Discurso durante a 113ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

NECESSIDADE DE AÇÕES OBJETIVAS PARA O COMBATE A SECA NO NORDESTE, COMO POLITICAS PUBLICAS E UM PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL INTEGRADO.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CALAMIDADE PUBLICA.:
  • NECESSIDADE DE AÇÕES OBJETIVAS PARA O COMBATE A SECA NO NORDESTE, COMO POLITICAS PUBLICAS E UM PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL INTEGRADO.
Publicação
Publicação no DSF de 15/09/2001 - Página 22082
Assunto
Outros > CALAMIDADE PUBLICA.
Indexação
  • REGISTRO, RECEBIMENTO, CARTA, AUTORIA, RAIMUNDO DINIZ DE MESQUITA, ADVOGADO, ANALISE, SECA, FOME, REGIÃO NORDESTE, INEFICACIA, ATUAÇÃO, GOVERNO, NECESSIDADE, SOLIDARIEDADE, PLANEJAMENTO, SOLUÇÃO, PROBLEMA.
  • ANALISE, PROJETO, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, FALTA, DECISÃO, IMPLEMENTAÇÃO, DEFESA, PACTO, REESTRUTURAÇÃO, RECURSOS HIDRICOS, REGIÃO NORDESTE.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há alguns dias, tive a grata surpresa de receber carta de um velho amigo e conterrâneo, Dr. Raimundo Diniz de Mesquita. Nesses tempos de correio eletrônico e celular, a comunicação epistolar tornou-se verdadeiramente insólita. Mas não posso negar que, para mim, ainda guarda aquela espécie de alegria secreta, mesmo que, agora, acompanhada de certa nostalgia.

            Entretanto, a correspondência em questão não trazia exatamente boas notícias. Na verdade, não trazia notícias. Tratava-se de um veemente e indignado desabafo. Nas sete laudas manuscritas em caligrafia miúda, o amigo e colega manifestou o seu sentimento de desolação e seu anseio de solidariedade pela lastimável situação do Nordeste brasileiro, devastado pela fome e pela sede.

            Com argumentação irrespondível e estilo impecável, enumerou ele as sucessivas e fracassadas tentativas governamentais de resolver o problema da seca, historiou as soluções encontradas por outros povos para problema idêntico (desde os aquedutos romanos até a dessalinização do mar do Caribe, em Aruba), citou o sempre oportuno Euclides da Cunha e o atual Roberto Brandt, em seu relatório sobre a pobreza encaminhado ao Banco Mundial.

            Sob o ponto de vista do conteúdo, não há nada de novo no seu relato. São já por demais conhecidos os números e os fatos da miséria nordestina. Atualizam-se as estatísticas, sem que o problema sofra um verdadeiro “ataque frontal”, e a situação permanece cruelmente inalterável, como se cumprisse uma trágica sina.

            O que há de notável no texto é o sentimento. Em primeiro lugar, o de saudável indignação, seguido da solidariedade, perpassadas ambas por tímida esperança. A indignação se refere à insensibilidade do Poder Público em relação ao problema. A solidariedade se traduz na necessidade de envolvimento de todos os brasileiros, não só os da região afetada, na busca de soluções.

            Na verdade, a situação do Nordeste brasileiro parece-me um produto, antecipado e permanente, do “realismo fantástico”, ou “realismo mágico”, aquela manifestação literária surgida na década 60, que explodiu no mercado editorial a partir dos anos 70, por intermédio de romancistas latino-americanos, como Jorge Luís Borges, Garcia Marques, Júlio Cortázar, Ernesto Sábato, Carlos Fuentes e tantos outros. De comum entre esses autores existe uma percepção de que a realidade é maior, mais complexa e mais contraditória do que as “versões oficiais” que dela circulam por aí.

            Assim, há uma cidade chamada Macondo, em Cem Anos de Solidão, onde nunca pára de chover. No Nordeste, nunca chove. É de certa forma inexato falar sobre a seca. Embora possa ser considerado um fenômeno cíclico, recorrente, o próprio passar do tempo e as mudanças sociais e históricas fazem com que a seca vá ficando personalizada cada vez que ocorre, diferindo das anteriores em intensidade e em conseqüências.

