Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

SAUDAÇÕES AO CONSELHO NACIONAL DE MEDICINA PELA EDIÇÃO DO ULTIMO NUMERO DA REVISTA BIOETICA, QUE TRATOU DO SIMPOSIO "DESAFIOS DA BIOETICA NO SECULO XXI".

Autor
Romero Jucá (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RR)
Nome completo: Romero Jucá Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • SAUDAÇÕES AO CONSELHO NACIONAL DE MEDICINA PELA EDIÇÃO DO ULTIMO NUMERO DA REVISTA BIOETICA, QUE TRATOU DO SIMPOSIO "DESAFIOS DA BIOETICA NO SECULO XXI".
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2001 - Página 4355
Assunto
Outros > POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • ELOGIO, PUBLICAÇÃO, PERIODICO, CONSELHO NACIONAL, MEDICINA, ASSUNTO, ETICA, BIOTECNOLOGIA, DETALHAMENTO, TEXTO, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, DEBORA DINIZ, DIRCE GUILHEM, DIRCEU GRECO, JOSE LUIZ TELLES DE ALMEIDA, SILVIO VALLE, VOLNEI GARRAFA, SERGIO IBIAPINA, GABRIEL OSELKA, CIENTISTA, DEBATE, FEMINISMO, SAUDE PUBLICA, SEGURANÇA, POLITICA, ENGENHARIA, GENETICA, DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS.

O SR. ROMERO JUCÁ (PSDB - RR) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em meio à efervescente polêmica em torno dos avanços da biotecnologia sobre as relações humanas, nada mais pertinente que saudar a bem-sucedida publicação da revista Bioética, editada pelo Conselho Nacional de Medicina. No último número, a renomada revista destinou especial destaque ao simpósio intitulado “Desafios da Bioética no século XXI”, em cuja seção se buscou debater a bioética sob distintas perspectivas. Para tanto, diversos especialistas foram convocados, explorando, aprofundando e antecipando os problemas que cercam tão urgente discussão.

Na verdade, a revista Bioética encomendou quatro artigos de peso, que foram meticulosamente preparados por um grupo selecionadíssimo entre as mais significativas personalidades da área. Precedidos por uma bem cuidada introdução a cargo de editores convidados, os quatro artigos abordam a bioética numa perspectiva temporal de longo prazo, vislumbrando realidades possíveis a partir do mundo nada confortável que hoje vivemos.

Pois bem, na ordem, a primeira contribuição foi assinada pelas doutoras Débora Diniz e Dirce Guilhem, que redigiram o texto intitulado “Bioética Feminista: O Resgate do Conceito de Vulnerabilidade”. Em seguida, comparece o texto assinado por Dirceu Greco, intitulado “Ética, Saúde e Pobreza - As Doenças Emergentes no Século XXI ”. Na seqüência, José Luiz Telles de Almeida e Sílvio Valle assinam “Biossegurança no Ano 2010: O Futuro em Nossas Mãos”. Por último, os professores Volnei Garrafa, Sérgio Ibiapina e Gabriel Oselka concluem o simpósio com um texto que leva o título da seção.

Antes de tecer breves comentários sobre cada um dos textos publicados, cabe ressaltar o extremo zelo com que os editores organizaram o simpósio, sob a orquestração de Volnei Garrafa, Ibiapina e Oselka. Dito isso, vamos individualmente passar em revista os artigos acima listados, com o intento de suscitar reflexões menos precipitadas e mais responsáveis sobre a bioética no mundo e no Brasil.

Sob um olhar inequivocamente feminista e simultaneamente crítico, as doutoras Débora Diniz e Dirce Guilhem inauguraram o simpósio com o instigante “Bioética Feminista: o Resgate Político do Conceito de Vulnerabilidade”. Em primeiro lugar, resgatam o itinerário histórico do viés feminista na bioética, sob o qual sempre se enfocaram criticamente as desigualdades sociais, fazendo frente às teorias principialistas que ainda reinam na área. Apesar disso, ressalvam que, no início, houve certa acomodação de muitas bioeticistas à teoria principialista. Muito dessa acomodação se deveu à confusão semântica que se estabeleceu entre, de um lado, princípios de autonomia e conquista de liberdade e, de outro, críticas a todas as formas de opressão social e proteção às comunidades mais vulneráveis.

