Discurso durante a 25ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

NECESSIDADE DE UM ENFOQUE MAIS SOCIOMORFICO DA TECNOLOGIA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), CORRUPÇÃO. POLITICA INDUSTRIAL.:
  • NECESSIDADE DE UM ENFOQUE MAIS SOCIOMORFICO DA TECNOLOGIA.
Publicação
Publicação no DSF de 31/03/2001 - Página 4510
Assunto
Outros > COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), CORRUPÇÃO. POLITICA INDUSTRIAL.
Indexação
  • CRITICA, ATUAÇÃO, GOVERNO, OPOSIÇÃO, INSTALAÇÃO, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), CORRUPÇÃO.
  • ANALISE, HISTORIA, TECNOLOGIA, INDUSTRIALIZAÇÃO, BRASIL, MUNDO, CORRELAÇÃO, SITUAÇÃO SOCIAL, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, INSUFICIENCIA, INDUSTRIA, PRODUÇÃO, MAQUINA.
  • ANALISE, HISTORIA, REFORÇO, CAPITALISMO, PRODUÇÃO, FERROVIA, AUTOMOVEL, TELECOMUNICAÇÃO, MATERIAL BELICO, ATUAÇÃO, PAIS INDUSTRIALIZADO, IMPEDIMENTO, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, TERCEIRO MUNDO.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, inicio esta brevíssima explanação dizendo que seria necessário que nós, Senadores e Deputados, instituíssemos uma comissão parlamentar de inquérito para investigar a Comissão Parlamentar de Inquérito que está sendo abafada pela pressão fantástica, irresistível que parte de um Governo despótico, autoritário e corrupto. Não tenho dúvida alguma de que a corrupção ética, jurídica e constitucionalizada tomou conta de nossas instituições.

Embora esse não seja o assunto que gostaria de tratar hoje, pergunto: por que fechou? Por que parou? Parou por quê? Isso demandaria uma comissão específica. Os juristas, escapistas, medrosos dizem que é preciso que a comissão seja específica.

O ponto não é específico, ele é o cruzamento de duas retas. Não existe nada específico no mundo, puro, laboratorial. Os fenômenos são complexos, interligam-se. Assim, é impossível tratar de algo simples, determinado e apenas disso.

Por meio desses subterfúgios, eles vão encobrindo, abafando as comissões parlamentares de inquérito, que constituem o único instrumento confiável, ao lado obviamente da Procuradoria da República, desses jovens Procuradores que fazem um excelente trabalho e constituem uma esperança.

O Senador Bernardo Cabral está tratando com muita competência um assunto que considero importante, qual seja o problema da tecnologia, das invenções e inovações que ocorreram no Brasil e que não se puderam transformar, adquirir outra forma. A Senadora Marina Silva em seu pronunciamento ressaltou o fato de estarmos sendo expropriados de nossos conhecimentos, riquezas, biodiversidade. O Senador Bernardo Cabral mostrou o caso de algumas invenções brasileiras, como a descoberta do avião por Santos Dumont, que foi apropriada pelos irmãos Wright.

Fiz um pequeno aparte ao Senador Bernardo Cabral, que depois foi objeto de um aparte do Senador Paulo Hartung. E como não pude apartear o aparte, fiquei calado. Mas, hoje, vou avançar um pouco naquele assunto que abordei por ocasião do brilhante discurso do Senador Bernardo Cabral.

Para mim, a questão da tecnologia deve ser tratada de uma maneira bastante diferente daquela costumeira. Os instrumentos de trabalho e a tecnologia constituem o prolongamento do homem, o braço do homem que se estende, a memória do homem que se amplia, o olhar do homem que avança. Esses instrumentos, como a tecnologia, são antropomórficos, têm a forma do homem, embora uma forma, obviamente, multiplicada, transformada.

Mas a tecnologia não é apenas antropomórfica, ela é também “sociomórfica”, ou seja, se tomarmos como exemplo o conjunto da tecnologia norte-americana, veremos que ela é muito mais ampla e muito mais diversificada. Tal como a sociedade americana o é, ela é muito mais internacionalizada do que, por exemplo, a tecnologia do Paraguai. Quer dizer, cada sociedade produz a sua tecnologia, o seu conhecimento tecnológico e os limites desse conhecimento e desse desenvolvimento tecnológico, que são impostos por uma divisão internacional do trabalho, da exploração, da técnica, do consumo e da exploração.

