.

As buscas no sentido de encontrar Trajano foram infrutíferas.

            O objetivo nominal da expedição, o resgate de Trajano, ficava inteiramente frustrado. A ordem, neste caso, passara a ser: levar reféns.

            Mas o que ocorreu foi uma resistência heróica de Veiga Cabral.

            Ele desarma o Comandante francês, mata-o e a dois soldados. Os atacantes, surpreendidos, recuam para, em seguida, matar a todos os habitantes da Vila do Amapá e incendiar a cidade.

            Citemos a narrativa francesa sobre a luta:

O combate do Amapá durou das 10 horas e 30 minutos da manhã à 1 hora da tarde. Tivemos do nosso lado seis mortos, entre os quais figura o capitão Lunier, vinte feridos entre os quais o 2º tenente naval d’Escrienne. Pode-se estimar a perda sofrida pelo inimigo em cerca de sessenta homens mortos.

            Estava criado, acreditavam os provocadores, o pretexto para a ocupação, primeiro passo para a anexação. A idéia de vingança -- dos franceses mortos num ataque deles? --, de lavagem da honra, foram utilizados em aventuras dessa natureza, com maior ou menor sucesso, em todos os tempos. Para exércitos coloniais era tão corriqueira como água.

            O chefe militar encaminhou seu relatório aos dirigentes políticos, pressionando pela decisão de força, acenando com uma realidade completamente distorcida: no episódio, segundo seu relato, haviam morrido 6 militares franceses e 60 civis brasileiros; nenhum francês fora ameaçado de morte pelo governo dos brasileiros em Amapá. Se algum governo tinha que tomar medidas para garantir a vida de seus cidadãos, dentro da lógica de Peroz, o alto comandante francês, era o governo brasileiro.

            O exército que Cabral pretendia organizar ainda era um sonho. Da parte dos brasileiros, a luta foi enfrentada pelos civis, que não tinham, justamente pela limitação de recursos humanos e materiais, o equipamento e o treinamento que caracterizam as organizações militares. Mas o documento francês contém uma afirmação central, já citada pelo Barão do Rio Branco em seu trabalho de defesa do direito brasileiro na região:

Os oito ou dez mil habitantes fixados atualmente no Contestado são brasileiros de coração e patriotas na alma. A ação de sua pátria de origem não ficou infrutífera; suas simpatias se inclinavam pela França há alguns anos apenas, hoje em dia eles estão diante de nós nos limites do ódio.

            O litígio mudara de cenário. Tratava-se agora de resolver definitivamente o pendência entre os dois países. Na cidade do Amapá mesmo, em demonstração contundente da mudança, prevalecia o anticlímax do conflito armado.

            Em princípio de 1896 Cabralzinho parte para um circuito de defesa da posição brasileira na batalha diplomática. Começa levando ao Presidente da República, Prudente de Morais, longo relatório sobre os acontecimentos. Sua viagem ao Rio de Janeiro é um sucesso. Em cada porto, ao longo da costa, explodem as manifestações de solidariedade e entusiasmo.

            Mas, Senhores senadores, abriam-se as portas do trabalho de gabinete, no qual Rio Branco não dispensava a informação e a contra-informação. Durante os anos seguintes um cientista ilustre, o professor suíço Emílio Goeldi, que desfrutava de grande respeito em sua terra, seria testemunha como agente brasileiro. Enviado como observador, contava o cenário em Amapá:

Contemplamos mais longe os frescos monturos de destroços e restos de incêndio de mais de 15 habitações, produto daquele terrível massacre de 15 de maio de 1895, contra a razão e o direito e sob flagrante quebra de compromisso, através do então governador de Caiena -- Charvein chamava-se o inábil diplomata de triste lembrança -- realizado pelos soldados da marinha francesa que tudo reduziram a cinzas. Por toda parte ainda se acham os vestígios daquela feia chaga da mais jovem história colonial francesa, estampada em meros orifícios de balas nas paredes das casas do porto e da igrejinha. Creio com firmeza que em cada francês honrado e sensato, tanto quanto em mim, que não pertenço a nenhuma das nações em conflito, diante dos túmulos, que guardam no novo cemitério do Amapá numerosas mulheres, crianças, anciãos e enfermos assassinados, a involuntária pergunta explode: -- Quem assume exatamente a responsabilidade neste escândalo sem remédio, que é um murro no rosto da civilização de nosso século? [Transcrito da Memória do Barão do Rio Branco.]O barão do Rio Branco

            Este fato tem repercussão no Brasil e na França, e precipita a resolução do conflito do Contestado, acordado o arbitramento.