Como bem lembram as autoras, nem sempre autonomia é sinônimo de liberdade, pois pode muito bem ser mascarada pela coerção da vontade. O exemplo mais contundente recai sobre o uso e acesso das mulheres às novas tecnologias reprodutivas. Desse modo, cabe considerar a hipótese - normalmente desprezada - de que muitas mulheres se submetem passivamente a essas técnicas como forma de adequação aos papéis socialmente desejados e esperados pelo gênero feminino, sobretudo no que concerne à visão da maternidade como imperativo social. Nesse contexto, o anseio obcecado por filhos, que se motiva no imaginário social associado à feminilidade, tem levado milhares de mulheres à busca de terapias invasivas e de alto custo das novas tecnologias reprodutivas.

Contra esse entendimento, as autoras endossam a tese de que a tarefa fundamental da bioética deixaria de ser meramente de mapeamento ético de como a humanidade deveria ser - se regida pela beneficência, não-maleficência, justiça ou autonomia. Pelo contrário, sua tarefa fundamental deve, sim, estar fundada na procura por mecanismos de reparação social da vulnerabilidade moral que tornem tais princípios eficazes. Em suma, de princípios éticos universais passaríamos para a defesa de princípios compensatórios da vulnerabilidade social.

Alertam, no entanto, para a leviana confusão que geralmente se faz entre bioética feminista e certo discurso sexista. Tal confusão, antes de tudo, serve muito mais para justificar e silenciar os padrões de desigualdade e opressão que imperam na sociedade ocidental do que qualquer outra coisa. Portanto, torna-se urgente distinguir vulnerabilidade de diferença, ou melhor, desigualdade de diferença, na medida em que se trata de duas categorias apartadas por aquilo que se define como o acesso e o usufruto do poder social concedido a cada pessoa.

No mesmo diapasão, a bioética de inspiração e compromisso anti-racista não pode ser reduzidamente compreendida como interessada apenas nas questões relacionadas às minorias raciais ou étnicas. Não, as doutoras Débora e Dirce afirmam que tal linha da bioética se interessa sobretudo pelos direitos e pela dignidade das populações subjugadas em nome da diversidade racial. Com efeito, são populações covardemente julgadas inferiores por moralidades historicamente poderosas e intolerantes.

Nessa linha, a bioética feminista e crítica é, no fundo, a análise de todas as questões bioéticas, da eutanásia ao aborto, sob o compromisso compensatório de interesses dos grupos e pessoas socialmente vulneráveis. Ponderam ambas as pensadoras que o estilo argumentativo das primeiras teorias conduziu a disciplina a um certo elitismo, excluindo do âmbito das discussões parcela significativa de indivíduos e grupos, tradicionalmente oprimida e vulnerável. Ao citarem os trabalhos da filósofa Susan Wolf, argumentam que as teorias principialistas foram incapazes de incluir conceitualmente a categoria “outros/outras” no repertório discursivo e prático da bioética, demonstrando grave descaso quanto às diferenças de gênero, raça e classe.

Mais radicais que nunca, não hesitam em apontar a tranqüilidade do poder o lugar de onde a bioética elabora e reproduz o seu discurso corrente. Criticam com veemência o casamento nada natural entre bioética e medicina, que - segundo a visão delas - apenas conduz ao enfraquecimento da disciplina pelo conseqüente rebaixamento analítico das reflexões. Por fim, propõem que a bioética crítica contemple os princípios de uma epistemologia compensatória da desigualdade, os princípios de uma ética do cuidar associada à ética do poder, as condições de vulnerabilidade do ser humano e que, acima de tudo, rejeite a manutenção do status quo atual da bioética e adote uma prática ética e biomédica que contribua para o fim da desigualdade e da opressão.

No segundo artigo, o professor titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor Dirceu Greco, analisa a bioética do século XXI sob a ótica do provável aparecimento de novas doenças no Brasil. Segundo ele, mudanças nas decisões sobre a alocação de recursos, tanto para a saúde pública quanto para as pesquisas, bem como um discussão ética e a necessidade de melhorar o padrão de vida da população, são condições indispensáveis para enfrentar estes graves problemas de saúde pública.

