Discurso durante a 54ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMENTARIOS ACERCA DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • COMENTARIOS ACERCA DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 18/05/2001 - Página 9795
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, ELIMINAÇÃO, ESCRAVATURA, DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • CRITICA, GOVERNO FEDERAL, AUSENCIA, PROGRAMA, INTEGRAÇÃO SOCIAL, POLITICA DE EMPREGO, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO, BENEFICIO, NEGRO.
  • SOLICITAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, POPULAÇÃO, ELIMINAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje, dia 17 de maio, o Deputado Aécio Neves, Presidente da Câmara, convoca os Parlamentares para a solenidade de um ato que tem como tema o combate ao racismo. Essa solenidade é em homenagem aos 113 anos da chamada Lei Áurea que, hipoteticamente, seria a libertação dos escravos.

Acontece que, no Brasil, a libertação dos escravos está muito longe, porque, na verdade, as relações de trabalho, a relações entre o trabalhador negro e o branco ainda podem ser caracterizadas como de semi-escravidão. Portanto, a Lei Áurea é apenas uma data, um marco, mas não significou exatamente a libertação dos escravos, do homem negro, da mulher negra, do trabalhador enfim. É apenas uma data simbólica.

No dia 13 de maio de 1888 - há 113 anos - o Brasil assistia à Princesa Isabel assinar a Lei Áurea, que extinguia a escravidão, encerrando quatro séculos de exploração oficial da mão-de-obra africana em nosso País.

Durante muito tempo, a propaganda oficial fez dessa data um de seus maiores argumentos para defender a suposta tolerância em relação aos negros, apresentando a abolição da escravatura como fruto da bondade de uma princesa. É o mesmo que dizer que a história se faz por vontade própria e não pela ambição coletiva dos donos do poder ou pela força das aspirações de um povo.

Registro, também, que preferimos chamar essa data não de Dia da Abolição da Escravatura, mas de Dia Nacional de Denúncias contra o Racismo e contra a Discriminação dos Excluídos.

Na verdade, o processo que resultou na abolição da escravatura pouco tem a ver com razões humanitárias. A estrutura escravocrata da economia brasileira, não obstante sua importância interna, começou a sofrer pressão desde o século XVIII, pois não mais se compatibilizava com as novas idéias e concepções acerca do trabalho. A Revolução Industrial expandia-se no mundo desvinculada do escravismo, em oposição a ele, sobretudo no que refere ao alargamento dos mercados consumidores e à concorrência de produtos obtidos sem o trabalho escravo.

O golpe mais profundo e o mais conseqüente viria em 1808, capitaneado por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos manufaturados: o tráfico foi declarado ilegal. O comércio inglês, então senhor da metade do montante do comércio mundial, depois de haver se aproveitado largamente dos lucros do tráfico, sentia-se superior aos interesses dos setores escravocratas, motivado pelo propósito de penetrar na África, introduzindo manufaturados e comprando matérias-primas.

Explicam-se desse modo as pressões exercidas pela Grã-Bretanha sobre o Governo brasileiro, especialmente no que tange à proibição do tráfico, que acabaria minando os próprios alicerces da instituição escravista.

Outro fator importante foi a resistência negra, traduzida em revoltas sangrentas, como queima de engenhos e destruição de fazendas, que se multiplicaram nas últimas décadas do séc. XIX, aumentando o custo e impossibilitando a manutenção do sistema.

Foi assim que chegamos a 13 de maio de 1888, quando negros de todo o País puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, mas acordando no outro dia com uma dúvida atroz: o que fazer com essa tal liberdade? Para muitos, a resposta seria permanecer nas fazendas realizando o mesmo trabalho, agora sob piores condições, pois, não sendo mais um investimento, a liberdade que o negro agora experimentava era ser livre para “escolher a ponte sobre a qual preferia morrer”. Sem terras para cultivar e enfrentando no mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus, em geral subsidiados por seus países de origem e incentivados pelo Governo brasileiro, os brasileiros descendentes de africanos passaram a favelados, meninos de rua, vítimas da violência policial, discriminados pela Justiça e pelo mercado de trabalho, invisíveis nos meios de comunicação, com seus valores, sua religião e sua cultura negados. Cidadãos de uma ”democracia racial” em que o lugar de destaque que ocupam é o da miséria e da destituição.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, isso significa que o Estado brasileiro não construiu estratégias de integração da população negra na sociedade brasileira. Ainda hoje, não incluiu em seu projeto de nação os herdeiros dos africanos no Brasil. Os negros livres tiveram de sair das fazendas com as mãos abanando. Enquanto isso, os europeus recebiam vários incentivos para vir ao Brasil, como terra e ajuda financeira.

A escravidão negra deixou marcas profundas que se caracterizam, principalmente, pelo preconceito e discriminação, responsáveis pelo grande contingente de afrodescendentes despossuídos e à margem do crescimento econômico. Não dá para falar em miséria e fome sem lembrar da pobreza dos negros brasileiros. Se o país tem 57 milhões de pobres, ou seja, 36% da população, podemos dizer que grande parte desse contingente é formada pelos afrodescendentes.

