Discurso durante a 113ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES A VIOLENCIA DOS ATENTADOS OCORRIDOS NOS EUA.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • CONSIDERAÇÕES A VIOLENCIA DOS ATENTADOS OCORRIDOS NOS EUA.
Aparteantes
Romero Jucá.
Publicação
Publicação no DSF de 15/09/2001 - Página 22115
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, DESENVOLVIMENTO, CRENÇA RELIGIOSA, HISTORIA, MUNDO, GRAVIDADE, IDEOLOGIA, LIBERALISMO, EFEITO, PREVALENCIA, POTENCIA, ECONOMIA, EXERCITO, OMISSÃO, LUTA, CONSOLIDAÇÃO, JUSTIÇA, PAZ, TOLERANCIA, AMBITO INTERNACIONAL.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Senadora Marluce Pinto, Srªs e Srs. Senadores, creio que é também obrigação nossa, como Senadores brasileiros, tecer comentários a respeito desse triste e trágico episódio recente ocorrido nos Estados Unidos.

            Antes de vir a esta tribuna, eu pensava em dois livros importantes cuja leitura talvez ajude muito a explicar ou a tentar entender o que está ocorrendo neste início do século XXI.

            Ontem, mencionavam alguns jornais que provavelmente essa guerra que está sendo travada, cujos primeiros mortos já estão aparecendo e os primeiros mártires já estão na tela das televisões do mundo inteiro, seria o tipo de guerra do século XXI. Não concordo. Penso que essa é a típica guerra do século XX.

            Ocorria me lembrar de um livro de Eric Hobsbawn, um dos maiores historiadores marxistas da nossa era, intitulado A Era dos Extremos, uma leitura obrigatória para quem quer entender o século XX e, talvez, também entender o que está acontecendo nesse início do século XXI. Nessa obra o autor explica claramente que, em nenhuma outra época, em nenhuma outro momento da vida humana sobre a terra, em nenhum outro período da História, ocorreram guerras causadas por sistemas de crenças, com tantas mortes, com tanta destruição, com tanta violência como as ocorridas no século XX.

            Há um período que ele chama de “o breve século XX”, que vai da Primeira Guerra Mundial, em 1914, até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Nesses quase 70 anos, ocorreram mais destruições e mortes do que em qualquer outra época da História da humanidade em razão de conflitos entre sistemas de crenças.

            Ocorre-me também lembrar um autor mexicano, cujo nome a minha péssima memória não me ajuda a lembrar. É um jovem escritor mexicano, cujo livro só pude adquirir por via da Internet, uma vez que não existe nas livrarias brasileiras, intitulado Materia Dispuesta, que li há alguns meses. Nesse livro, o escritor comenta ou analisa o comportamento do seu pai, um típico homem dos meados do século XX, completamente subordinado e submisso, que só organiza a sua vida mediante um sistema de crenças, ou seja, para tudo ele tem uma construção ideológica. Matéria Dispuesta é um livro extraordinário e é até uma injustiça e uma falha imperdoável minha não lembrar o nome do seu autor.

            O autor narra todo o livro a partir da sua infância e adolescência. Seu pai o levava para passear de carro, provavelmente no início dos anos 70, quando ele ainda era criança. E o pai o utilizava como pretexto para sair de casa. O pai encontrava sempre uma razão ideológica, muito bem articulada, muito bem construída, como mexicano, para ter ódio, por exemplo, de um outdoor onde havia publicidade da Coca-Cola.

            Para ter ódio da Coca-Cola, o pai dele tinha uma explicação ideológica extraordinária. O que ele não entendia é como o pai não tinha explicação, por exemplo, para deixar a mãe em casa, lavando a louça, limpando a casa, sofridamente, para pegar o carro, deixar o filho brincando na praça e ir visitar a amante. Para isso o pai não tinha nenhuma explicação ideológica. Ele disse: “O meu pai era o típico homem do séc. XX”.

            Este é o tipo de questão que está em conflito, na minha opinião: o dos sistemas de crenças.

            Em Materia Dispuesta, fica muito clara a enorme ojeriza, o enorme repúdio desse jovem escritor, tipicamente dos anos 80 e do final do séc. XX, tipicamente um pensador, escritor e literato desses tempos modernos, pelos excessos de crenças, de ideologias e de construções artificiais de sistemas de idéias que vigoraram no séc. XX. Ele claramente nos encaminha para entender que as construções de sistemas de idéias nada mais são que construções ideológicas de sistemas de poder.