            Senhor Presidente, Senhores Senadores,

            Desde a notícia da vitória do Barão do Rio Branco, José Maria Paranhos, em 1895, na grande disputa de fronteiras com a Argentina, na chamada Questão das Missões, o grande diplomata se debruçaria sobre sua próxima missão: o problema do Oiapoque.

            A campanha seria árdua. Primeiro ela se travaria dentro do próprio Ministério do Exterior. Rio Branco voltara ao consulado de Liverpool, seu posto formal, que manteve até fevereiro de 1896. Mas já a 31 de abril de 1895 estava na sua residência francesa -- Vila Molitor, nº 15, Auteil. Suas relações com Dionísio Cerqueira, novo ministro do Exterior, eram muito ruins. As negociações foram feitas primeiro em Paris, depois, por iniciativa francesa, no Rio de Janeiro. Os termos básicos, no entanto, foram os propostos pelo Barão, que assim resumiu o Compromisso de 10 de abril de 1897:

A disputa […] recai sobre duas linhas de fronteira a estabelecer entre o Brasil e a Guiana Francesa:

1º A linha que se chama geralmente o limite marítimo, porque deve formar a fronteira da parte marítima do território contestado, isto é, a linha que, partindo do litoral, segue o curso do rio Japoc ou Vicente Pinzón determinada pelo art. 8º do Tratado concluído em Utrecht no dia 11 de abril de 1713 entre Portugal e a França;

2º O limite interior que, partindo do Japoc ou Vicente Pinzón, deve se dirigir para o Oeste para completar a fronteira entre o Brasil e a colônia francesa.

O Árbitro será convidado a decidir qual é o rio Japoc ou Vicente Pinzón e a fixar o limite interior do território.

            O Barão tinha uma capacidade de trabalho extraordinária. Lançara-se completamente à tarefa, e em novembro de 1895 escrevia a um amigo: Já estou armado de todos os mapas e fac-símiles que puderam ser encontrados em França, Alemanha, Inglaterra e Espanha, e completei o estudo do que está impresso, adquirindo os livros e folhetos que não tinha.

            O gabinete de trabalho, com livros e documentos em aparente desordem, mapas cobrindo várias mesas, tornou-se uma imagem indelével de nossa história diplomática. Convocara sua equipe especializada: Charles Girardot mergulhou no British Museum, Francisco Suárez nos arquivos de Lisboa, Domício da Gama a seu lado, em Paris; seu filho Raul e Hipólito de Araújo o secretariavam; mas também usava os amigos espalhados pelo mundo -- Rodrigo Vicente de Almeida, bibliotecário do rei de Portugal no palácio da Ajuda, João Lúcio de Azevedo, o grande historiador português, especialista em Vieira e nos jesuítas no Pará, Capistrano de Abreu, e muitos outros. A ela acrescentara Emílio Goeldi, não só como consultor, mas sobretudo como instrumento: suíço, membro eminente de todas as sociedades científicas de seu país, especialista na região, era a referência natural dos sábios convocados pelo árbitro para examinar os argumentos dos dois países.

            Pois, ainda uma vez contrariando a opinião de Rio Branco, o governo da Confederação Helvética, a Suíça, fora escolhido como árbitro. O Barão temia a diferença de opiniões num corpo colegiado, que tornava difícil um foco preciso de suas táticas diplomáticas. O Conselho Helvético era composto por sete membros, presididos por Walter Hauser; o relator do processo de arbitramento foi Eduard Müller, ex-presidente da Confederação.