Para o professor Greco, desde a descoberta do vírus da Aids, mais de duas dezenas de patógenos foram descritos e envolvidos em diversas doenças. A definição de “patologia emergente” proposta por especialistas norte-americanos engloba tanto as doenças infecciosas de descoberta recente quanto aquelas cuja incidência tende a aumentar no futuro. Embora o fenômeno do surgimento de novas doenças não seja algo excepcional na história das epidemias, as condições peculiares ao novo século não devem ser desconsideradas. O professor Greco enumera algumas dessas peculiaridades, a saber: a) aumento da população mundial; b) grandes movimentações desta populações; c) expansão das doenças pela maior exposição de grupos específicos a situações de risco; d) drásticas mudanças ecológicas relacionados ao desenvolvimento econômico e industrial; e) aumento do desemprego e urbanização desorganizada e; f) utilização intensa de antimicrobianos, facilitando sua resistência.

Esclarecidos os seis pontos, o professor Greco reconhece que mesmo métodos tradicionalmente utilizados contra a proliferação de doenças, tais como aleitamento materno e vacinação, têm demonstrado eficácia parcial. Mesmo porque a existência de determinada vacina não tem significado sua disponibilidade para todos que dela necessitam. Agora, quando o foco é o Brasil, a situação se torna ainda mais complicada. Ingressamos no século XXI com diversos problemas sociais sérios, com reflexos diretos sobre a saúde pública do País.

Com o descalabro das desigualdades de renda entre os brasileiros mais ricos e os mais pobres, a incidência de doenças infecciosas adquire espaço garantido em enormes bolsões de miséria espalhados em território nacional. Dessa maneira calamitosa, assiste-se à expansão dos casos de leishmaniose, hanseníase, dengue, malária e tuberculose, além do reaparecimento da febre amarela urbana e da cólera.

Nesse sentido, para o autor, faz-se urgente e necessária a eliminação da pobreza bem como a correta utilização dos recursos públicos para que se possa controlar as doenças existentes e as emergentes atuais. No Brasil, exemplo recorrentemente mencionado como modelo de políticas públicas a ser seguido é o caso do programa de combate a Aids. O Governo e a sociedade civil estão enfrentando a epidemia de frente, distribuindo preservativos, produzindo medicamentos localmente, garantindo distribuição gratuita, e instalando rede pública de laboratórios para o diagnóstico, acompanhamento de pacientes e suporte para pesquisa.

O professor Greco recorda que o Banco Mundial publicou recentemente relatório apontando a miséria humana o mais explosivo problema político e econômico do século que se inicia. Para vencer tal desafio, o Brasil tem que interromper a sangria de recursos financeiros que anualmente retira riqueza do País. Sabe-se que, ultimamente, mais de 178 bilhões de dólares/ano fluem das nações pobres em direção às mais ricas, enquanto que apenas 60 bilhões de dólares percorrem o caminho inverso.

Além disso, Greco concorda com a premissa de que a possibilidade de fomentar a oportunidade de dar acesso à saúde e à educação depende, essencialmente, do grau de envolvimento da sociedade e do cidadão no processo de enfrentamento da globalização neoliberal. Em resumo, sem educação, recursos e cuidados de saúde não poderá restar perspectivas para o controle das doenças. Em outras palavras, faz-se, antes de tudo, imprescindível mudar o paradigma da valorização monetária, mercadológica, por outra de valorização do ser humano.

Numa visão ligeiramente distinta, o médico José Luiz Telles de Almeida e o pesquisador Silvio Valle levantam a questão da biossegurança e da biotecnologia como pontos extremamente relevantes para o desenho de um quadro minimamente confiável sobre bioética no século XXI. Em artigo intitulado “Biossegurança no Ano 2010: o Futuro em Nossas Mãos?”, Telles de Almeida e Valle exibem os laços estritamente fortes entre as ciências da computação e as ciências biológicas. Fruto dessa aliança, a biotecnologia exerce um papel excepcional na configuração política dos novos tempos. As avançadíssimas técnicas de manipulação do DNA recombinante ocupam espaço bem representativo nessa nova reestruturação da configuração político-tecnológica mundial.

