Discurso durante a 95ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

COMENTARIOS AO ESTUDO SOLICITADO POR S.EXA. A CONSULTORIA LEGISLATIVA DO SENADO, SOBRE A DEFINIÇÃO DE QUEBRA DE DECORO PARLAMENTAR.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PFL - Partido da Frente Liberal/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
LEGISLATIVO.:
  • COMENTARIOS AO ESTUDO SOLICITADO POR S.EXA. A CONSULTORIA LEGISLATIVA DO SENADO, SOBRE A DEFINIÇÃO DE QUEBRA DE DECORO PARLAMENTAR.
Publicação
Publicação no DSF de 18/08/2001 - Página 17395
Assunto
Outros > LEGISLATIVO.
Indexação
  • ANALISE, ATUALIDADE, DENUNCIA, CORRUPÇÃO, CRISE, SENADO.
  • REGISTRO, NECESSIDADE, MANUTENÇÃO, ESTABILIDADE, SENADO, MOTIVO, CRISE, LEGISLATIVO, AUSENCIA, REPRESENTAÇÃO, POPULAÇÃO, PREJUIZO, DEMOCRACIA, POSSIBILIDADE, DITADURA.
  • LEITURA, ESTUDO, AUTORIA, CONSULTORIA, SENADO, ANALISE, ESCLARECIMENTOS, DECORO PARLAMENTAR, NORMAS, COMPORTAMENTO, COORDENAÇÃO, ATIVIDADE, ETICA, CONGRESSISTA.
  • REGISTRO, CONSELHO, ETICA, SENADO, FUNÇÃO, APURAÇÃO, DENUNCIA, DESRESPEITO, DECORO PARLAMENTAR, RISCOS, PERDA, MANDATO PARLAMENTAR.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PFL - RR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nos últimos tempos, aliás desde o ano passado, a grande mídia nacional tem ocupado quase a maior parte do seu espaço com um enfoque sobre a questão da quebra do decoro parlamentar, portanto com uma acusação sistemática de Parlamentares, sejam Deputados Federais ou Senadores.

No caso do Senado, o chamado decoro parlamentar já levou à cassação de um Senador e à renúncia de dois outros Senadores. E ficamos a indagar: o que é exatamente esse decoro parlamentar? O que é realmente essa conduta que deve ser condenada de maneira tão sistemática pela imprensa, a responsável por formar a opinião pública e capaz de desacreditar o Congresso Nacional, o Parlamento, a representação popular?

É interessante que pouquíssimos editorialistas tenham-se preocupado em fazer uma análise mais profunda desse tema, no que tange ao aspecto da democracia e da estabilidade das instituições, uma vez que Parlamento fraco é caminho aberto para uma ditadura. E ditadura significa fechamento do Parlamento, cerceamento da imprensa e, portanto, quebra do clima de liberdade.

Precisamos preocupar-nos - sem fazer aqui a defesa da intocabilidade de quem quer que seja como Parlamentar - em analisar muito mais amplamente o aspecto da instituição democrática garantidora maior da democracia, que é o Parlamento.

O outro pilar dessa democracia é o Judiciário. Não existe ditadura com Parlamento funcionando. Não existe ditadura com Judiciário livre. É importante que nos debrucemos sobre isso.

            Justamente preocupado em entender bem o que é decorro parlamentar e o que pode levar à cassação do mandato de um Parlamentar, encomendei à Consultoria Legislativa do Senado um estudo sobre esse tema. E recebi um estudo da lavra do Consultor Paulo Henrique Soares, que quero ler, Sr. Presidente, porque entendo ser uma matéria de relevância para o momento que vivemos. Diz ele:

Preliminarmente, devemos observar que o conceito de decorro parlamentar é de difícil objetivação, e, por essa razão, considerações a respeito são justificadas predominantemente no âmbito do juízo de valor. Muitas vezes, prevalece na avaliação de casos de possível quebra de decoro parlamentar a captação do sentimento de indignação que provém da sociedade, estimulada pelos formadores de opinião.

A matéria atinente ao decoro parlamentar está disciplinada no Regimento Interno das Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional e se aplica aos Deputados e Senadores no exercício do mandato parlamentar, em cumprimento ao que dispõe expressamente a Constituição Federal no seu Art. 55, I, §§ 1º e 2º. Também as constituições estaduais e as leis orgânicas municipais e do Distrito Federal devem observar a Constituição Federal, para submeter, também, os membros das Assembléias Legislativa e Câmaras Municipais e Distrital às regras de comportamento parlamentar que são exigidas aos membros do Congresso Nacional.