            Em agosto de 1898 foi ratificado o tratado. Já era certa a eleição de Campos Sales, colega de Rio Branco na Faculdade de Direito de São Paulo, para suceder Prudente de Moroais na Presidência da República. A designação oficial do representante brasileiro na questão ao Amapá foi concertada entre os dois presidentes. Em viagem à Inglaterra para tratar da dívida externa brasileira, Campos Sales passou por Paris e encontrou o embaixador em Berna, Olinto Magalhães, que Paranhos fizera vir especialmente para o pequeno jantar que oferecia. Saiu dali o novo chanceler, após superarem-se dificuldades que o levaram mesmo a ameaçar abandonar a missão.

            Senhor, então, com independência, da missão de representar o Brasil e defender os seus pontos de vista e seu direito sobre o Contestado do Amapá, partiu Rio Branco para a ação.

            A primeira memória apresentada pelo Barão era avassaladora. (Quero aqui fazer também uma referência ao que escreveu o diplomata Gonçalo Mourão sobre as duas memórias, num trabalho de leitura que fixa exatamente a diferença entre as duas memórias apresentadas na Questão do Contestado.) Uma combinação de construção lógica, linguagem perfeita, e informação irretocável o tornavam definitivo. Começava por assinalar os poderes do Árbitro, por lembrar os atos de Viena, e por mostrar que estava em vigor o artigo 8º do Tratado de Utrecht, e apenas ele; que o Árbitro deveria definir que rio era o Vicente Pinzón daquele artigo, e escolher um limite interior para completar a fronteira a partir de sua nascente. Descrevia em seguida os limites reclamados por cada parte, os territórios contestados, sua ocupação recente.

            Partia então para uma magnífica aula de história: começava pelos descobrimentos e os tratados de divisão do mundo novo entre Portugal e Espanha -- mas assinalava: não é só por eles que Portugal baseava seu direito, mas sim pela conquista permanente destes territórios desde o início do séc. XVII. Contava então das explorações e expedições de ocupação do primeiro século; depois historiava a conquista e fixação dos portugueses no Pará; a presença francesa na Guiana no séc. XVII, até a criação de Caiena; o começo da ocupação permanente, com De la Barre e De Ferroles; as negociações de 1700; chegava à guerra de sucessão de Espanha e às negociações de Haia e Utrecht; e finalmente historiava os diversos problemas depois da letra clara de 1713 em Utrecht -- a insistência francesa em querer distinguir o Oiapoque (o Japoc) do Vicente Pinzón, os tratados impostos, os atos de Viena, a neutralização de 1841, a discussão de 1855 e 1856.

            Ambas as demonstrações principais, a da longa e continuada posse e a da identidade do Japoc, ou Vicente Pinzón, com o Oiapoque, eram exaustivas. Sobretudo nesta última demonstração ele se apoiava largamente no trabalho de Joaquim Caetano da Silva. Mas ia além, cobrindo todas as lacunas. A memória era acompanhada, aliás, como seus tomos IV e V, da última edição de L’Oyapoc et l’Amazone, datada daquele ano mesmo. [O orador exibe os livros.] Acompanhavam a primeira memória uma plêiade de documentos históricos e um atlas extraordinário.

            A segunda memória, refutava em réplica, cuidadosa e responsável e competentemente, todos os pontos da memória francesa. Acumulou nova montanha de documentos a serem apresentados como anexos. Demonstrou quão falha era a memória francesa. Não tendo bases factuais para embasar sua posição, ela caía numa argumentação que Rio Branco começa chamando de hábil e muito complicada. E prossegue:

não é portanto necessário dar grandes proporções a esta segunda Memória do Brasil. O interesse de nossa causa não é de nos envolver numa dialética sutil, mas, ao contrário, de simplificar o debate, e de dizer o essencial para esclarecer a convicção de nossos juízes.

            Traz a debate o centro da argumentação francesa, a tese de que o Japoc, ou Vicente Pinzón, não era o Oiapoque, mas o Araguari, advertindo que há um ponto inicial a esclarecer: não está entre os poderes do Árbitro conferir uma solução intermediária, de divisão do território contestado, ardentemente defendida na memória francesa.

