Discurso durante a 41ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

DENUNCIA DA TENTATIVA DE OBRIGAR A REDE GLOBO DE TELEVISÃO A CEDER SINAL DE SATELITE A TV A CABO DO GRUPO ABRIL, RECENTEMENTE ADQUIRIDA POR EMISSORA NORTE-AMERICANA.

Autor
Moreira Mendes (PFL - Partido da Frente Liberal/RO)
Nome completo: Rubens Moreira Mendes Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
TELECOMUNICAÇÃO.:
  • DENUNCIA DA TENTATIVA DE OBRIGAR A REDE GLOBO DE TELEVISÃO A CEDER SINAL DE SATELITE A TV A CABO DO GRUPO ABRIL, RECENTEMENTE ADQUIRIDA POR EMISSORA NORTE-AMERICANA.
Publicação
Publicação no DSF de 26/04/2001 - Página 7197
Assunto
Outros > TELECOMUNICAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, EMPRESA MULTINACIONAL, TENTATIVA, IMPOSIÇÃO, EMISSORA, TELEVISÃO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), TRANSFERENCIA, TRANSMISSÃO, SATELITE.
  • AVALIAÇÃO, IMPORTANCIA, EMISSORA, TELEVISÃO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), CULTURA, BRASIL.
  • ANALISE, CRITICA, TRANSFERENCIA, TRANSMISSÃO, SATELITE, EMISSORA, PAIS ESTRANGEIRO, DETERIORAÇÃO, PRODUÇÃO, CULTURA.

O SR. MOREIRA MENDES (PFL - RO. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, trago hoje ao conhecimento desta Casa um fato típico da globalização. Não que eu seja contra esse processo, mas porque, como todo movimento econômico de amplitude mundial, esse também tem os seus excessos. E o excesso que desta tribuna denuncio trata de uma tentativa de manobra espúria, que tenta obrigar, através dos órgãos condutores da política nacional de comunicação, a Rede Globo de televisão a ceder seu sinal para fazer parte da grade de programação de uma emissora norte-americana que, tendo adquirido o controle acionário do sistema de TV a cabo do Grupo Abril, quer o sinal aberto a qualquer custo.

Sei que muitos podem discordar da programação da Rede Globo ou de sua linha editorial por esse ou por aquele motivo. Entretanto, muitos mais brasileiros concordam que ela é, simplesmente, um membro a mais de cada família brasileira. A TV Globo e sua programação é aquela presença antiga e atual em cada lar e em cada recanto deste País.

Recebi, há alguns dias, um folder informativo fazendo divulgação da história dessa emissora de televisão e de sua realidade atual, e faço questão de reproduzir parte do texto publicado.

A matéria começa acentuando a importância atual do nosso País no cenário mundial, afirmando o seguinte:

Basta acompanhar o noticiário internacional para perceber que o Brasil tem ocupado um papel de destaque cada vez mais marcante no mundo. Mais do que uma clara liderança na América Latina, o Brasil tem influenciado o sistema político e financeiro mundial. Tem despertado interesse de investidores e grandes grupos econômicos. Tem incomodado competidores comerciais. O processo de internacionalização é irreversível. O Brasil está entrando no mundo, e o mundo no Brasil. Neste momento, a preservação e o fortalecimento de uma cultura nacional, são condições básicas para que possamos progredir sem perder nossas características, prosperar sem abandonar nossa unidade.

Até agora, temos feito um bom trabalho. Atualmente, só a TV Globo exporta programas brasileiros para 104 países. Vivemos num território cercado pela língua espanhola e invadido via satélite em inglês. Mais do que nunca, uma produção artística de língua portuguesa, de qualidade, torna-se um ativo dos mais preciosos.

Diz ainda o documento produzido pela Rede Globo de televisão:

Um país já foi um território delimitado por linhas em um mapa. Hoje, nos primeiros anos do terceiro milênio, essa definição se tornou mais subjetiva e complexa. Um país hoje é, mais do que nunca, uma soma de hábitos, língua, história, expressões artísticas e culturais.