Também podem ser adotadas resoluções no âmbito da Casa Legislativa, para tratar especificamente do assunto. Assim, o Senado Federal aplica as disposições da Resolução nº 20, de 1993 [veja bem, Sr. Presidente, essa resolução instituiu o Código de Ética e Decoro Parlamentar], para apurar, mediante o seu Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, as denúncias ou representações contra Senadores e, se for o caso, aplicar as medidas disciplinares cabíveis ao parlamentar infrator ou encaminhar à decisão da Mesa Diretora, quando se tratar de suspensão ou perda de mandato.

Já a Câmara dos Deputados está em via de aprovar resolução com o mesmo objetivo da citada Resolução nº 20, de 1993, do Senado Federal [portanto, o Senado Federal, desde 1993, já tem um Código de Ética e Decoro Parlamentar, e a Câmara dos Deputados está, agora, tratando de aprovar, também, um código nesse sentido], não obstante o seu Regimento Interno, como o do Senado Federal, já disponha sobre o assunto.

No âmbito do Senado Federal, ao qual pretendemos concentrar a nossa análise, as atribuições do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar estão estabelecidas pela mencionada Resolução nº 20, de 1993, que fixa as regras a serem observadas pelo Senador e reproduz, em parte, as normas contidas no art. 55 da Constituição: os seus deveres fundamentais (art. 2º), as suas vedações constitucionais (arts. 3º a 5º), as suas incompatibilidades com a ética e o decoro parlamentar (art. 5º), as medidas disciplinares a que estão sujeitos (arts. 7º a 10), inclusive a perda de mandato (art. 11), e sobre o processo disciplinar (art. 12 a 21) e o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar (arts. 22 a 25).

O art. 55 da Constituição Federal prevê os casos em que o Senador ou Deputado poderá perder o mandato, e somente nesses casos - em numerus clausus, portanto -, entre os quais se incluem o abuso de prerrogativas e a quebra do decoro parlamentar (inciso II, § 1º) que, necessariamente, decorrem do exercício do mandato parlamentar, neste caso, o de Senador, conforme podemos concluir do disposto no art. 5º da Resolução nº 20, de 1993, verbis:

Art. 5º. Consideram-se incompatíveis com a ética e o decoro parlamentar:

I - o abuso das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional;

II - a percepção de vantagens indevidas, tais como doações, benefícios ou cortesia de empresas, grupos econômicos ou autoridades públicas, ressalvados brindes sem valor econômico;

III - a prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes.

.............................................................................................

A Resolução nº 20/93, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar, prevê que as denúncias serão apuradas mediante providências previstas no seu art. 15. Devemos entender que não se trata de fazer devassa na vida do Senador antes de assumir o seu mandato, pois essa avaliação deve ser feita, em primeiro lugar, pelo eleitor que teve a oportunidade de escolhê-lo como um dos três representantes de seu Estado (ou do Distrito Federal) e, em segundo lugar, em igualdade de condição com os demais cidadãos, pelo Poder Judiciário, que deve examinar a sua conduta, se for indiciado em processo judicial, sendo-lhe assegurada, como manda a lei, a ampla defesa.

Entendemos, assim, que o Código de Ética do Senador - da mesma maneira que se dá com o Código de Ética do Advogado, do Médico, do Servidor Público e de outras categorias profissionais - não pretende disciplinar aspectos do comportamento pessoal que não tenham correlação com as atribuições do mandato eletivo de Senador, devendo, por conseguinte, limitar-se à sua função de estabelecer as regras de convivência entre os membros da Casa e demais pessoas e a proibição de atividades incompatíveis com o exercício do cargo.

Demais, não haveria necessidade de Código de Ética para prever que ao Senador é vedada a prática de crime, pois a lei penal já os tipifica e prevê punição para o infrator, seja ele quem for. Somente a prática de ilegalidade que tenha relação com o exercício do mandato de Senador é objeto de apuração e punição pelo Código de Ética.

De outro lado, é evidente que a finalidade derradeira do Código de Ética é assegurar o cumprimento de regras de comportamento pelos Senadores, no exercício do mandato, que preserve o respeito e a credibilidade do Senado, evitando-se, assim, que se fomentem sentimentos populares contra a democracia representativa.

Em conclusão, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar não deve analisar denúncias sobre Senadores que não tenham relação com o exercício do mandato, em razão de não haver, a nosso ver, fundamentação expressa na Resolução nº 20/93 e também no Regimento Interno do Senado Federal, não podendo ser considerada como quebra de decoro parlamentar denúncias sobre fatos que envolvem o Senador, quando não estava sequer diplomado para exercer o seu mandato.