É natural que algumas relações, não técnicas, tecnológicas, que foram necessárias ao desenvolvimento do capitalismo não possam ocorrer no Brasil. Somos proibidos de ter alguns setores tecnológicos, e sempre o fomos. Até 1843 éramos proibidos de ter máquinas, de produzir máquinas, de desenvolver máquinas. E o Paraguai, que fez seis navios de ferro até meados do século XIX, que tinha uma indústria de armas, foi vítima de uma guerra movida por vários países, atrás dos quais se encontrava a Inglaterra. Essa guerra destruiu totalmente a tecnologia guarani, a memória da tecnologia, porque mataram todos com mais de 10 anos de idade no Paraguai, para que não restasse a memória do conhecimento tecnológico que eles conseguiram desenvolver lá. E outros exemplos eu poderia dar.

Esse caráter “sociomórfico” talvez não seja muito fácil de ser percebido. O povo do Paraguai entende isso. O Duque de Caxias, depois que a Guerra do Paraguai mostrou a falta de limites, o transbordo da agressividade, escreveu uma carta a Dom Pedro II, dizendo: “É preciso parar com isso. Dentro de pouco tempo estaremos matando os fetos, os embriões na barriga das mães”.

Não posso falar sobre os horrores da Guerra do Paraguai. Não há tempo para isso. Mas, até 1843, a Inglaterra proibia a exportação de máquinas. Então, nós, brasileiros, argentinos, não podíamos ter aqui uma estrutura tecnológica em que o principal setor de então, o setor que produzia bens de consumo, centrado na Inglaterra, crescesse, pois a Inglaterra proibiu, pelo Tratado de Methuen, com Portugal, que tivéssemos qualquer indústria no Brasil.

Assim, o nosso caráter semi-integrado na estrutura produtiva reflete-se na nossa liberdade, no nosso poder externo, e também na dificuldade enorme de desenvolvermos o capitalismo. Por exemplo, de acordo com Hoffman, o departamento que produz máquinas por meio de máquinas e que teve seu início nas primeiras décadas do século XIX cresceu a uma taxa média secular quatro vezes maior do que a taxa de crescimento do departamento que produzia bens de consumo, como roupas, tecidos, sapatos, criando empregos, criando renda, criando tecnologia nova para ser utilizada pelo departamento mais tradicional, que produzia bens de consumo.

Então, sem o crescimento do Departamento 1, não é possível - isso Marx provou sobejamente - que as indústrias que produziam meios de consumo poderiam se sustentassem, porque elas eram amparadas pelo crescimento do Departamento 1. No Brasil, poucos prestaram atenção nessa desproporção dinamizadora entre o crescimento do Departamento 1, que produzia máquinas por meio de máquinas, e o Departamento 2, que produzia produtos finais, meios de consumo.

Aqui não há como se falar nada! O Ministro Delfim Netto devia saber disso, mas, além de S. Exª, o Ministro Bulhões também o sabia. O Ministro Bulhões, em um livro composto a várias mãos, disse que foi o Lord Hicks que fez esta grande descoberta: em um momento, o capitalismo produz, realiza investimentos, produz máquinas, mas não aumenta a oferta de mercadorias; cria renda, cria empregos, e esta renda será usada para comprar os produtos finais, que estão sendo produzidos no Departamento 2. Em um momento seguinte, as indústrias já estão montadas, já estão prontas e lançam na circulação capitalista mais valor do que lançam na forma de renda e de dinheiro. Portanto, em um momento, o investimento amplia mais a demanda do que a oferta, de acordo com o tempo de maturação desses investimento e, no momento seguinte, dá-se o fenômeno contrário, ou seja, as indústrias já montadas passam a vender mercadorias e, ao vendê-las, têm que receber, arrecadar, recolher, ter como receita um valor, em dinheiro, superior ao custo que lançaram no processo produtivo.

Assim, de acordo com o Ministro Bulhões, teria sido Lord Hicks que fizera essa grande descoberta. Não foi, não! Quem descobriu, determinou e escreveu sobre isso, de diversas formas, chama-se Karl Marx, muito antes do Sr. Hicks. E, como o Sr. Hicks não citou Marx - porque não fica bem para o Sr. Hicks citar Marx -, plageou-o. Como o Sr. Bulhões não conhece Marx, leu Hicks e, dessa forma, pôde elogiar a descoberta. Se fosse Marx, ele não seria elogiado. Seria esquecido. No Brasil, tenho certeza de que 90% dos nossos tecnocratas não sabem disso.