Historicamente, defendia-se a unidade de um país, militarizando suas fronteiras. Hoje, esta defesa consiste em preservar a sua cultura. Há cinqüenta anos, é isso que a nossa televisão vem fazendo por esta soma de afinidades e emoções que chamamos de Brasil. Um gigante continental que desafia historiadores, sociólogos e antropólogos a entender sua unidade...

...E a cada dia desses cinqüenta anos a TV brasileira vem difundindo uma noção de identidade nacional.

E essa verdade, Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, não se esgota nesses valores. Há um patrimônio incomum que o documento a que me referi, produzido pela Rede Globo aborda.

            E continua:

O Brasil não faz parte do reduzidíssimo clube dos países donos de alta tecnologia e de capital, mas está muito bem equipado para liderar um outro grupo: o dos produtores de cultura. Nosso País é um enorme viveiro de talentos. E o que a TV brasileira sempre fez [especialmente a Rede Globo - e digo isso por mim mesmo] foi estimular a produção artística e intelectual do País. Produzindo uma televisão de altíssima qualidade, onde os programas são criados por autores brasileiros, encenados por atores brasileiros e dirigidos por diretores brasileiros. Onde jornalistas brasileiros fazem os telejornais, e apresentadores brasileiros falam com as mulheres, maridos e crianças de canto a canto do País.

Uma soma de talentos traduzida em números grandiosos: são 125 mil empregos diretos e indiretos na televisão aberta. Uma legião que trabalha sob a mesma cartilha: a da valorização do ativo intelectual e artístico do nosso País, como a única maneira de preservar o nosso patrimônio cultural e garantir condições competitivas aos brasileiros.

E mais, Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores: o documento ressalta de forma cristalina a relação da TV com a criatividade de nossos intelectuais e a heterogeneidade de nosso povo.

A cena é familiar: você liga a TV na Globo, e o Brasil entra na sua casa. Não apenas o Brasil diário do Jornal Nacional, mas também o Brasil romântico de José de Alencar, o Brasil rural de Graciliano Ramos, o Brasil sensual de Jorge Amado, o Brasil épico de Érico Veríssimo, o Brasil cotidiano de Nelson Rodrigues, o Brasil urbano de Rubem Fonseca. Todos esses brasis estiveram e estão disponíveis para todo e qualquer brasileiro ao toque de um botão. Esta é a lógica da TV aberta: livre, gratuita e disponível em todo território nacional.

Poucas televisões no mundo tiveram um papel tão importante, como empreendedoras culturais, como a brasileira. E, principalmente, poucas fizeram com que tantas pessoas assistissem a estes programas com tanto prazer e orgulho.

Não é nada fácil manter uma identidade cultural num país tão monumental e heterogêneo como o Brasil. Cada região tem suas festas populares, pratos típicos, hábitos, costumes e, às vezes, até linguagens diferentes. A TV aberta brasileira tem um enorme orgulho de ter participado ativamente da formação dessa identidade. Levando o Brasil para todos os outros países que existem no nosso território. Reafirmando os pontos comuns e valorizando as diferenças. Mantendo uma programação de interesse nacional, mas dando apoio e espaço para os programas regionais nas suas inúmeras afiliadas em todo o país. Garantindo que, lá na fronteira com a Argentina ou na divisa com a Bolívia, nosso povo assista a programas em português, criados e produzidos por brasileiros.

Este é o teor de uma matéria bem feita e, segundo o meu entendimento, honesta quanto à realidade da história, da linha editorial de programação e da busca permanente pela excelência de produção e programação da Rede Globo, destacando o conteúdo dos textos e a disposição da Emissora em defender “esse ativo, essa identidade, esse patrimônio, essa relação e essa unidade” que a todos convoca para juntos defenderemos.

Talvez seja hora de perguntar por que estou aqui descrevendo valores tão conhecidos sobre a Rede Globo de Televisão, essa emissora que há décadas é líder de audiência no país. O que ameaça seus valores? Qual é a agressão e qual risco está ela correndo neste momento?