            É, no dizer de Euclides da Cunha, o “único fato de toda nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão”. Só no século XVII, o autor distingue seis grandes secas: 1603, 1605/1607, 1614, 1645, 1652 e 1692.

            Falar sobre a seca, portanto, é uma abstração. Há momentos pitorescos, como o episódio da importação de dromedários para tentar aclimatá-los no sertão cearense, em 1859. Há também a tragédia bíblica: pestes de gafanhotos, de cascavéis, de ratos; surtos e epidemias de varíola, de sarampo, de peste bubônica.

            Episódios de canibalismo, fanatismo religioso e prostituição de crianças misturam-se a informações de relatórios de Governo, sugerindo a importação de trabalhadores hindus, egípcios e japoneses, “já afeitos à cultura de irrigação”.

            Durante a seca de 1915, que Raquel de Queiroz registrou em O Quinze, as elites brasileiras só tinham olhos para a guerra da Europa, tendo sido criados, inclusive, “comitês para a adoção de órfãos belgas”.

            Há notícia de um prefeito que, ao receber o Ministro do Interior em plena seca, “mandou regar a estrada com a água de dois caminhões-pipas, que serviam precariamente à população, para diminuir o desconforto da comitiva”.

            Srªs e Srs. Senadores, é a visão de um Brasil aterrorizante, com protagonistas que exercem a inocente crueldade dos personagens de Garcia Marquez. É a pátria do estranho, do bizarro, do inesperado. Mas nós sabemos também que é possível e útil extrair uma conexão lógica entre tantos problemas e elementos absurdos.

            A seca do Nordeste não é um flagelo incompreensível. O que acontece ali faz sentido e tem causas, nada mágicas, mesmo que, às vezes, fantásticas: o latifúndio improdutivo, o monopólio da água, a falta de educação formal dos sertanejos, o cultivo de produtos que exigem muita água, o baixo nível tecnológico das pequenas propriedades, o tipo de solo que dificulta o armazenamento de água, a excessiva evaporação, o minifúndio, e tantas outras que o País ainda não resolveu.

            O quadro da seca do Nordeste permanece quase inalterado. Como ocorre ciclicamente, o apelo da fome parte do semi-árido nordestino e ecoa no Sudeste. Este ano, ele é amplificado pelos problemas suplementares causados pela perspectiva do apagão, no auge da crise de escassez de eletricidade, provocada pelo mesmo fenômeno climático que origina as secas, a falta de água nas represas que movimentam as turbinas das usinas hidrelétricas. O Governo responde com a providência, também sazonal e secular, de abrir frentes de emergência e distribuir cestas básicas aos pobres.

            A seca deve deixar cerca de 770 dos 1.785 Municípios da Região em estado de calamidade pública nos próximos meses, se não chover. E não vai chover, segundo a previsão meteorológica dos técnicos. A população do sertão vai ficar sem luz, sem água e dependerá do Governo para comer. A economia dos pequenos agricultores entrou em colapso. No semi-árido, entre 70% e 80% das culturas estão perdidas. As cenas dos flagelados disputando cestas básicas e correndo atrás do carro-pipa voltam a ser cotidianas. Os trabalhadores rurais estão intensificando o “pedágio da fome” e os saques nas estradas federais e estaduais. Muitas pessoas participam das “intervenções”. Munidas de machados e foices, elas bloqueiam rodovias com pedras e toras de madeira. O principal alvo são caminhões-baú que transportam cargas de alimentos.

            Enquanto nada é feito para acabar de vez com os problemas enfrentados com a estiagem no Nordeste, a solução para o nordestino continua sendo a mesma de 150 anos atrás: a migração. Vivendo em condições subumanas, sobrou aos nordestinos que permaneceram a insalubridade de águas contaminadas, que mataram mais de 50 mil crianças, somente vitimadas pela diarréia, em 1998.