O problema é que, se não houver uma industrialização bastante integral, bastante completa, o capitalismo ficará capenga, terá problemas fantásticos de crescimento, como acontece com todos os países semi-integrados, subdesenvolvidos, que não puderam desenvolver a indústria básica, o setor de produção de máquinas por meio de máquinas com aquela taxa que a Inglaterra conseguiu e que sustentou, durante muito tempo, o seu desenvolvimento industrial.

Porém, o capitalismo tem vários outros problemas, e essas máquinas produzidas por máquinas criam uma outra situação: o mercado, os empresários que compram máquinas - por exemplo, na Inglaterra, até 1843, eles se abarrotaram, passaram a ter uma capacidade instalada elevadíssima - não podiam continuar a fazer compras para sustentar o crescimento daquele departamento, que adquirira uma vitalidade fantástica. Portanto, a solução encontrada pela Inglaterra foi exportar máquinas. A Inglaterra, que destruiu as máquinas brasileiras em 1785, que destruiu o artesanato indiano, que destruía as máquinas do mundo inteiro para ser a imperadora das máquinas, agora passa a exportá-las. É obrigada a fazer isso.

De modo que, então, as contradições são adiáveis, mas aparecem. Que dificuldade! A solução para a Inglaterra seria produzir uma máquina que, ao ser exportada, não produziria nem na Argentina, nem no Brasil, nem no Japão produtos concorrenciais com os produtos finais ingleses; não produziria aqui nem sapato, nem tecido, nem roupa nem chapéus, nem produto nenhum. Que máquina seria essa? Aquela que sustentasse o crescimento do Departamento 1, que produziria máquinas por meio de máquinas, mas que, ao ser exportada, não aumentaria a produção mundial e, portanto, não constituiria um perigo para a ilha, para os empresários da ilha e para os seus capitalistas, que produziam produtos finais.

Essa máquina, descoberta pela esperteza inglesa, obviamente possuía motor, linha de transmissão, como todas as máquinas possuem, mas não possuía a máquina ferramenta, a mão da máquina, a que é a responsável, de acordo com Marx, pela revolução industrial. A mão da máquina substitui a mão do homem e o desemprega. Máquina antropomórfica. É por isso que ela pode substituir o homem e desempregá-lo. Portanto, a Inglaterra passa a produzir estradas de ferro.

Em 1865, começou a produção do metrô de Londres, que tem 1.350km de ferrovia. Não é essa porcaria que vai ser inaugurada aqui, em Brasília, vergonhosamente, dentro de três dias. Lá é metrô mesmo - em 1865! Há também uma malha ferroviária, e 1.350.000km de ferrovias foram montadas no mundo para manter o setor básico da Inglaterra em funcionamento. E o sistema financeiro do mundo, os bancos mundiais, que antes financiavam meios de consumo, quando só eles eram produzidos e exportados, agora passam a financiar as ferrovias.

Os Estados Unidos se endividam, tomam dinheiro emprestado, vendem ações dessas ferrovias, constróem ferrovias paralelas e recebem aqueles que foram chamados de barões, ladrões das ferrovias; e essas ferrovias, esses meios de transporte muitas vezes não transportavam nem passageiros e nem mercadorias. Quem sustentava essas ferrovias era o governo. E o governo dos Estados Unidos investiu 70% dos seus recursos, entre 1870 e 1900, em ferrovia. Isso é um absurdo total! As ferrovias francesas passaram a dar prejuízo, e o governo, então, subsidiou, garantiu um lucro para todas as ferrovias francesas.

Nos Estados Unidos, esses empresários, que, muitas vezes, faziam ferrovias paralelas, receberam uma área correspondente ao Estado do Ohio como subsídio para as suas obras.

Assim, as ferrovias se desenvolveram porque não produzem mercadoria, pelo seu aspecto negativo, porque não criam problemas de venda, tal como acontece com os ternos, as roupas, os sapatos, os meios de consumo. Eram os próprios governos que compravam e financiavam, não havia problema de venda. Então, a crise de subconsumo não atingia esse setor. Além disso, não desenvolvendo as forças produtivas - porque as máquinas têm rodas, produzem movimento e não mercadorias, concorrenciais e altamente problemáticas -, essas ferrovias não tinham o problema de produzir uma queda da taxa de lucro, porque a sua rentabilidade era sustentada pelo governo.