            Retoma então a questão dos nomes, examinando as inúmeras vezes, antes de Utrecht (1713), em que se havia assinalado a identidade entre os dois nomes do rio (com suas várias grafias), e ao mesmo tempo distinguido claramente o Araguari do Vicente Pinzón. Das narrativas da viagem de Pinzón, dos mapas colhidos através de toda a Europa, conclui:

Assim, sobre o terreno escolhido neste negócio por nossos contraditores, que querem identificar com o Rio Fresco e com o Vicente Pinzón primitivo a fronteira estabelecida em Utrecht, e pretendem que os nomes antigos e históricos devem prevalecer sobre o nome moderno de Oiapoque, geralmente conhecido no momento das negociações de Lisboa e Utrecht, se chega forçosamente às seguintes conclusões:

Se é ao antigo Rio Fresco guianense que o limite de Utrecht devia ser colocado, seria necessário estabelecê-lo no Aprouague, e o território francês compreendido entre este rio e a margem esquerda do Oiapoque caberia ao Brasil.

Se é ao Vicente Pinzón primitivo que é preciso estabelecê-lo, nossa fronteira avançaria neste caso até o Maroni, e não seria mais uma lasca do território francês, mas toda a Guiana Francesa que deveria ser incorporada ao Brasil.

            Antes porém Rio Branco já voltara ao tema da latitude, demonstrando, numa superposição de um mapa do sul da França do geógrafo do rei (Sanson) em 1658 com os contornos contemporâneos - Marselha ia parar no meio do mar Mediterrâneo - a extravagância de querer utilizar os números primitivos em relação ao Vicente Pinzón, enquanto a própria boca do Amazonas era assinalada com erros de igual ou maior magnitude. E acrescenta um precioso documento do padre Pfeil, validador da cartografia da época.

            Nada fica sem resposta, e resposta definitiva. Sua última palavra é de novo o pedido de reconhecer o Oiapoque como o Japoc, ou Vicente Pinzón, e como fronteira interna o limite do paralelo 2º 24’, estabelecido em 1817, pela Convenção de Paris.

            O prazo para o laudo é de um ano a contar da entrega das memórias das partes em litígio: dezembro de 1900. Volta então a ser fundamental o trabalho de corte aos meios governamentais e intelectuais de Berna. Goeldi, que voltara a Belém e ao trabalho do Museu Paraense (que hoje leva o seu nome), é chamado de volta e chega em maio, instalando-se em Zurique. De lá retoma seu trabalho de informação e contra-informação. Já em junho de 1899 escrevera ao Barão:

…separei-me do Presidente [Müller, o relator], agradecido e convencido da amabilíssima recepção, convencido também de que a entrevista seria útil e proveitosa aos interesses do Brasil.

            Em junho de 1900 Rio Branco escrevia ao ministro do Exterior:

As notícias que pude obter em Zurique por intermédio do Dr. Emílio Goeldi, chegado do Pará a 16 de maio, são muito satisfatórias. Ele esteve com o Sr. Müller em Ramsen no dia 24 e tem tido várias entrevistas com os dois Professores daquela Universidade incumbidos de dar parecer sobre certas questões geográficas. Ambos estão convencidos do nosso direito. O Sr. Müller foi trabalhar em Ramsen, não só para ocupar-se exclusivamente do assunto, mas também para escapar às importunações dos franceses. Sentia-se até espionado em Berna. Acha que a nossa documentação é imponente pelo número e pelo seu valor probante; que o outro lado apenas apresentou poucos documentos e alguns deles indignos de fé, como ficou demonstrado pelo Brasil.

            Era correta a informação. Marcou-se a data de 1º de dezembro para a cerimônia de entrega do laudo. Foi portador o secretário do Departamento Político, Gustavo Graffina. O Barão do Rio Branco preparou o cenário para a solenidade, colocando ao fundo o busto em bronze de seu pai, o Visconde do Rio Branco. Um funcionário suíço - conta o Barão - depositou numa cadeira os 2 volumes do laudo e 12 exemplares dos considerandos da sentença. Graffina em um pequeno speech declarou o objeto da sua missão, de que fora incumbido pelo Conselho Federal. Acrescentou que, cumprido esse dever, podia, também, dizer que essa missão lhe fora muito agradável e anunciou que a decisão era a favor do Brasil. Declarei, então, que essa notícia me alegrava sumamente, e aos brasileiros presentes.