            Não há qualquer ação definitiva em andamento, e não se fala mais da transposição do rio São Francisco. É certo que o projeto não iria resolver, como num passe de mágica, todos os problemas do Nordeste, acumulados ao longo de séculos de seca, fome e miséria. Mas traria uma nova perspectiva de vida à população, já descrente da transformação de sua própria história, matando a sede e a fome de milhares de pessoas.

            Datam de 1852 os primeiros estudos de transposição das águas do rio São Francisco para as áreas castigadas pela seca. Solicitado ainda no Governo de Dom Pedro II, o chamado Projeto São Francisco jamais saiu do papel, mesmo sendo considerado, já naquela época, a redenção para o Nordeste. Nesses 150 anos, os estudos técnicos se aprimoraram. Foram criados grupos de trabalho que analisaram não apenas as necessidades das áreas mais deficitárias, mas também a sua viabilidade técnico-econômica, o impacto ambiental provocado pela transposição.

            Nos últimos anos, a proposta de transposição do São Francisco tomou conta da mídia. As discussões neste Congresso foram acaloradas. No entanto, apesar da polêmica, o projeto se encontra engavetado, em razão da falta de decisão política determinando o início das obras.

            É desestimulante analisar o ciclo da seca e suas conseqüências. Ela, há mais de 100 anos, é conhecida, já mereceu debates intermináveis, estudos voltados para a sua solução foram realizados em grande quantidade. Portanto, não se apresenta com qualquer aspecto de surpresa, a não ser pelo seu grau de intensidade.

            Enfrentar o drama da seca, como todos sabemos, não pode ser obra da demagogia nem terá solução a curto prazo. Para se implantarem projetos definitivos de reestruturação de recursos hídricos no Nordeste serão necessários vários anos de investimentos contínuos e bom gerenciamento. Em outras palavras, necessita-se de um pacto que não sofra descontinuidade em razão da alteração do comando na política nacional. Só com essa determinação poderíamos destruir os pilares da indústria da seca, abrindo uma nova perspectiva de vida para os mais de 40 milhões de nordestinos.

            Há previsões de especialistas de que a seca no Nordeste pode se prolongar até 2005 ou 2007. É a crônica da tragédia anunciada. E, rigorosamente, nada de relevante está sendo feito, além das chamadas medidas emergenciais. Para voltarmos ao paralelo com o “realismo fantástico”, são “Cem anos de emergência”.

            Se não tenho boas novas para anunciar posso, entretanto, emprestar minha voz e subir a esta tribuna, quantas vezes se façam necessárias, para reclamar do Governo políticas públicas para o Nordeste, associadas a um programa sólido e desenvolvimento regional integrado.

            É por essa razão que, ao vir a esta tribuna, sendo homem do Norte, entendo por que a eminente Senadora Marluce Pinto me cedeu, juntamente com o eminente Senador Moreira Mendes, que representa Rondônia, o privilégio de ocupar a tribuna antes de S. Exªs. É porque tanto um quanto o outro conhecem o problema, não por ouvirem dizer, mas porque o sentem na pele, pelas suas origens, sobretudo quem preside esta sessão. E é bom verificar que, com um ponto ali, um tijolo acolá, podemos todos alavancar a idéia de que o Nordeste não está sozinho nem é enteado da Nação. Não é por terem nascido naquela Região que, no cartório da cidadania, o registro dos nordestinos vale menos do que o daqueles que nasceram no Sul do País.

            Concluo, Srª Presidente, com os meus agradecimentos a V. Exª pela concessão do lugar, e o faço dizendo: é pouco, diante da enormidade da tragédia que todos nós reconhecemos, mas é absolutamente imprescindível que não silenciemos. Que continuemos, como o advogado Raimundo Diniz de Mesquita, a manifestar nossa indignação e desconforto diante desse fato que é, sem dúvida, o capítulo mais dramático da nossa realidade.

            Obrigado aos meus eminentes Colegas que me honraram com a sua audiência.


            Modelo15/3/243:34



Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/09/2001 - Página 22082