O capitalismo é tão inteligente que conseguiu produzir e manter uma taxa elevada de lucro, ao contrário do que Marx havia previsto, um lucro fictício, irreal, produzido não pelo trabalho humano mas pelo governo e pela dívida pública.

O SR. PRESIDENTE (Edison Lobão) - Senador Lauro Campos, embora penalizado, devo lembrar a V. Exª que o seu tempo já se esgotou há alguns minutos. Peço-lhe que abrevie a sua oração.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT - DF) - Pois não. Eu já estou terminando, não vou chegar lá. Não posso, obviamente, mostrar como, não podendo desenvolver as forças produtivas reais, começa o capitalismo a desenvolver o sistema de transporte. Transporte de quê? Transporte de nada. O homem, que não foi produzido, passa a ser transportado no automóvel: vai para cá e vai para lá. Não muda o mundo, não o transforma, não penetra nas relações reais e, portanto, não revoluciona nada. Transporte de indivíduos: o automóvel. Em 1929, os Estados Unidos produziram cinco milhões e trezentos mil carros, e entraram numa crise que durou pelo menos quatorze anos. Agora, o mundo produz setenta milhões de carros e só consegue vender cinqüenta milhões. O automóvel, obviamente, se transforma no setor axial da economia dos Estados Unidos e do mundo, não pelas suas qualidades positivas, mas, ao contrário, porque realmente é uma não-máquina de transporte, tal como as ferrovias o eram.

            Agora, o capitalismo desenvolve o transporte de palavras, de sons, de imagens, de sinais, um mundo desgravitado das condições reais, das forças produtivas, que, se fossem desenvolvidas, absorvendo os recursos lançados para o espaço, destruídos em guerras ou desviados para esses setores improdutivos e irreprodutíveis, ocasionariam, certamente, uma grande crise no capitalismo e a necessidade de sua superação para uma sociedade não dominada e escravizada pela máquina, onde os instrumentos de trabalho voltariam a ser auxiliares da vida humana.

Hoje, o principal setor é o bélico, que não temos, e que, desde os anos 30, transformou-se na incubadora, no ninho em que a pesquisa e o desenvolvimento se desenvolvem no mundo.

Japão e Alemanha foram os perdedores da Segunda Guerra Mundial.

E, no Brasil, a Embraer está recebendo o último tiro, o da “vaca louca”, porque já foram atingidas todas as indústrias bélicas brasileiras e não possuímos essa estrutura onde a tecnologia se desenvolve e se encarna. A tecnologia não pode ser produzida e reproduzida em abstrato; ela se incorpora. Não temos uma estrutura, por isso Geisel queria fazer, por exemplo, investimentos de US$28 bilhões no setor de energia atômica. Ele fracassou e, naquela ocasião, as indústrias bélicas que se formavam foram destruídas pelas relações internacionais, que centralizaram, depois da Segunda Guerra Mundial, toda a tecnologia bélica e produção de armas nos Estados Unidos e, em segundo lugar, na União Soviética.

"A lógica que está por trás da produção bélica dos Estados Unidos", diz W.W. Rostow, "é a de obrigar a União Soviética a fazer o mesmo e, com isso, impedir que ela se desenvolva." A Guerra Fria, durante a qual US$5 trilhões foram gastos em energia e produtos atômicos, não podia, obviamente, ser acompanhada indefinidamente pela União Soviética. Para os Estados Unidos, a guerra e a destruição eram uma solução que evitaria o crescimento das forças produtivas, gerando renda sem gerar oferta de produtos. Na União Soviética, a renda per capita, em 1917, era oitenta vezes menor que a dos Estados Unidos e, no final, quando da queda do Muro de Berlim, era apenas três vezes menor. Naquele país, o esforço de guerra para manter a corrida espacial seria insuportável para a população, tal como aconteceu.

Agradeço à Presidência a paciência e o tempo extra que me foi dado, quase arrancado por mim a fórceps, e coloco apenas a minha decepção quanto ao tempo. No entanto, sei que temos que obedecer o Regimento. Peço desculpas e sei que este não é o meu lugar. Na Universidade de Brasília, sobre isso eu falaria por umas sete horas. Aqui, tenho que falar em sete minutos.

Muito agradecido, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 31/03/2001 - Página 4510