Por outro lado, isso não exime o Conselho de encaminhar ao Ministério Público todas as denúncias dessa natureza (sobre fatos ocorridos anteriormente ao exercício do mandato), para examinar a sua procedência e tomar as medidas judiciais. É muito importante que se frise isto: não significa que o Senador esteja isento de pagar por erros e crimes cometidos anterior ao seu mandato, mas não é competência do Conselho de Ética, que pode apenas apurar e encaminhar ao Ministério Público.

Ademais, o referido Conselho prevê em seu art. 19 que as apurações de fatos e de responsabilidade previstos neste Código poderão, quando a sua natureza assim o exigir, ser solicitadas ao Ministério Público ou às autoridades policiais, por intermédio da Mesa do Senado, ...

Desse modo, entendemos que cabe ao Conselho tratar somente de denúncia que se refira a fatos ocorridos durante o exercício do mandato, conforme podemos concluir do exame das normas previstas no Regimento Interno do Senado Federal, na Resolução nº 20/93 e na Resolução nº 17/93, que trata da Corregedoria Parlamentar.

No entanto, devemos observar os limites do poder disciplinar do Senado Federal ao apurar as acusações de falta de decoro parlamentar, para que não se estabeleça a confusão entre a acusação da prática de delitos anteriores ao exercício do mandato, que devem ser apurados pelo Poder Judiciário, e acusação de comportamento indecoroso do parlamentar que depõe contra a credibilidade da instituição a qual integra. Desse modo, à luz da referida resolução, cujo objetivo é regrar o comportamento do Senador com vistas a preservar a imagem do Senado Federal diante da sociedade, entendemos não haver norma expressa que possamos invocar para tratar dos atos praticados pelo Senador antes de sua diplomação ou posse.

Entendemos que o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal não pode se arvorar em tribunal inquisitório como instância superior e decisória para homologar a legitimidade do mandato obtido nas urnas, de acordo com a legislação eleitoral. Assim, fatos atribuídos a parlamentares antes de sua diplomação só devem ser analisados por este Conselho quando houver relação direta do fato delituoso com a obtenção e o exercício do mandato do infrator, de modo que haja constatação de fraude da vontade do eleitor ou dano irreparável ao princípio da representação popular. Pode ser citado, como exemplo, o homicídio do titular do mandato a mando do suplente.

O mandato popular é protegido pela Constituição e qualquer limitação a seu exercício deve estar necessariamente expressa no texto constitucional.

O nosso sistema constitucional fundamenta-se no Estado Democrático de Direito, que se originou do Estado liberal, tendo como característica principal o respeito aos direitos e garantias individuais, dos quais sobressaem-se as liberdades políticas e, por essa razão, nenhuma restrição de direito pode ser estabelecida se não estiver expressamente prevista no Texto Constitucional.

Por outro lado, a independência dos Poderes, prevista no art. 2º da Constituição, pressupõe que o Poder Legislativo deve estabelecer suas normas de funcionamento interno, inclusive as regras a serem observadas pelos seus membros, desde que não haja restrição ao exercício do mandato a não ser nas situações previstas na própria Constituição.

Desse modo, os casos de perda de mandato não podem extravasar os limites previstos na Constituição. Já outras punições, como a advertência e a censura verbal ou escrita ao parlamentar, podem ser estabelecidas pelo Regimento Interno da Casa a qual o parlamentar integra, em razão de sua aplicação não alterar a composição numérica da representação parlamentar e, conseqüentemente, sobre a escolha que o eleitor fez no ato de votar. Por essa razão, temos dúvidas quanto à constitucionalidade da punição de perda temporária do exercício do mandato aplicável ao Senador que incorrer nas práticas previstas no art. 10 do Código de Ética e Decoro Parlamentar, pois a Constituição não a prevê. Todavia, a Constituição Federal prevê a possibilidade de perda ou suspensão dos direitos políticos nos casos previstos no art. 15, para todos os cidadãos detentores ou não de mandato eletivo.

Quando se tratar de fatos pretéritos, exceto os casos análogos ao exemplo acima citado, deve o Conselho aguardar a condenação do Poder Judiciário, de modo a evitar que sua decisão seja entendida como vitória política de setores partidários ou de segmentos sociais que defendam causas próprias, e não como medidas de preservação da legitimidade e autoridade do Poder Legislativo.