A discriminação está nos números. Acaba de sair uma pesquisa sobre o racismo no Brasil. Como os anteriores, o estudo, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constata a situação de inferioridade econômica e social dos negros em relação aos brancos no Brasil. Mas tem duas novidades desalentadoras: a pesquisa revela que a diferença de anos de escola entre negros e bancos ficou praticamente igual consideradas as três últimas gerações. Ou seja: um negro com 70 anos hoje estudou, em média, 2,2 anos a menos que um branco da mesma idade. E um negro de 30 anos mantém quase a mesma desvantagem em relação ao branco de igual idade: 2,1 anos a menos de escola. A outra novidade é que, em matéria de progresso contra a discriminação, essa relação coloca o Brasil atrás até da África do Sul, onde até 1994 vigorava um feroz regime racista, o apartheid. Na África do Sul, os negros também estudam menos que os brancos, mas a diferença vem diminuindo de forma mais acentuada que no Brasil com o passar do tempo. Antes, a diferença era de sete anos. Agora, caiu para três. No Brasil, não há queda.

Seria até um alento supor que os negros sul-africanos viviam uma situação tão precária, diante das quase cinco décadas de apartheid, que seus sucessos só podiam ser mais vigorosos que os dos negros brasileiros. Mas nem isso é verdade, considerando que, no Brasil, tanto os brancos quanto os negros estudam muito pouco - mesmo comparados aos de países bem mais pobres. Na África do Sul, um branco de 25 anos estuda, em média, doze anos, enquanto o negro fica nove anos na escola. No Brasil, a situação fica assim: um branco de 25 anos estuda 7,5 anos, e um negro, 5,5 anos. Conclusão: o negro sul-africano estuda muito mais que o negro do Brasil - mais até que os brancos.

É de levar em conta que, quando se fala em educação, se está falando de futuro, trabalho, salário. “A diferença de escolaridade repercute, de geração em geração, diretamente na diferença salarial entre brancos e negros”, explica o economista Ricardo Henriques, responsável pela pesquisa. Sabe-se que a educação está entre os principais fatores que determinam o salário de um trabalhador. Outro estudo do Ipea mostra que, de todos os fatores que reduzem o salário de um trabalhador negro, a educação entra com um peso equivalente a 27% do problema - e nenhum outro dado tem impacto tão alto. “Fizemos um estudo científico sem qualquer viés político”, diz o embaixador Gilberto Saboia, Secretário de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. O difícil vai ser convencer, com ou sem viés político, que o Brasil está fazendo sua parte para resolver as diferenças raciais.

Outra pesquisa, que mostra a discriminação do negro no mercado de trabalho - Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho -, realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) revela que, na média, somente 6% dos cargos decisórios no País são ocupados por negros. Isso é muito pouco. Apenas no Distrito Federal é que esse percentual sobe para 15,9%. É a maior presença entre seis regiões metropolitanas pesquisadas, porque, além do Distrito Federal, o estudo foi realizado em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.

As estatísticas apontam que os negros realmente estão em subempregos ou empregos ruins e longe do poder decisório da sociedade brasileira. A maioria está a um passo do desemprego (41,2% trabalham sem carteira assinada, em biscates ou serviços domésticos). Pelo menos 22,6% dos negros no mercado de trabalho estão em vagas que não exigem qualquer qualificação. A taxa de desemprego entre os negros também é alta, ficando na faixa de 21,7%, enquanto entre os não negros é de 16,5%.

Sras e Srs. Senadores, ao visitarmos um shopping, principal estabelecimento de consumo da classe média, não encontramos negros trabalhando nas lojas, e, quando encontramos, o número é infimamente pequeno. Isso demonstra como é forte a segregação racial no Brasil. Nós negros sabemos que o desemprego atinge a população como um todo, mas, quando o negro desempregado enfrenta filas para disputar uma vaga de emprego e é entrevistado, o que pesa é a “cor” na hora de definição da vaga, que, na maioria das vezes, fica para um branco. No Brasil, o racismo encontra-se impregnado em toda a sociedade.

A situação apresentada por essas pesquisas revela um aspecto crucial da desigualdade social no Brasil: injusta distribuição da riqueza gerada e de políticas econômicas que beneficiam grupos privilegiados, em detrimento dos trabalhadores. Está calcada também sobre diferenciações e comportamentos discriminatórios disseminados por todo o País.

Esse abismo que separa negros e não negros é mais do que conseqüência de anos de escravidão. Também é resultado do processo de “abolição à brasileira”. A história registra que os escravos só foram libertados porque era mais vantajoso economicamente trocá-los por imigrantes europeus assalariados.

A cidadania pretendida pelos negros tem como objetivo o despertar para a situação de exclusão em que vive a maioria brasileira de raízes africanas. O Governo FHC e sua política neoliberal, associados que estão ao passado colonial escravista, explorador e excludente das elites brasileiras, perpetua as desigualdades sociais, priorizando questões econômicas e acordos internacionais, diga-se FMI. Os efeitos das ações deste governo ampliam ainda mais os contrastes sociais, gerando situações como a informalização crescente do mercado de trabalho e o aumento do desemprego. Quem mais sobre as conseqüências desse desgoverno são os menos privilegiados, ou sem privilégio nenhum, da cidade ou do meio rural, acentuando ainda mais a violência e o genocídio da população negra e pobre.

Todas as denúncias de racismo já foram feitas. O mito da democracia racial está ultrapassado. Exigimos ações efetivas que retire a população afro-descendente da condição de marginalização perante a sociedade brasileira, para que tenhamos orgulho de conviver na multiplicidade de raças e de culturas, pois não é possível construir um projeto de Nação sem levar em conta a marginalização dos afro-descendentes brasileiros.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/05/2001 - Página 9795