Discurso durante a 75ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

HOMENAGEM AO HISTORIADOR CAIO PRADO JUNIOR, PELA PASSAGEM DO DECIMO ANO DE SEU FALECIMENTO.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AO HISTORIADOR CAIO PRADO JUNIOR, PELA PASSAGEM DO DECIMO ANO DE SEU FALECIMENTO.
Aparteantes
Bernardo Cabral.
Publicação
Publicação no DSF de 21/06/2001 - Página 13535
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, CAIO PRADO JUNIOR, HISTORIADOR, EX-DEPUTADO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), ASSOCIADO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB), RESPONSAVEL, EDITORAÇÃO, PERIODICO, REVISTA BRASILIENSE, ATUAÇÃO, DEFESA, DEMOCRACIA, ANALISE, TESE, MOVIMENTO TRABALHISTA, TRABALHADOR RURAL, REESTRUTURAÇÃO, PRODUÇÃO, BRASIL.

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a homenagem que hoje fazemos é emblemática para o Partido Popular Socialista, ao rememorarmos em Caio Prado Júnior aquilo que o PCB, em sua vertente majoritária, sempre quis ser: um ente político de ação democrática na sociedade brasileira, apesar da sua raiz histórica revolucionária, um Partido dedicado ao cotidiano da população e às causas gerais do País e da Humanidade.

A tese de Caio Prado Júnior de conformar uma força política que levasse à frente a reforma democrática e progressista da sociedade brasileira é atual - temos consciência de que não é nossa propriedade e nem patrimônio exclusivo de nenhum outro Partido de esquerda.

Afinal, o reformismo radica em largo espectro da vida nacional, e ajudar a reunir as forças dotadas desse conteúdo é a tarefa histórica principal da Esquerda em nosso País.

Se juntarmos tal concepção à outra tese igualmente importante, também concernente ao PPS - a de que a democracia é, ao mesmo tempo, valor universal e instrumento de melhoria da sociedade -, haverá aquilo que alguns de nossos intelectuais têm chamado de “pecebismo contemporâneo”, expressão criada para dar conta de nosso caminho de pedras, passando por equívocos, como o do novembro de 1935, mas também pela resistência ao Estado Novo; por memoráveis batalhas, como “O Petróleo é Nosso”, e pelas “reformas de base”; e, sobremaneira, por acertos políticos, como a nossa presença, inarredável, na luta contra o regime de 1964, uma presença orientada pelo gradualismo de “resistir, isolar e derrotar” aqueles que usurpavam o poder.

É preciso termos memória para rendermos nossas homenagens ao militante histórico, Caio Prado Júnior, como parte do mundo do PCB. Filiado em 1931 ao Partido fundado por Astrojildo Pereira, Caio Prado Júnior participou ativamente da articulação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), cuja política de ampla frente única democrática seria depois abandonada por nós nos episódios de novembro de 1935. Nos anos 40, Caio Prado Júnior já era um intelectual influente e também se tornou uma referência de direção do nosso Partido, atuando ativamente nas movimentações antiditatoriais reunidas em torno da União Democrática Nacional, a UDN, que mais tarde, em 1964, iria se transformar em sustentáculo político do regime militar - é bom lembrar, talvez, a UDN nos seus melhores momentos, para não lembrarmos a UDN do denuncismo -, lugar político para onde convergiam as correntes liberais e os revolucionários de origem e inspiração marxistas.

            Caio Prado Júnior candidatou-se à Assembléia Nacional Constituinte de 1945, não conseguindo se eleger. Mas logo foi Deputado Constituinte do Estado de São Paulo, até a cassação do registro do PCB.

            Não estou bem certo, mas gostaria de registrar - e disso tenho certeza - que Caio Prado Júnior foi um dos grandes idealizadores da pesquisa, da ciência e da tecnologia em São Paulo, por intermédio de um projeto de sua autoria. No entanto - nesse ponto é que me falha a memória -, não sei e não descobri nas pesquisas se participou da criação da Fundação de Ciências e Pesquisa de São Paulo, a Funcesp. É importante salientar esse fato, que também já o anunciava como um homem da modernidade.