            Não é por acaso que me ocorre também a lembrança de um jovem morto no final do séc. XX, ainda nos anos 80, chamado John Lennon, que escreveu a canção Imagine, que diz: “Imaginem todo o povo sem religiões, sem nações, sem fronteiras” - portanto, sem guerras, sem mortes, sem destruição. Ele diz: “Imagine all the people living life in peace”, que, em português, que dizer “imaginem todas as pessoas vivendo em paz”.

            Na verdade, o que John Lennon queria dizer é o que está em Materia Dispuesta e é o que talvez esteja em Eric Hobsbawn. O que está lá é algo claro: conflitos criados por apegos a sistemas de crenças geram sistemas de morte, porque esses sistemas de crença não são sistemas de benefício da humanidade e da paz, mas são de benefício do poder, do controle coletivo, da hegemonia de grupos, da prevalência da força. E talvez seja essa toda a questão que está por trás dos aviões que se estatelaram contra as torres de Nova Iorque.

            O que John Lennon queria, o que o livro Materia Dispuesta quer e o que talvez Eric Hobsbawn também queira demonstrar é que o séc. XX foi o século da intolerância, e, portanto, no século da intolerância, não pode haver paz, porque não há capacidade, não há nenhum desejo, não há nenhuma disposição em se abrir mão de sistemas fechados de crenças, de sistemas ideológicos radicalizados e fechados. É o desprezo pela vida multicultural, a não aceitação da tolerância religiosa e o repúdio à convivência ideológica, que, muitas vezes, aparecem também traduzidos sob a forma de um aparente discurso pacifista.

            O Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, logo após os atentados, fazia uma oração aparentemente pacífica, em que dizia: “Estou preparado para defender a liberdade”. Ele partia do pressuposto de que tinha como dever defender o seu sistema de crenças contra uma outra construção ideológica que, na verdade, é uma construção de poder que leva à prática dos atentados, do terrorismo, da violência, da destruição, da morte, como ocorreu e como tem ocorrido no mundo: pequenos atentados em que morrem poucas pessoas, mas em que a violência humana é a mesma. Não é o número de pessoas que caracteriza a barbárie. O que caracteriza a barbárie é a disposição de matar inocentes, seja um inocente, sejam milhares deles.

            Parece-me muito claro que é absolutamente inequívoco se interpretar que esses grupos ou essas tendências da nossa sociedade, como ela se desenha neste início de séc. XXI, não estão dispostos a abrir mão dos seus sistemas de crença.

            De um lado, o liberalismo filosófico e econômico, que, hoje, se chama de neoliberalismo, é supostamente um regime de absoluta liberdade individual, em que o indivíduo aceita que cada um tem liberdade para ser aquilo que quiser e para viver plenamente a sua individualidade. No entanto, num sistema desse tipo, garante-se que o melhor prevaleça, que o mais forte vença, que o mais bem dotado se imponha. Esse é um regime onde os fracos não têm vez, onde os menos dotados, os menos equipados, os menos inteligentes, os menos culturalmente fortalecidos não têm vez. Esse é um sistema até natural, pois, desde que existe o ser humano sobre a face da Terra, a hierarquia animal tem sido assim. Essa é a hierarquia da cadeia alimentar, ou seja, o mais forte, o melhor, o mais poderoso se impõe. Quanto mais liberdade para que cada um seja aquilo que é, mais o melhor, o mais forte, o mais poderoso vai se impor. Portanto, esse não é um mundo para os fracos. Isso pode ser natural, pode obedecer a uma cadeia histórica da hierarquia animal e à cadeia alimentar biologicamente estabelecida, mas não é justo. É natural, mas não é justo.

            Quando o Presidente George W. Bush diz que vai defender esse sistema de crenças, ele está defendendo essa construção ideológica onde o melhor prevalece, mas há injustiça com quem não é o melhor.