No Brasil, visando assegurar a adequação dos procedimentos de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e de produção e uso de engenharia genética, o Congresso Nacional aprovou, em 1995, a Lei de Biossegurança, que prevê a criação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia. Nele deve-se garantir a participação dos agentes mais representativos da sociedade, da indústria e dos governos. É nesse contexto que o Brasil se prepara para discutir a fabricação, o desenvolvimento e a circulação de biochips em nosso território, com a expectativa de mudanças substanciais em nossa realidade em curto espaço de tempo.

Apesar dos pontos divergentes e das inúmeras polêmicas suscitadas, algo unânime parece unir todos os setores, que se traduz na certeza de que a biotecnologia presente e futura não deve ser tratada sob o reducionismo tecnocientífico. De fato, as modernas biotecnologias somente irão gerar progresso se devidamente incorporadas e legitimadas pela sociedade. Desconfiados do natural caráter progressista das biotecnologias, Telles de Almeida e Valle recomendam prudência por parte da sociedade e do Estado no que se refere, por exemplo, o acatamento direto das tecnologias de alimentos transgênicos.

Sob o pretexto de banir a fome no mundo, oligopólios do setor de alimentação forjam penetração nos mercados do Terceiro Mundo, sem qualquer consideração com condições mínimas de observação sanitária. Por último, no que tange à biossegurança, os autores sustentam a opinião de que esta deve andar de mãos juntas com a bioética, como estratégia fundamental para a institucionalização e reconhecimento público das possibilidades biotecnológicas para a sociedade.

No derradeiro artigo, os editores do simpósio escrevem conjuntamente o texto que carrega o título da sessão. Os professores Volnei Garrafa, Sérgio Ibiapina e Gabriel Oselka enfatizam em uníssono que a eqüidade é a base ética que deve guiar o processo decisório da alocação de recursos. Por outro lado, chamam a atenção para alguns abusos na utilização dos testes preditivos no âmbito da engenharia genética, alertando para os riscos do endeusamento da técnica e para a radicalização irracional do seu uso.

Historicamente, os três professores recordam que a OMS, já em 1978, propunha com grande repercussão o programa “Saúde para Todos no Ano 2000”, que somente nos sonhos pôde ser cumprido. A distância entre excluídos e incluídos na sociedade de consumo é paradoxalmente maior que há vinte anos atrás. O uso democrático dos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico continua muito longe de ser alcançado. E, no entanto, a eqüidade é a base ética por excelência que deve guiar o processo decisório da alocação de recursos, sua distribuição e controle. A OMS percebeu o escorregão e adotou o princípio da eqüidade em sua reunião de 1998, retomando com o vigor a alavanca da justiça social como mote de saúde pública para o início do século.

Sobre a engenharia genética, os autores confessam que temem pela transformação de um “risco genético” na própria doença, alterando perigosamente o conceito de “normal” e “patológico”. No geral, o termo “doença genética” vem-se constituindo numa escolha que superestima o fator genético e subestima as implicações dependentes do comportamento e do meio ambiente. Mais que isso, estão convictos de que os testes e os diagnósticos preditivos em genética guardam relação estreita com as liberdades individuais e coletivas, com os direitos humanos, com a cidadania e com a própria saúde pública. Em síntese, defendem o ideal da pluriparticipação nas discussões que tocam a bioética, a saúde pública, a eqüidade, a engenharia genética e o Projeto Genoma Humano, garantindo a democratização do processo que define o controle social.

Sr. Presidente, diante do exposto, não restam dúvidas sobre as reais intenções dos editores da revista Bioética quando elegem, com muita propriedade, os desafios da bioética no século que se inaugura como tema de amplo debate. A seleção dos autores que contribuem nessa discussão, como se notou, não poderia ser mais criteriosa e rigorosa. Apesar da diversidade de pontos de vista e de áreas de formação, todas as vozes convergem para um único ponto: bioética no Brasil somente pode ser seriamente discutida e implementada se necessariamente associada a questões que concernem à melhoria das condições sociais básicas de nosso povo. Numa única sentença: bioética tem que rimar com erradicação das perversas desigualdades sociais, raciais e sexuais que historicamente nos acometem.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2001 - Página 4355