Ressurge, depois da cassação do registro do PCB, para outra frente de luta, para a qual tinha extraordinária vocação: a atuação editorialística, conformada com a parceria de Monteiro Lobato no projeto da Editora Brasiliense, de considerável influência naqueles anos 40. Caio Prado Júnior voltava, a partir de 1955, com a Revista Brasiliense, até ser silenciado pelo Golpe de 1964. Da mesma forma como sofrera após os sucessos de 1930 e 1935, ele, nos anos do regime de exceção pós-64, novamente iria experimentar perseguições, às quais sobreviveria, mobilizando sua vocação de intelectual revolucionário, inabalavelmente convencido de que seus estudos, pesquisas e ensaios de interpretação das coisas brasileiras eram a melhor arma com que contava para continuar o seu combate de homem público.

Não há paradoxo nessa homenagem a um intelectual e militante com o qual a direção do PCB tanto se desentendeu. Até porque o PPS, além da continuidade, é também o desentendimento, a ruptura. Se o homenageamos, nós o fazemos como uma interpelação da nossa própria tradição doutrinarista, acompanhada não raras vezes do sectarismo, que, por muitos anos, impediu-nos de estabelecer uma política generosa e de sermos generosos com críticos como Caio Prado Júnior, severo, qualificado e incansável no seu bom combate. Ele é um patrimônio do pensamento de Esquerda entre nós que precisa ser melhor resgatado para nos ajudar no imprescindível aggiornamento, um conceito nascido por ocasião do Concílio Vaticano II, com o Papa João XXIII, que diz respeito à capacidade das instituições de se atualizarem frente às sociedades e ao mundo em transformação. Para nós, aggiornamento é tornar a Esquerda contemporânea do futuro.

            Caio Prado Júnior ajudou-nos a superar a idéia de revolução como ruptura abrupta e dissolução total da ordem econômico-social - talvez superando aquela disjuntiva reforma ou revolução, entendendo que o processo da reforma era revolucionário -, a ver a política como um instrumento de melhoria da sociedade, a serviço da população, instrumento a ser manejado por nós e por outros. Quanto mais firme por nós e muito mais amplamente por outros, melhores os resultados para o povo brasileiro e o Brasil.

É com essas evocações - ao melhor estilo da política que chegou a desenvolver o velho “Partidão”, o seu Partido, o representante maior da Esquerda brasileira -, que venho render a homenagem do Senado a Caio Prado Júnior, ante a sua família. Eu estava meio preocupado que, quando chegasse esta oportunidade, seus familiares ainda não estivessem aqui, mas eles estão presentes nesta sessão. A eles o nosso abraço e as nossas homenagens! Sua família está aqui representada por sua filha Yolanda e sua neta Cláudia. A Deputada Lúcia Souto, do Rio de Janeiro, acompanha as ilustres convidadas e lhes faz, como mulher da Executiva Nacional do nosso Partido, as honras.

Permitam-me um pequeno parênteses, destacando uma das mais instigantes publicações da intelectualidade brasileira, editada no início da segunda metade do século passado. A Revista Brasiliense de Caio Prado Júnior exerceu uma influência incomensurável na vida política brasileira do decênio de 1955-64. E o interlocutor dessa política não era só o PCB, mas o que ele chamava de “forças populares e progressistas”. Essas, diga-se agora, com a distância do tempo, não souberam aproveitar as circunstâncias e se conduzir com a moderação e a firmeza requeridas por aquele imediato pré-64, quando a sociedade se movimentava em ações que se alargavam, enquanto ainda carecia de “alicerces políticos” suficientemente fortes. Com sua larga concepção, embora desse muita importância aos partidos, Caio Prado Júnior dizia que eles ainda deixavam muito a desejar. Era preciso levar a bom termo aquele processo de reformulação da sociedade brasileira de grande monta, posto na ordem do dia pelas então chamadas “reformas de base”, em pleno Governo João Goulart.