Tomei conhecimento, Sr. Presidente, Srs. Senadores, através de matérias jornalísticas, artigos em revistas de circulação nacional e documentos da Câmara Federal, especialmente os pronunciamentos proferidos pelos nobres Deputados Ney Lopes, Luis Piauhylino, Marcelo Barbieri e Aloísio Mercadante, de que se encontra no Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade, do Ministério da Justiça, processo cuja decisão poderá definir o futuro da liberdade de expressão do pensamento em nosso país, liberdade essa que parece tão bem agasalhada sob a Constituição de 88, mas que agora, em razão de questionamento meramente mercadológico, precisa ser vista sob ameaça, o que me faz, como representante do povo, chamar a atenção do Congresso Nacional.

Uma empresa multinacional, proprietária de satélites de comunicação e detentora do controle de poderosa rede de veículos iniciou, em nosso país, a prestação de um serviço de transmissão de sinais de televisão via satélite, o que é perfeitamente admitido por nosso legislação. No entanto, pretende agora essa multinacional impor a produtores culturais do país a obrigação de cessão de conteúdo de programação como forma de atrair assinantes para o sistema que utiliza no transporte de tais sinais.

É audaciosa, embora justificada, a pretensão da empresa estrangeira e até mesmo, sob determinado aspecto, lisonjeira para a produção audiovisual brasileira por ver tão bem reconhecido o seu valor. É o atestado de qualidade dado por quem conhece o mundo e faz o mesmo experimento dominador em outras partes do planeta nesta fase de globalização de coisas e sentimentos a que, com razão, parte considerável do mundo reage e de forma clara.

Injustificada, no entanto, parece ser a primeira abordagem do Cade no processo por estar confundindo bem cultural com infra-estrutura, aquilo que a todos os que estão no mercado deve ser dado direito de acesso, como os serviços portuários neste momento de privatização das docas, para que se evite a praga do monopólio nos transportes de mercadorias.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Cade, em boa hora criado e que vem desempenhando com acerto as suas atribuições, está subordinado à lei que o instituiu para que fosse o caminho administrativo na solução de problemas de concorrência, tudo em nome do consumidor final, a quem a lei deseja proteger. Não é um centro de demandas jurídicas, até porque sua composição mistura pessoas de notório saber jurídico com as de reconhecido saber econômico e, de suas decisões, como de tudo o mais em termos legais, cabe o recurso democrático aos tribunais judiciários, detentores do monopólio da interpretação das leis.

A lei brasileira de defesa da atividade econômica é clara quando define como ilícita a tentativa de “dominar o mercado relevante de bens e serviços”, e claríssima quando diz não constituir tal domínio “a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em relação aos seus competidores”.

            Assusta, portanto, saber que o Cade corre o risco de acompanhar um relatório eivado de preconceito e graves equívocos, podendo decidir pelo desestímulo à produção cultural e, mais que isso, pela absurda valorização de um grupo internacional que está unicamente preocupado com o seu projeto maior, que a ingenuidade pode chamar de globalização, mas que quem tenta enxergar o que ocorre e se mira nos exemplos de outras fases de mudança de ciclo econômico da história do homem sabe ser o exercício da dominação.

Quer o relator do Cade, Sr. Presidente, a aplicação do princípio do must-carry, isto é, da obrigação de carregar, que se pratica - e com justeza pelo interesse público - quando se trata, por exemplo, dos fios de diversas empresas de transmissão de rede elétrica ou de telefonia.

Na verdade, quer a multinacional concorrente, de forma senão sagaz, sutil, e lamentavelmente assim compreendido pelo relator do Cade, conquistar, através de uma comparação justa, um direito diferente e por isso injusto, porque levar um sinal de TV não é apenas e nem o mesmo que um fio de energia.

Se eles quisessem comparar, com inteligência ou honestidade, a rede elétrica que usa de forma comum o poste e se assemelha ao sistema transmissor, cabo ou satélite, jamais está para a programação, que só poderia ser comparada à própria energia recebida pelo usuário final.