            Dizia a sentença:

Vistos os fatos e os motivos expostos, o Conselho Federal Suíço, na sua qualidade de Árbitro chamado pelo Governo da República Francesa e pelo Governo dos Estados Unidos do Brasil, segundo o Tratado de arbitramento de 10 de abril de 1897, a fixar a fronteira da Guiana Francesa e do Brasil certifica, decide e pronuncia:

1º) Conforme o sentido preciso o artigo 8º do tratado de Utrecht, o rio Japoc ou Vicente Pinzón é o Oiapoque, que se lança no oceano imediatamente a oeste do Cabo de Orange e que por seu thalweg forma a linha fronteira.

2º) A partir da nascente principal deste rio Oiapoque até a fronteira holandesa, a linha de divisão das águas da bacia do Amazonas que, nessa região, é constituída na sua quase totalidade pela linha de cumeada da serra Tumucumaque, forma o limite interior.

            Estava resolvida, de uma vez por todas, a questão do contestado entre a França e o Brasil. Mais uma vez o gênio de Rio Branco afirmara, pacificamente, uma imensa porção do território brasileiro. Nos anos seguintes a fantasia de uma república independente de aventureiros franceses se esfacelaria naturalmente, enquanto a ocupação lenta e pacífica do Amapá se consolidava.

            Rio Branco firmou-se como o símbolo da diplomacia brasileira. Sua opção pela solução negociada mas firme nos conflitos, pela independência de qualquer outro interesse que o brasileiro, pela defesa irrestrita dos interesses nacionais tornou-se a posição da diplomacia do Brasil.

            Do episódio do contestado franco-brasileiro, da missão de advogado junto ao Conselho Helvético, fica a lição do agente público no mais elevado grau: ao serviço brasileiro deu sua imensa capacidade de organização, sua inteligência na construção do argumento, na elaboração de estratégia, no desenvolvimento da tática, seu conhecimento incomparável da história e da geografia brasileiras, sua capacidade de identificar e incorporar a seu trabalho os mais lúcidos colaboradores.

Quando cheguei à Presidência da República, estudioso da história intelectual, eu julgava que o pai do Barão do Rio Branco era maior do que ele. Eu acompanhara, lendo, na nossa biblioteca, os Anais Parlamentares da época em que o Visconde do Rio Branco era Presidente do Conselho. E via, no Visconde, aquele homem excepcional. E não via, no Barão do Rio Branco, o brilho do seu pai.

Pois bem, chegando à Presidência da República, lidando com os problemas de Estado, eu, então, pouco a pouco, senti surgir a grande figura do estadista, o grande brasileiro deste século, que pensou de forma extraordinária na estratégia do país para o futuro, das suas fronteiras, fazendo do Brasil um país com fronteiras com 10 países e nenhum problema de fronteira.

Ele voltava da Europa e dizia que as guerras e as divergências entre as nações começavam na linha da fronteira, essa linha que algumas vezes é uma linha indefinida, que um poeta português define num verso: “De um lado, terra; do outro lado, terra; de um lado, gente; do outro lado, gente; mas há um sentimento de pátria que mexe no mais pequeno torgo adormecido.” É de Miguel Torga esse verso.

Pois bem, foi esse homem que, mais uma vez, resolveu para o país um problema cujo alcance, em termos de futuro, hoje vislumbramos, que envolve a Amazônia, o rio Amazonas, a água doce, os recursos renováveis do Planeta. E foi o gênio de Rio Branco que construiu, com sua visão de estadista, esse grande episódio e parte da História do Brasil.

Para o Brasil, o Barão deu o Amapá. Para o Amapá, Rio Branco deu muito mais: deu o Brasil.

    Muito obrigado. [Palmas.]


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/12/2000 - Página 24743