Não seria exagero afirmar que Caio Prado Júnior pode ser considerado um dos grandes últimos intelectuais com vocação pública do País - e poucos se igualaram a ele. Para usar um termo em voga à época, pensou genuinamente a revolução brasileira, sempre pelo parâmetro da ação efetiva - da práxis, como um bom marxista iria dizer. A teoria era um instrumento de ação política e não de inércia provocada pela busca de objetivos irrealizáveis, método muito comum em parte de alguns intelectuais que reclamavam a transformação do Brasil. Esse estilo de fazer política sempre ajudou a pôr a esquerda diante da ação com responsabilidade, controlando o comportamento errático e casuístico. Uma colaboração que foi introduzida por ele próprio na cena pública no passado e ainda continua ofertada, agora presente na nossa cultura política como uma marca intelectual indelével e dotada de ensinamentos nada desprezíveis para a política e a cultura dos nossos dias.

Poderia evocar nossas desavenças, do Partido e de nossos quadros intelectuais, com Caio Prado Jr. Recordo, inclusive, que um folheto, um prospecto foi feito a respeito do grande livro A Revolução Brasileira pelo então intelectual maior que tínhamos em Pernambuco, o saudoso Paulo Cavalcanti. Debates que se realizavam na revista Civilização Brasileira, algo de significativo da intelectualidade, do processo cultural, da resistência, enfim, à ditadura militar que foi instalada em 1964. A rigor, poderia me referir à nossa quase sempre incompreensão do sentido de sua obra, uma obra declaradamente escrita para orientar a prática de esquerda, do PCB em primeiro lugar. Um PCB que não escutou o historiador em temas e ocasiões por demais importantes, como em 1945 - trata-se de um fato interessante que descobri recentemente, que eu não conhecia - quando ele insistiu na manutenção da aliança com os liberais que resistiam ao Estado Novo e não concordava com a aliança com Getúlio. Ter conhecimento disso agora vai me ajudar inclusive quando, em debates, algumas pessoas ainda discutem, do ponto de vista histórico, por que o PCB se aliou a Getúlio, particularmente Luiz Carlos Prestes, quando Getúlio havia permitido o envio para a Alemanha nazista de sua mulher, Olga Benário Prestes. É importante isso, talvez até para dizer das nossas riquezas, das nossas contradições, do nosso pluralismo. E mais: quando, nos anos 50 e 60, alertava para a aparência de radicalização e para a fragilidade do processo político e da organização popular daquela época. Isso é o pré-64.

Mesmo após o golpe de 1964, quando nos acertamos do ponto de vista prático e defendemos a imediata concentração de todos os esforços na montagem da frente única democrática com a classe política, como meio para remover o autoritarismo, não tivemos as vistas largas para captar o que Caio Prado Jr. queria nos dizer com o seu livro A Revolução Brasileira (1966). Achávamos que o livro falava apenas de uma “revolução agrária”, definida não por seus objetivos antilatifundiários, como queríamos, mas como simples regulação das relações de trabalho no mundo rural.

Não prestamos a devida atenção ao fato de que, naquele 1966, o historiador voltava às suas antigas teses e tornava a insistir e pensar o modelo de desenvolvimento nacional como um processo auto-sustentado; que ele dizia, então, que poderia ser estimulado pelo movimento das reivindicações trabalhistas no campo, no sentido de que ali se podia gestar um impulso no mercado interno capaz de desencadear um movimento profundo, alternativo ao desenvolvimento excludente que o regime de 1964 começava a nos impor, radicalizando a sua política econômica de dependência e promovendo a modernização conservadora dos grandes setores da agropecuária, com exclusão da pequena e média propriedade, sobremaneira com o controle dos movimentos dos trabalhadores rurais e de suas entidades representativas.

Não percebemos o que significava a sua insistência em mostrar - contra a nossa antiga tese de uma feudalidade brasileira e seus resquícios - a força do movimento trabalhista rural e o impacto que poderia ter no processo de mudanças progressistas do País que tanto almejávamos.