Querem o direito ao poste? Pois já o têm garantido pela Constituição e pela legislação complementar brasileira que lhes permite mostrar sua rede no país. Agora, levar entre seus sinais o sinal aberto da Rede Globo, com seus custos, sua linha editorial, seu conteúdo, sua tradição e seus compromissos com o povo brasileiro e com milhões de telespectadores em mais de cem países é o mesmo que querer obrigar uma grande e tradicional emissora de rádio a concorrer consigo mesma e permitir que, numa mesma cidade, uma rádio comunitária gere sem custos a programação daquela outra.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o mercado cultural é sempre objeto dos desejos em todas as conquistas mercadológicas, haja vista, entre nós, o que aconteceu com a indústria cinematográfica de ciclos sucessivos de esforço heróico e renascimento seguido da destruição impiedosa. Tudo porque a distribuição das fitas - sob o comando estrangeiro - impede a afirmação com que todos sonhamos. Daí não se estranhar mais a estética da violência que importamos sem cuidado, mas que já produziu os frutos perniciosos que todos temíamos.

Em televisão, ao contrário, porque o Constituinte foi zeloso, o domínio estrangeiro cai a cada ano, e se restringe, hoje, ao filme de longa-metragem, que detém 15,3% da programação geral das redes. O jornalismo, com 13,5% da programação, tem o melhor índice, seguido dos shows, com 16,8%, da programação infantil, com 13%, e, finalmente, do esporte, com 7,6%.

Mas o que parece preocupar os que chegam sem o propósito de produzir é a teledramaturgia, com os seus 5,6% de programação geral, mas com aceitação externa excepcional, até mesmo nos países de cultura não ocidental. Os dados, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estão na última edição da revista Meio&Mensagem, a mais respeitada publicação dirigida ao mercado publicitário brasileiro.

O simplismo redutor do relatório do Cade prefere negar a pesquisa isenta da realidade do meio televisão no País para aceitar como prova a transcrição de uma reunião externa de executivos de empresas do mercado de capitais que, sob a responsabilidade exclusiva de uma corretora que aconselhava seus clientes, reproduzia dados questionáveis até mesmo para os leigos na matéria, dando uma rede brasileira como detentora de 50% da audiência diária e, em razão disso, de 70% dos anúncios comerciais.

Fosse verdadeira a realidade expressa naqueles números, caberia ao relator do Cade, pela isenção exigida em lei, saber se tal quadro era conseqüência natural da “eficiência do agente econômico”, de que fala a legislação protetora do mercado, o que parece constituir a realidade, já que as redes concorrentes não questionam tal fato. Pelo contrário, exemplarmente lutam na guerra pela audiência e festejam, não raro, os pontos que asseguram a liderança em muitos horários.

Não, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não se trata de uma disputa entre concorrentes, mas de um engodo proposto por empresa que nada produz em termos culturais no País, que não tem interesse em correr o risco desse negócio complexo que é juntar talentos para a produção de bens culturais, desejando apenas, e com ambição, usar o que terceiros produzem e têm o direito sagrado de entregar para distribuição a quem respeitam e entendem ser parceiros das coisas brasileiras.

Não desejam os produtores de televisão seguir o caminho suicida do cinema, para não terem, um dia, que repetir a história da Atlântida e da Vera Cruz, efêmeros sonhos nativos de um cinema brasileiro de categoria e auto-sustentável.

E para encerrar, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, peço a atenção desta Casa para o que está ocorrendo, e estranho que não haja no Cade o que estamos reclamando para outros setores da administração pública, que é a vedação a que ex-membros de julgamento e arbitragem se transformem em advogados ou parceiristas contratados por partes que litigam, não pela interferência do saber - que pode ser excepcional -, mas da condição que desequilibra a isenção com que os processos devem ser tratados.

Há, no caso em questão, um parecer do ex-presidente do Cade, contratado pela empresa estrangeira, que, a nosso ver, tenta usurpar o direito que é nosso, e, em matéria de bens culturais, as cautelas devem ser sempre renovadas.

Diante desse quadro de absoluta injustiça, não só contra a Rede Globo, mas principalmente contra a cultura nacional, apelo veementemente ao Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica - para que reveja o parecer do relator aposentado e, como a Anatel, decida em favor dos nossos valores, já tão vilipendiados ao longo de nossa história.

Era o meu registro, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/04/2001 - Página 7197