Discurso durante a 80ª Sessão Deliberativa Extraordinária, no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DO HISTORIADOR JOSE CALASANS BRANDÃO DA SILVA, FALECIDO NO ULTIMO DIA 28 DE MAIO, EM SALVADOR - BA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DO HISTORIADOR JOSE CALASANS BRANDÃO DA SILVA, FALECIDO NO ULTIMO DIA 28 DE MAIO, EM SALVADOR - BA.
Publicação
Publicação no DSF de 28/06/2001 - Página 14315
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JOSE CALASANS BRANDÃO DA SILVA, HISTORIADOR, ESCRITOR, OBRA LITERARIA, REFERENCIA, ANTONIO CONSELHEIRO, LIDER, MUNICIPIO, CANUDOS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, poucos episódios foram tão marcantes na História do Brasil quanto a saga de Antonio Conselheiro e seus seguidores, logo no alvorecer da República. Aquele singular arraial de Canudos ou Belo Monte representou, a um só tempo, uma espécie de grito inconsciente dos excluídos, a denúncia de seculares e injustas estruturas sociais e uma tentativa de construção solidária e coletiva de uma sociedade mais fraterna e igualitária.

O certo é que, em seu tempo, Canudos povoou o imaginário da sociedade brasileira como algo assustador, obra de um bando de fanáticos desprovidos de razão, a combater a sagrada ordem natural das coisas. Em verdade, ficava difícil compreender, até mesmo em função da escassez de informações confiáveis, o que efetivamente estava ocorrendo em pleno sertão nordestino. Mais assustadora ainda era a força que brotava entre aqueles sertanejos rudes, capazes de impor sucessivas e humilhantes derrotas às forças militares escaladas para combatê-los, inclusive as enviadas pelo Governo Federal.

Graças a Euclides da Cunha, teve a Nação possibilidade de contar com alguns elementos para, pelo menos, conhecer o ambiente que gerara Canudos, ambiente em que se fundiam a aspereza natural e a violência da opressão social. Em célebre série de reportagens para o jornal O Estado de S. Paulo, a seguir transformadas num dos mais essenciais livros para a interpretação do Brasil, Os Sertões, Euclides transmitiu ao País as impressões por ele colhidas no local e no calor dos acontecimentos.

Entretanto, nem mesmo o incontestável brilho literário do autor de Os Sertões teria sido suficiente para, naquele momento e naquelas condições, retirar de Canudos todo seu imenso significado. De igual modo, outra figura gigantesca da literatura latino-americana e mundial, Vargas Llosa, cerca de um século depois de Euclides da Cunha, mergulharia no universo de Conselheiro, com sua Guerra do Fim do Mundo. Em ambos os casos, como não poderia ser de outra forma, a veia literária se sobrepunha ao rigor historiográfico.

Assim, desde Os Sertões ficara aberta enorme lacuna a respeito de um fato extraordinário de nossa História. Era preciso que a historiografia brasileira assumisse como tarefa primordial o exame acurado de tudo o que envolveu a experiência de Canudos, incluindo seu dramático desaparecimento. Um desafio, diga-se, ainda mais instigante por ter como objeto de estudo um episódio não protagonizado pelas elites, mas pelos “de baixo”, o que o singulariza ainda mais.

Alguém assumiu esse desafio, como ninguém mais o fez. Muitos historiadores também estudaram Canudos, produzindo trabalhos, quer sob a forma mais aprofundada de teses, dissertações e livros, quer como artigos para revistas especializadas e imprensa. No entanto, ninguém superou nesse mister o historiador nascido em Sergipe, cuja carreira acadêmica foi toda vivida na Bahia, chamado José Calasans.