Caio Prado Jr. dava à questão secular da reforma agrária um significado extraído da nossa história nacional. Segundo ele, desde a Abolição, a formação da nacionalidade tinha o seu “calcanhar de Aquiles” no tema agrário, ou seja, na incapacidade de nossa agropecuária, estruturada em grandes unidades, de elevar a maioria da força de trabalho ali empregada a níveis de civilização moderna. De acordo com a sua teorização, a “dialética econômica” do campo brasileiro não estava num sistema feudal ou latifundiário atrasado por restos feudais ou resquícios feudais, como chamávamos, mas na contradição que atravessava os grandes setores produtivos, dividindo o mundo rural entre os monopolizadores da condição de emprego e os grandes grupos populacionais sem ocupação e remuneração adequadas, os simplesmente sem trabalho e meios de vida.

Caio Prado Jr. era insistente na tese de que a luta dos empregados e das reivindicações trabalhistas no campo e dos sindicatos rurais tinha potencial para se espalhar por todo o território nacional e não apenas localizar-se em focos de tensão, como eram os conflitos do tipo camponês - dos posseiros, meeiros, arrendatários e pequenos produtores. Aqui acrescento: dos sem-terra. Via ali o movimento principal.

Chamava a atenção para o fato de que o movimento agrário de base sindical era portador de um grande potencial para institucionalizar, continuamente, consideráveis grupos sociais, seja mediante a sua utilização na economia produtiva, seja como força de trabalho valorizada e como agricultor familiar nos interstícios dos grandes ramos produtivos. Essa consideração nos levava à urgência de afastarmo-nos de vez de qualquer ilusão sobre o uso dos camponeses como instrumento de radicalização que, segundo pensávamos, ajudava a aproximar a etapa da revolução socialista no Brasil.

Faço aqui, também, um pequeno adendo. É interessante como alguns setores da Esquerda brasileira ainda não aprenderam essa lição e pensam e imaginam que o camponês brasileiro vai queimar etapas e aproximar-se de um processo revolucionário socialista no Brasil. Falo especificamente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra ou, pelo menos, de setores desse movimento.

Quando Caio Prado Jr. enfatizava o tema agrário, ele não estava pensando em revolução camponesa, muito menos em mobilizar massas rurais simplesmente para desestabilizar a ordem burguesa. Custamos muito a aprender o que o historiador entendia por reforma agrária, mesmo quando já se tornava claro que a reforma agrária não era mais condição sine qua non para viabilizar o capitalismo brasileiro - como, aliás, depois nos ensinaria um outro intelectual do Partido Comunista Brasileiro, Ivan Ribeiro, morto no acidente aéreo que vitimou o Ministro pernambucano, meu amigo Marco Freire, de saudosa memória.

            Já em seu tempo, o historiador propunha que se tivesse uma ampla visão do nosso mundo rural. De acordo com sua teoria agrária, ele considerava a questão da terra uma subsidiária ao movimento maior e mais sólido que ele divisava na mobilização - de natureza contínua e mais permanente - dos empregados rurais dos grandes setores da agropecuária, em especial a partir do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado pelo Presidente João Goulart em 1963. E tirava dele as conseqüências políticas.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Senador Roberto Freire, V. Exª me permite um aparte?

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS - PE) - Ouço, com muito prazer, o aparte de V. Exª, nobre Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Nobre Senador Roberto Freire, eu disse a V. Exª que tinha chegado cedo aqui para ouvi-lo nesta homenagem mais do que merecida a Caio Prado Jr. Em verdade, aquele homem público estava muito à frente dos seus contemporâneos e o discurso que V. Exª faz - e, de logo, peço a V. Exª que me releve o aparte, que considero pobre de brilho e indigente na forma, ao discurso tão eloqüente que V. Exª está a fazer, não apenas eloqüente como denso. A personalidade, evidentemente, do homenageado...

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS - PE) - Nobre Senador, não tenha dúvida de que o aparte de V. Exª vai enriquecer o meu pronunciamento.

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - O homenageado merece exatamente que um Senador do porte de V. Exª, meu caro amigo Roberto Freire, ocupe a tribuna para traçar-lhe o perfil. Hoje em dia, lamentavelmente, os homens públicos não merecem o reconhecimento dos seus contemporâneos, quando muito uma leve saudação dos pósteros na pesquisa que estão fazendo. Só interrompi V. Exª porque eu queria revestir este meu aparte da mais infinita solidariedade ao seu discurso.