            Nas colinas de Golan, na Palestina, verifica-se que fazendeiros israelenses extremamente bem providos tecnológica e intelectualmente, com formação universitária, inclusive na Europa, oriundos de famílias abastadas, estão preparados para um regime de produtividade econômica fantástica, de tal maneira que há um contraste violentíssimo com o atraso tecnológico, com a cultura extremamente precária, do ponto de vista da produção econômica, dos árabes que habitam aquela região. O contraste é tão grande, tão intenso, que, de repente, ali começam a prevalecer as famílias que são providas dessas vantagens, desses privilégios que, historicamente, lhes equiparam. E esse contraste é violentamente estabelecido de maneira negativa e desfavorável em relação aos demais.

            Portanto, nesse regime que vigora ali, prevalecem os melhores e os mais poderosos. É um regime de absoluta liberdade individual, mas onde há uma prevalência que acaba sendo injusta com aqueles que são atrasados e culturalmente menos favorecidos, pois estes não têm o domínio de tecnologia, não têm formação em universidades européias. Dessa forma, acaba havendo uma ocupação territorial que é, primeiramente, garantida por uma segurança militar, mas que, na prática, ocorre muito mais por uma ocupação econômica. Ali vai ficando caro viver. Um palestino tem que sair dali, para morar nos bairros mais pobres e mais afastados, porque ali o custo de vida é muito alto. E os ódios começam a nascer e se tornam irreversíveis; as diferenças se avolumam e afloram de maneira violenta. E ódios acumulados se tornam ódios invencíveis e irreversíveis, porque são ódios que se vão somando no tempo e no espaço.

            Portanto, o liberalismo também é, de certa forma, um sistema de crenças, também fechado, que não abre mão desta concepção da vida: da prevalência do melhor. É a liberdade, para prevalecer o melhor. Na liberdade, para prevalecer o melhor, que é o que tanto defende o Presidente dos Estados Unidos, George Bush, há, ao fim e ao cabo, uma injustiça humana com aqueles que menos têm, que menos dispõem e que contam com menos equipamentos tecnológico e histórico para enfrentarem uma situação de vida.

            De outro lado, se não fosse um sistema de crenças, uma construção ideológica fundamentalista, baseada em convicções - e meras convicções artificiais -, como alguém conseguiria convencer uma pessoa, um ser humano, a estatelar o seu avião contra um prédio, a desintegrar-se numa explosão? É um sistema de crenças que o leva a crer que a recompensa virá no céu ou numa vida eterna futura.

            É interessante até perguntar: como é que esse piloto que se estatelou, que jogou o avião contra aqueles prédios, vai para o céu para ser premiado com uma vida eterna maravilhosa, se terá que conviver lá com os que matou? Também esses são cristãos, de uma outra religião, que, supostamente, por não terem nenhum pecado, vão para o céu. São céus diferentes? O piloto vai para um céu nirvânico, búdico, islâmico, e o cristão, morto na torre, vai para um céu católico ou luterano?

            São sistemas de crenças. Se não há um sistema de crença, como os cidadãos que manipulam com isso terão poder? Só o que lhes dá poder é o sistema de crenças. Se não houvesse o sistema de crenças, se não houvesse o sistema ideológico no qual eles artificialmente constroem e articulam as suas forças de intervenção, eles não teriam poder. O poder significa muito mais do que o dinheiro que têm. O dinheiro é parte desse poder, mas a construção ideológica é a outra parte. E, só com esse sistema de crenças, com sistemas ideológicos, com essa construção, conseguem manipular as pessoas, utilizá-las. Quando elas pensam que estão indo para o Nirvana, para o céu islâmico, elas estão indo, talvez, para o profundo esquecimento e, quem sabe, farão parte de um cemitério que jamais alguém visitará. Eles são antimulticulturais, são antitolerância e são apegados a extremos e a sistemas de crenças.

            É por isso que, talvez, neste início de séc. XXI e final de séc. XX, eu não concorde com a argumentação de que essa guerra seja a guerra do séc. XXI. Essa é a típica guerra do séc. XX. É a guerra que se fundamenta na construção ideológica, que é um artificialismo da mente humana para produzir poder. E, portanto, para produzir poder, é preciso produzir guerra, causar destruição e morte.