Assim, a apuração sobre quebra de decoro parlamentar deve-se limitar aos fatos ocorridos após a diplomação, mormente após a posse no mandato de Senador, não obstante não lhe seja expressamente vedado pelas normas regimentais examinar se a vida pregressa do Senador não prejudica o exercício satisfatório do mandato e a imagem da Casa. Todavia, a circunstância deve ser vista em caráter excepcional, em face de evidente demonstração de prejuízos à imagem do Senado.

Acusações não comprovadas ou notícias “plantadas” na imprensa por adversários políticos não podem constituir elementos essenciais para instruir qualquer decisão a respeito do comportamento do Senador. Somente fatos objetivos e pontuais, que estejam previstos no Regimento Interno ou em resoluções das Casas Legislativas, devem ser devidamente apuradas, sob pena de constituir-se em instrumento de manipulação partidária ou eleitoral.

Por conseguinte, todas as denúncias que se refiram a alegados ilícitos praticados antes da posse e, em alguns casos, antes da diplomação, devem ser encaminhadas ao Ministério Público Federal, devendo ser examinados interna corporis somente os fatos ocorridos durante o exercício do mandato parlamentar, tendo em vista que, como bem o faz o Código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal, não trata de eventos que possam ter ocorrido antes da obtenção do mandato. Todavia, a condenação criminal durante o exercício do mandato, em sentença transitada em julgado (art. 55, VI), deve implicar a perda do mandato; o mesmo se dá no caso de suspensão ou perda de direitos políticos. (art. 55, IV).

A nosso ver, não há como concluir que denúncias sobre fatos do passado de Senadores constituem procedimentos que possam ser declarados incompatíveis com o decoro parlamentar, antes que esteja no exercício do mandato o Senador e seja comprovado, de modo insofismável e em definitivo, o envolvimento do acusado como autor ou beneficiário da prática do delito que lhe foi atribuído.

Todavia, reafirmamos a ausência de definição, tanto na legislação e jurisprudência quanto na doutrina, do conceito de decoro parlamentar, o que torna difícil extrair conclusões a respeito que não sejam de mero juízo de valor. Desse modo, prevalece na avaliação de casos de possível quebra de decoro parlamentar a captação do sentimento de indignação que provém da sociedade, estimulada ou não pelos formadores de opinião.

Diante do exposto, cabe à maioria dos membros da Casa Legislativa decidir, caso a caso, se o parlamentar acusado de quebra do decoro parlamentar praticou ato que o torne indigno de conviver com seus pares, em razão de seu comportamento extravasar os limites de sua pessoa para respingar na instituição que integra, resguardada, no entanto, a ampla defesa que deverá lhe ser proporcionada no decorrer do processo legal contra si devidamente instaurado.

            Sr. Presidente, esse trabalho, repito, da lavra do consultor Paulo Henrique Soares, é muito atual e merece realmente ser analisado e discutido.

Este momento histórico que o Brasil vive é importante pois é um momento de depuração das instituições. E, entre as instituições - Executivo, Legislativo, Judiciário -, o Legislativo é, disparadamente, o Poder mais transparente. Isso porque todas as reuniões de qualquer comissão do Senado ou da Câmara são transmitidas diretamente pela TV Senado, pela TV Câmara, pela Rádio Senado, pela Rádio Câmara e publicadas nos seus jornais respectivos, fora a cobertura nacional da mídia em geral.

E o Senado não só passou a ser, de pouco tempo para cá, diga-se de passagem, uma instituição a que todos os cidadãos têm acesso, a exemplo do telefone 0800, para criticar, sugerir e fazer perguntas aos Parlamentares, como também tem sido rigoroso na punição de seus membros. Um senador já foi cassado e dois tiveram que renunciar, sem entrar no mérito da questão, até pela análise que faz o Consultor Legislativo.

Ao encerrar o meu pronunciamento, gostaria de ressaltar que não estou aqui fazendo a defesa de qualquer Senador nem dizendo que algum Senador deva ter o privilégio de ficar acima da lei. Entendo que qualquer denúncia deve ser apurada, mas, se queremos manter uma democracia, efetivamente, devemo-nos subordinar aos rituais da lei. Se há denúncia, vamos apurá-la. Se há comprovação da denúncia, vamos punir quem infringiu a lei, mas não vamos fazer desse momento um verdadeiro tribunal de inquisição, em que talvez, ao final, os inquisidores ou estimuladores da inquisição, assim como todos nós, brasileiros, as vítimas. Porque, enfraquecendo os principais pilares da democracia, o Legislativo e o Judiciário, nós estaríamos como que poupando o Poder Executivo, que é o único Poder que sobrevive e comanda as ditaduras.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/08/2001 - Página 17395