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS - PE) - Obrigado, Senador Bernardo Cabral. E é verdade. Talvez menosprezemos estar reconhecendo, inclusive como estamos aqui fazendo, alguns equívocos na apreciação que fizemos de Caio Prado Jr. Lembro-me - e aqui abro um parêntese, mas já vou antecipar - que iniciei a minha militância no Partido Comunista Brasileiro, juntamente com Gregório Bezerra, em 1962, organizando o sindicato rural em Pernambuco, na Zona da Mata. Chamávamos os trabalhadores rurais - veja o equívoco, era meio confuso - de camponeses. Chamávamos todos, não só o Partido, mas, com mais propriedade, quando na Zona do Agreste, as ligas camponesas de Francisco Julião. E ali, mesmo quando não admitíamos a tese de Caio Prado Jr. - defendíamos a tese de que o campo brasileiro, a agricultura brasileira era de feudalismo ou de resquícios feudais, de monoculturas latifundiárias, não percebendo que ali estava o germe concreto do trabalhador rural assalariado -, mesmo sem termos essa compreensão, a nossa prática política era de acordo com o que Caio Prado Jr. dizia, porque estávamos organizando sindicatos rurais e não ocupando propriedades, como as ligas camponesas. E havia um certo confronto, que ocorria no espaço do governo democrático de Miguel Arraes de Alencar, em Pernambuco.

Esse dado é para dizer que, naquele momento, se talvez tivéssemos melhor entendido Caio Prado Jr., alguns dos erros que foram cometidos no pré-64 pudessem ter sido evitados. Não sei se evitaria o golpe, porque este não foi fruto dos nossos erros. Talvez tenha sido até dos nossos acertos no momento de ascensão da luta pela sociedade socialista no mundo - a revolução cubana, o grande avanço contra o colonialismo francês e americano no Vietnã. Foi muito mais um quadro de avanço da luta por essa sociedade, que condicionou mudanças em todo o mundo, do que os erros cometidos pela esquerda brasileira, que foram muitos, em particular do Partido Comunista, que era o grande referencial e o grande partido da Esquerda naquele momento.

Eu falava exatamente da questão do Estatuto do Trabalhador Rural. Estou fugindo um pouco, mas talvez este seja um momento importante não só para a homenagem a Caio Prado Jr., para o reconhecimento de sua importância. Por que não começarmos a pensar, numa revisão histórica séria, no que foi o período, de transformação, de mudanças, de colocar na agenda questões básicas deste País, do Governo João Goulart? E mais, até do governo que o antecedeu, do pequeno período do regime parlamentarista, durante o qual conquistas importantes foram feitas. Lembro isso, porque foi em Pernambuco, no Governo de Miguel Arraes, que se teve a oportunidade de fazer o grande acordo coletivo do primeiro contrato de trabalho do campo brasileiro. Não foi pouca coisa: era definir o que significava uma tarefa diária, a jornada, oito horas de trabalho do trabalhador rural brasileiro. Foi no Governo de Miguel Arraes, em 1962, que se estabeleceu algo que não se tem ainda hoje com os bóias-frias, com os trabalhadores rurais, em alguns lugares. Infelizmente, em alguns lugares, ainda há o trabalho escravo.

Para o grande pensador, não sendo a terra a base principal da organização popular no campo, a luta pela terra, que existia em áreas de tensão e conflito, não devia servir de pretexto agitativo ou ser considerada meio para alavancar uma estratégia de revolução irrealista, o que só iria levar a derrotas.

Até parece que não estou falando de Caio Prado Jr., mas de momentos que estamos vivendo, ou seja, de alguns processos conflituosos da democracia brasileira pela sua modernização.