            Naquele período em que se declarava a Era de Aquário como a era da vida, da esperança, da paz e do amor, em meados dos anos 70, período que culminou com as posturas pacifistas que Jonh Lenon traduziu na música Imagine, eu estava ao lado de um sistema de crenças e entendia que aquelas pregações eram inúteis, porque acreditava que só a construção ideológica tinha poder revolucionário e transformador da Humanidade. Hoje, Srª Presidente, estou convencido de que as construções ideológicas só tem um poder: o poder pelo poder, o poder voltado para aumentar o poder, para garantir mais poder. Elas só têm uma finalidade: assegurar poder a quem já o tem.

            Nenhuma construção ideológica do séc. XX levou à revolução, à justiça, à paz, à tolerância, ao fim das mortes, das guerras e das destruições. Todos os sistemas de crenças se realimentam da intolerância, da necessidade de garantir poder e aumentar o poder de quem já o tem. Não é outro o discurso do Sr. George W. Bush, não é outro o desejo do homem que convenceu esses pobres pilotos terroristas a praticarem os atos hediondos que registramos nos Estados Unidos. Era isso que estava em jogo quando aquele avião bateu naquela torre.

            Srª Presidente, não posso, de forma alguma, deixar de aqui fazer este registro. Penso que é um registro tardio, mas necessário.

            Eu não estava certo, e John Lennon tinha razão, Srª Presidente.

            O Sr. Romero Jucá (Bloco/PSDB - RR) - Permite-me V. Exª um aparte?

            O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS) - Ouço o aparte de V. Exª.

            O Sr. Romero Jucá (Bloco/PSDB - RR) - Senador José Fogaça, quero, em um rápido aparte, aplaudir o discurso de V. Exª, que traz um posicionamento que deve refletir exatamente as esperanças do novo século. Não nos podemos ater a esse modelo ultrapassado, que levou às conseqüências dos fatos relatados por V. Exª. Gostaria de dizer que o grande desafio do séc. XXI não é vencer essa guerra ou continuar combatendo o terrorismo, mas sim construir um nova realidade social, um nova ordem social e política, é, enfim, buscar a solidariedade, o respeito à vida, um outro caminho que não o fortalecimento do poder, da forma como vimos ocorrer no séc. XX. V. Exª faz uma bela exposição. Por isso, aplaudo V. Exª pelo seu importante pronunciamento.

            O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS) - Muito obrigado, Senador Romero Jucá. V. Exª nos ajuda, neste momento, a concluir as nossas considerações aqui feitas.

            Creio que, neste momento, todo discurso pacifista deve ser bem-vindo. Às vezes, fico um pouco irritado, Srª Presidente, com falsos discursos pacifistas, porque vejo pessoas que pregam paz e acordo, mas, por trás de seu discurso pacifista, na verdade, está a defesa do seu sistema de crenças, porque o desmonte do seu sistema de crenças também é um desmonte das suas condições de poder.

            Ontem, li um artigo da escritora Rose Marie Muraro, num jornal aqui de Brasília: é tipicamente um exemplo de quem aparentemente está fazendo um discurso pacifista, mas, na verdade, está defendendo rigorosamente o sistema ideológico de crenças que lhe dá poder na sociedade onde atua. Ela não estava pregando, é claro, a guerra, nem a morte. Nem posso acusá-la jamais de ser responsável por qualquer tipo de prática de violência. Mas há essa disposição de fechar-se em copas, de arraigar-se em seu sistema ideológico, no qual se insere uma posição de poder, seja ela qual for: o poder de ser uma escritora influente; o poder de ser um Senador, que vota as leis de seu país e que, portanto, tem influência nos destinos do país; ou até o poder de ser um grande líder nacional.

            Essas defesas de sistemas de crença, na verdade, são defesas de posições de poder, e é isso - não há dúvida alguma - que está por trás daquele trágico acontecimento.

            O que vamos ver nos próximos dias é isso. Não veremos a busca pela paz. Vamos saber qual é o sistema de crenças que prevalecerá. E, portanto, isso não é a paz. Isso é apenas ou o retardamento ou até a continuidade dessa guerra do pequeno e breve séc. XX, previsto por Eric Hobsbawn em seu livro A Era dos Extremos - O breve século XX, também analisado no livro Materia Dispuesta, desse extraordinário escritor mexicano a que me referi, e, de certa forma, profetizado pela música Imagine, de John Lennon.

            Muito obrigado, Srª Presidente.


            Modelo15/16/2410:40



Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/09/2001 - Página 22115