Eis a razão, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, pela qual ocupo hoje esta tribuna. Ao registrar nesta Casa o falecimento do maior estudioso de Canudos, José Calasans Brandão da Silva, ocorrido no último 28 de maio, em sua residência na Ladeira da Barra, Salvador, quero homenagear essa figura ímpar de historiador que o Brasil acaba de perder. Ao morrer, com 85 anos de idade, Calasans deixa um monumental legado no qual se mesclam diversos livros sobre Conselheiro e Canudos, o gosto pela conversa livre e solta com qualquer interlocutor e a capacidade de aliar - inovadoramente - tradição oral à rigorosa pesquisa documental.

Vem de 1947 a paixão de Calasans pelo tema a que consagrou sua vida de pesquisador, a partir da leitura de reportagem da Revista O Cruzeiro alusiva ao cinqüentenário de Canudos. Como é próprio das pessoas de espírito elevado, sempre fez questão de compartilhar com todos os interessados - de jovens estudiosos ao grande público leitor - o enorme acervo que, ao longo dos anos, conseguiu amealhar em torno de Antonio Conselheiro e de seus liderados. Indo à cata dos sobreviventes do arraial de Belo Monte, pôde colecionar preciosidades: depoimentos e poemas populares, sem falar nos dois cadernos escritos por Conselheiro - uma espécie de “testamento religioso”, composto de rezas e pregações.

Entre os inúmeros trabalhos publicados por José Calasans, todos eles comprometidos com a construção de um conhecimento sobre Canudos distinto daquele consagrado por Euclides da Cunha, posso destacar, a partir de sua tese de livre-docência O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, de 1950, as seguintes: No Tempo de Antonio Conselheiro, de 1959; Canudos na Literatura de Cordel, 1984; Quase Biografias de Jagunços, de 1986; por derradeiro, Cartografia de Canudos, de 1997, ano do centenário do fim da guerra.

De todas as formas possíveis Calasans se debruçou sobre a História de Canudos. Fê-lo de tal forma e com tamanho ardor que o professor de Teoria Literária na Universidade de São Paulo, Roberto Ventura, chegou a identificá-lo como alguém que “se integrou às tropas do Conselheiro e à História de Canudos”. De seu trabalho, resulta um Conselheiro bem diferente daquela figura sombria - misto de louco e fanático místico - que emerge de Os Sertões. Antes, o que Calasans consegue é recriar a trajetória de vida de Antonio Vicente Mendes Maciel, da criança cearense nascida em Quixeramobim ao adulto Conselheiro do sertão da Bahia. Um personagem que estudou, trabalhou, conheceu fracassos - no comércio e no casamento - e que foi capaz de exprimir concepções políticas e religiosas identificadas com o seu tempo.

Muito antes de a História das Mentalidades se tornar moda, o que, entre nós, correspondeu basicamente aos anos oitenta, Calasans inova em seus estudos sobre Canudos: em primeiro lugar, jamais teve a veleidade de resgatar uma História de Canudos; ao contrário, buscou enfatizar as múltiplas perspectivas ensejadas por aquela experiência, os inúmeros olhares que poderiam mirar o mesmo acontecimento. Ademais, foi pioneiro na intensa utilização dos testemunhos dos sobreviventes e na revisão dos documentos relativos à guerra. Conferiu aos relatos orais e populares idêntica importância atribuída às interpretações impressas ou eruditas, como bem salientou o já citado professor Roberto Ventura. Rigorosamente inovador, preocupou-se em dar voz aos vencidos, além de estudar o cotidiano daqueles homens e mulheres unidos em torno de um mesmo ideal.

Por fim, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, quero registrar a generosidade do grande historiador: consciente da importância e da riqueza do fantástico acervo documental que conseguiu juntar, em muitos e muitos anos de infatigável trabalho, optou, em 1983, por doar toda essa coleção à Universidade Federal da Bahia.

Por tudo isso é que se pode dizer que Canudos continua vivo.

Vive pela obra de José Calasans.

Vive pela biblioteca que Calasans conseguiu montar.

Era o que tinha a dizer. 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/06/2001 - Página 14315