Discurso durante a 92ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

TRANSCURSO, NO ULTIMO DIA 9, DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE LEOPOLDO PERES.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO, NO ULTIMO DIA 9, DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE LEOPOLDO PERES.
Publicação
Publicação no DSF de 15/08/2001 - Página 16568
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, LEOPOLDO PERES, POETA, ESCRITOR, EX-DEPUTADO, JORNALISTA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, IMPORTANCIA, CULTURA, POLITICA, ESTADO DO AMAZONAS (AM), BRASIL.
  • LEITURA, DEPOIMENTO, AUTORIA, PERICLES MORAES, ESCRITOR, HOMENAGEM, LEOPOLDO PERES, POETA, ESTADO DO AMAZONAS (AM).

            O SR. JEFFERSON PÉRES (Bloco/PDT - AM) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sem comemorações, em silêncio total - como é próprio da nossa desmemória -, transcorreu, no último dia 9, o centenário de nascimento de Leopoldo Péres, uma das mais eminentes figuras do cenário político/cultural do Amazonas na primeira metade do século passado.

            Diz a máxima popular que elogio em boca própria é vitupério. E elogiar um parente próximo é quase a mesma coisa. Ainda assim, não fujo ao dever de registrar a data natalícia do meu saudoso tio, irmão de meu pai. Faço-o, não pelo parentesco, mas para fazer justiça a quem, por todos os títulos, honrou a nossa terra.

            Será uma pena se vier a se esvair de todo a lembrança da vida de um homem que se sobrelevou aos demais, em seu tempo, por sua prodigiosa inteligência, que impressionou fundamente seus contemporâneos, desde os bancos escolares até sua morte, prematura, aos 47 anos de idade.

            Como se fora um predestinado, acostumou-se a estar entre os primeiros, em tudo, ao longo da sua breve e fecunda existência. Já no famoso colégio do professor José Chevalier, onde fez as primeiras letras, foram seus os primeiros lugares, em todas as séries, e na última logrou arrebatar as maiores notas em todas as disciplinas. Não foi diferente mais tarde, no curso de Direito, no qual foi tranqüilamente o primeiro colocado.

            Em suas atividades profissionais, políticas e literárias continuou fiel à sua vocação de vencedor. Advogado criminalista, dividiu com Waldemar Pedrosa uma banca famosa, e foi considerado, juntamente com Heliodoro Balbi e Araújo Filho, como o mais brilhante orador que até então passara pela tribuna do júri. Professor, era lembrado com embevecimento por seus ex-alunos, um dos quais, Arthur Virgílio Filho, me disse que suas aulas tinham sido as melhores que ouvira em sua vida de estudante.

            Escritor, tribuno, jornalista e poeta, conseguiu ser estrela de primeira grandeza num firmamento literário onde cintilavam astros da categoria de Péricles Moraes, Adriano Jorge e Huáscar de Figueiredo.

            Político, brilhou intensamente no desempenho dos dois mandatos eletivos que conquistou, o primeiro como Deputado Estadual, nos anos trinta, e o segundo como Deputado Federal, em cujo exercício faleceu. Neste último, deixou sua marca indelével, na forma do artigo da Constituição que destinava 3% da arrecadação federal à Amazônia, e que tantos benefícios trouxe à nossa região, inclusive, claro, ao Amazonas.

            Sem falar em sua generosidade e grandeza de espírito, infenso que era a mesquinharias próprias das almas pequenas que rastejam na mediocridade.

            Mas para não ficar apenas no meu suspeito testemunho, passo a transcrever, a seguir, trechos do depoimento do seu biógrafo, o também escritor Péricles Moraes, que assim se referiu ao biografado, com o ardor encomiástico ditado pelo afeto que os unia:

Ninguém mais autorizado do que eu mesmo para depor sobre essa grande vida. Tive o privilégio de acompanhá-la durante todos os seus estádios rumorosos, visionando-a por entre os painéis enublados do passado até o amargor dos seus derradeiros dias. Conheci o homem na intimidade, sabendo-lhe as preferências e adivinhando-lhe os recalques. Desde os bancos escolares, quando a sua precocidade provocava admiração, já se vaticinava que com o decorrer dos anos aquele arbusto frágil se transmudaria em árvore frondosa, opulenta de flores e de frutos. Os episódios efêmeros dos seus primeiros tempos de colégio estão descritos, embora disfarçando-lhe o nome, em um dos meus livros, quando, fixando-lhe os altibaixos da vida atormentada, esquematizei a biografia de José Chevalier, o maior educador que ainda passou pelo Amazonas. Revivi com emoção essa página antiga, fotografando uma das classes do Instituto Universitário, no momento em que Leopoldo Péres era chamado ao quadro negro para submeter-se a exame. Pela fama de suas aptidões intelectuais, os olhares da assistência convergiram curiosamente para o vulto tímido de um rapazelho de compleição franzina, nervoso e excitado, feições extremamente delicadas como as dos efebos de Holbein, aprumado numa jaleca cinzenta que lhe dançava no corpo esguio. Dir-se-ia um irmão gêmeo do Bolorec, o garoto aristocrático e malicioso do seminário dos padres jesuítas, da novela de Mirbeau. A sua vivacidade espiritual desnorteava mestres e condiscípulos. Dela se valia o diretor, quando em perigo os créditos pedagógicos do educandário. O direito de cometer um equívoco ou de naufragar nos escolhos de uma nota baixa a todos os colegas seria permitido, menos a ele, pois qualquer decesso importaria em comprometer a reputação do colégio. Dotado de surpreendente memória, assimilava as lições com pasmosa facilidade e dava quinaus em toda a classe. Sabia de cor os sonetos de Cruz e Sousa; e, certa vez, conseguiu reter as trinta e três estâncias de uma ode patriótica de Alberto de Oliveira, que ele declamara de ponta a ponta, numa noite festiva de solenidade, sob o espanto e as aclamações do auditório. Estudioso, metódico, infenso às delações, refratário às folganças estudantinas, não tolerava. remoques nem desperdiçava as horas de lazer, ressaltando entre as suas conquistas a de ter alcançado, ao encerrar-se o último ano letivo, a totalidade dos prêmios de honra nas disciplinas do programa. A despeito da simpatia coletiva que o cercava, sentia-se isolado, incompreendido, quase humilhado no contacto dos condiscípulos calaceiros e irreverentes. Depois, deixando de freqüentar assiduamente o Universitário, o perdi de vista por algum tempo. José Chevalier informou-me então que, havendo terminado os seus estudos de humanidades, Leopoldo pretendia ser bacharel "como toda gente", matriculando-se na Faculdade de Direito.

            E nesta outra passagem, na qual relata a angústia que viveu ao acompanhar, de longe, os últimos momentos do amigo:

A primeira notícia da extrema gravidade do estado de saúde de Leopoldo Péres, no Rio, recebi-a eu às 16 horas do dia 26 de Novembro de 1948, por intermédio do meu prezado Arnoldo Péres, um de seus irmãos diletíssimos, hoje Presidente do Superior Tribunal de Justiça do Amazonas. Chamando-me com urgência ao telefone, fazia-me saber o que estava ocorrendo naquele momento, reproduzindo-me textualmente as palavras lacônicas do telegrama que lhe chegara.