     A questão da terra como solução camponesa - para fortalecer a agricultura familiar - constituía, para Caio Prado Jr., uma frente de luta que criaria uma alternativa de ocupação, favorecendo a valorização dos trabalhadores no mercado de trabalho e também era uma importante via de incorporação dos grupos destituídos de emprego, espalhados pelo vasto território de pobreza que são as zonas rurais brasileiras. Era visto como uma estratégia de vitalização do mercado interno, a partir da valorização da força de trabalho ocupada, ainda em situação precária e muito mal-remunerada, e mediante a vinculação ao mundo do emprego de setores desvalidos, trazendo os primeiros para uma condição melhorada e os segundos para uma vida permanente e relações sociais mais complexas e politizadas formadoras de novas consciências e comportamentos

Mais uma vez, muito atual. Quem não se recorda de Celso Furtado ao falar do potencial da geração de emprego que a agricultura brasileira hoje detém. Isso foi dito na década de 60 por Caio Prado Jr.

            Em resumo, Caio Prado Jr. falava de uma “revolução agrária”, numa concepção mais ampla do que a questão da terra vista ao modo do camponês clássico. Ele se antecipava, e como ainda é atual!

     Em um excepcional livro sobre o nosso homenageado, o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Raimundo Santos pede que não deixemos de associar esse agrarismo de Caio Prado Jr. ao perfil e à trajetória contemporânea da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, chegando a dizer que esse agrarismo teria se consumado na Contag, uma central sindical nascida da visão que muito cedo - sobretudo após a morte de Getúlio Vargas - com todas as dificuldades e insuficiências, os comunistas começaram a ter. Nisso, o PCB seguiu - em princípio, timidamente - as razões de Caio Prado Jr., percebendo que era na luta sindical agrária que estava a base firme do processo reformador do campo. 

Faço aqui um breve parêntese para lembrar, com orgulho, que o início de minha vida partidária deu-se exatamente nesse contexto, ao participar, ao lado do saudoso Gregório Bezerra, da luta pela organização de sindicatos de trabalhadores rurais em Pernambuco, um pouco em contradição com as Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião.

            Quero aqui dizer da importância do Partido Comunista, que foi a origem e o grande movimento que viabilizou a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, em 1963, período de grandes conquistas e avanços na democracia brasileira, infelizmente detido pelo Golpe de 64.

Sr. Presidente, já estou concluindo.

Falar de Caio Prado Jr. significa, antes de tudo, aludir ao seu modo original de ver o País, o Brasil, e sua gente, nós brasileiros, a economia e a política, modo construído em um marxismo singular, como bem salienta o Professor Raimundo Santos.

Recolhemos do Professor Santos outro tema estratégico em Caio Prado Jr., talvez o mais importante, que atravessa toda a obra do nosso homenageado: a idéia do produtivismo, um tema agendado objetivamente nos dias de hoje, quando nos defrontamos com a gravidade da exclusão social, a necessidade do desenvolvimento econômico e os desafios e impasses da globalização.

Em ligeiras pinceladas, diz Caio Prado Jr. que, se a Abolição constituíra em seu gesto político o grosso da nacionalidade, ela, entretanto, não estruturara produtivamente a maioria da população para dar-lhe vida satisfatória e relações econômico-sociais adequadas.

Depois, a modernização seletiva e o industrialismo não alargaram, mediante emprego moderno, a incorporação dos numerosos contigentes da mão-de-obra que afluíam ao mundo urbano em busca de vida melhor ou apenas para sobreviver.

É interessante também situar que o Brasil experimentou, em menos de três décadas, uma profunda transformação, que talvez não tenha paralelo no mundo: de uma sociedade rural, transformamo-nos em uma sociedade urbana, num processo de industrialização que não teve, como disse Caio Prado Jr., condições de alargar a oferta de emprego, motivo pelo qual se criaram as nossas periferias, onde o nível de miséria, mesmo na maior cidade da América Latina, é dramático.

A condição de “país de desocupados”, como ele chamava o nosso problema social contemporâneo, só se superaria num “desenvolvimento sustentado” - algo, hoje, bem incorporado a toda uma concepção ambientalista, defendida pelos ecologistas, parte da agenda da modernidade do século XXI -, realmente produtivo e de inclusão social. E, para ele, socialista que era, esse “desenvolvimento sustentado” significava uma “reestruturação” do capitalismo a partir da valorização do povo trabalhador, de modo a tornar produtiva a força de trabalho nacional. O seu socialismo de reformas capitalistas, pode-se dizer, contemplava formas que buscavam entrosar os mecanismos da economia - a produção e o consumo - num processo radicalmente distinto daquele que criara o país mercantilista, de “negócios fáceis”, de desprezo pelo trabalhador e de descaso pelo próprio trabalho e pela produtividade. Enfim, processo de regulação supletiva da economia de mercado por um Estado democratizado e orientado pela política e por programas políticos dos partidos. Um Estado, como dizemos hoje, desprivatizado, superadas as suas marcas cartoriais e particularistas de grupos atrasados da formação social brasileira, que dele se beneficiaram - e ainda se beneficiam - ao longo da nossa história.

É surpreendente como esse raciocínio de Caio Prado Jr. ressoa ainda hoje, estimulando as nossas mentes para o aggiornamento da esquerda brasileira no seu enfrentamento ao neoliberalismo, no contexto da mundialização.

Durante a pesquisa, tentando rever alguns desses conceitos - eu já havia lido seu livro -, surpreendi-me ao ver como ele começava a analisar a chamada economia de mercado e a sua regulação, algo que nós, comunistas do PCB, só viemos a perceber quando Gorbachev, na tremenda crise por que passava a economia da União Soviética, começou a discutir a chamada perestroika e chegou à conclusão de que a economia de mercado tinha sido vitoriosa e que cabia discutir como regulá-la, por meio de um processo de intervenção - não mais nos moldes antigos e muito menos na totalização intervencionista, que era a marca do socialismo real - de um Estado democrático regulando a atividade do mercado. Trata-se de um conceito bem moderno para a Esquerda, não só da vertente do PCB, que é o PPS, mas da Esquerda internacional, que começa, a partir desse conceito, a ter a capacidade, inclusive, de gerir as grandes economias, como no caso europeu, na perspectiva deste século XXI.

Isso é, realmente, algo de fundamental importância para analisarmos essa contribuição que há tanto tempo foi feita e que, na oportunidade, não foi por nós apropriada, e que, hoje, ainda não o é por amplos setores, da esquerda brasileira inclusive.

Devemos encarar os nossos desafios nesta hora em que os vivemos, tal como o historiador via a economia de mercado: exigindo que nela a produção se pusesse a serviço da maioria da população e do País, como dizia ele naqueles tempos de outros desenvolvimentismos, como o da era da Cepal nos anos 50 e 60 e o do regime militar da ilusão do “milagre econômico”.

Quero manifestar à opinião pública brasileira, diante das senhoras e dos senhores Senadores, o meu regozijo e o do meu Partido com a ação desenvolvida por Danda Prado, filha de Caio Prado Jr., continuadora de uma militância editorialista, à frente da Editora Brasiliense.

            Para terminar este meu discurso de revalorização de Caio Prado Jr. - revalorização no repensar -, gostaria de dizer que, há algum tempo, o PPS vem fazendo o repensar, nele estando presente Caio Prado Jr.. O meu Partido considera o historiador como uma das partes integrantes e principais da nossa cultura humanista, democrática e de esquerda e, por isso, valoriza-o como patrimônio político e intelectual de todos os brasileiros que acreditam em um país mais justo e democrático.

            Nós, do PPS, nos sentimos felizes e honrados por fazermos parte da tradição e da herança dos grandes vultos históricos, e Caio Prado Jr. é um deles. Em virtude dessa relação aberta com as boas idéias e exemplos, rompemos tabus, preconceitos, jogamos verdades absolutas no lixo, tendo a coragem de reinterpretar o velho e propor o novo sem perder a utopia e as esperanças por um mundo mais justo e melhor.

Despedindo-nos, e já agradecendo os presente, acrescentamos que, em tempos de apagão e de pouco brilho, no Governo e fora dele, muitas luzes nos guiam. Caio Prado Jr., com toda certeza, é uma das principais delas e, talvez, a mais radiante.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/06/2001 - Página 13535