Não vos descrevo as agonias do meu abalo moral. Tive a antevisão prenunciadora de que ocorria qualquer coisa fatal e irremediável, sem que eu pudesse interferir direta e prontamente. Já por diversas vezes, de maneira fortuita, eu assistira em atitude passiva, mas tomado de desânimo e inquietação, ao processo de desenvolvimento das crises de hipertensão arterial que lhe violentavam o organismo. Em algumas delas, nada obstante os recursos médicos imediatos, julguei-o perdido. Estirado ao leito, o rosto lívido, os membros retesos e paralisados, inibido de articular qualquer palavra, o seu olhar voltava-se para mim como se pretendesse fazer-me uma confidência. Vendo-o neste estado, o meu sofrimento aumentava, transformando-se em angústia inenarrável. Eram horas silenciosas de aflição e desesperança, que me deixavam em pânico o sistema nervoso. Essas crises prolongavam-se por dias e noites, embora a sua robustez física, auxiliada pelo devotamento de Moura Tapajós, o seu médico assistente, se opusesse em contínuas reações às perfídias da enfermidade, pondo-o fora de perigo. Desta vez, todavia, a inferir-se pelos termos do telegrama, o caso se afigurava de indisfarçável gravidade, com a incidência de sintomas que revelavam a existência do derrame cerebral. A doença atingira-o em cheio, e logo no primeiro arranco quase o fulmina, precisamente no momento em que, na Câmara dos Deputados, no gabinete da Comissão da Justiça, defendia um parecer. Por enquanto, limitavam-se a esses breves informes os despachos telegráficos. Mas a ausência de novos comunicados alvoroçava as nossas inquietações. Lembro-me que Andrômaca, a minha esposa muito amada, com a dignidade e a nobreza do seu coração, solidarizando-se comigo, sentia também a tortura daqueles minutos indescritíveis. Já no começo da noite, quando eu esgotara todos os recursos humanos para acalmar as ansiedades do meu estado de espírito, recebo um comunicado urgentíssimo, a mim dirigido pessoalmente. Assinava-o Raul de Azevedo. O excelente amigo, com palavras confortadoras, punha-me ao corrente de tudo. Afirmava-me que, na verdade, a situação era gravíssima, sem ser desesperadora. Confiássemos na proficiência do corpo médico que o rodeava, no Hospital dos Servidores do Estado, para onde o conduziram logo após os primeiros cuidados de emergência. Essas palavras esclarecedoras, partindo embora de um amigo raro, não conseguiram tranqüilizar-me. Inconformado com a situação penosa, deliberei desta vez telegrafar à sua família, reclamando instantemente notícias mais pormenorizadas. Decerto, o apartamento nº 1004, do edifício à Av. Ruy Barbosa, em Botafogo, onde residiam, devia estar fechado, porque o rádio expresso ficou sem resposta. Pensei então, como última tentativa, em apelar para a velha amizade de Vieira de Alencar, que sobre ser um dos seus íntimos, a ele se ligara por laços de estreito parentesco. Eram cunhados, cresceram juntos, concluíram na mesma época os Cursos Jurídicos, afrontaram as mesmas adversidades, havendo de um para outro uma perfeita consonância de caracteres e sentimentos. Jamais lhe ouvi referir-se às virtudes do companheiro magnífico da mocidade sem estar possuído de grande emoção. Mas logo recordei-me que Vieira de Alencar, no momento em que a sua presença mais se fazia necessária no Rio, se encontrava nos Estados Unidos, na cidade de Nova Iorque, em comissão do Banco do Brasil. Elementos adversos, em conjura, tramavam contra os meus objetivos, excitando-me cruelmente a sensibilidade. Recorri de novo à bondade de Arnoldo Péres, que continuamente, pelo telefone internacional, estava em correspondência com os seus parentes. As notícias não se modificavam o seu estado de saúde melindrosíssimo permanecia estacionário, sem quase nenhuma esperança de salvação. Enclausurei-me no gabinete e, como se fosse um condenado, fiquei à espera do instante fatal. De quando em quando, morosamente, o carrilhão, indiferente ao vendaval de minha alma, anunciava que as horas se passavam, lentas, impassíveis, aterradoras, despertando-me do pesadelo para a realidade crucial do que estava acontecendo. Aquela expectativa de incerteza e de dúvida só servia para aumentar-me a inquietação. Eu considerava uma injustiça o epílogo desnorteante dessa existência na plenitude solar do seu fastígio, esplendente de clarões e apoteoses. Insurgia-me contra a idéia de submeter-me às determinações imperiosas da matéria, ameaçando de paralisar os ritmos do coração e as reações da sensibilidade desse homem que não tivera tempo de envelhecer, nem sequer nos dera ainda a medida de todas as formas fascinantes do seu espírito e do milagre luminoso de sua inteligência.

De repente, atroando no silêncio da noite, a campainha do telefone vibrou. Fiquei sucumbido, sem coragem de erguer-me da poltrona onde eu me afundara. Foi minha mulher quem atendeu. Mal me chegavam aos ouvidos as suas palavras repassadas de amargura e proferidas em surdina. Depois, já com a fisionomia transtornada, os seus olhos piedosos e compassivos voltaram-se para mim e revelaram-me tudo. Leopoldo Péres jazia na eternidade. O Amazonas acabara de perder o espírito mais fulgurante das suas últimas gerações, e com a morte desse homem que trouxe do berço o signo das inteligências privilegiadas, encerrava-se definitivamente o ciclo de maior esplendor das letras amazônicas.

            Com estas palavras de Péricles Moraes, encerro a modesta e comovida homenagem que ora presto a essa figura de escol, das maiores do nosso passado, infelizmente, como tantas outras, quase soterrada no esquecimento.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/08/2001 - Página 16568