Discurso durante a 116ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Registro da realização, dia 17 de setembro, do décimo primeiro Congresso Nacional de Delegados de Polícia em Rio Quente, Goiás.

Autor
Romeu Tuma (PFL - Partido da Frente Liberal/SP)
Nome completo: Romeu Tuma
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Registro da realização, dia 17 de setembro, do décimo primeiro Congresso Nacional de Delegados de Polícia em Rio Quente, Goiás.
Publicação
Publicação no DSF de 20/09/2001 - Página 22394
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, REALIZAÇÃO, ESTADO DE GOIAS (GO), CONGRESSO BRASILEIRO, DELEGADO DE POLICIA, DEBATE, MODERNIZAÇÃO, NORMAS, METODO, TRABALHO, OBJETIVO, MELHORIA, INVESTIGAÇÃO, COMBATE, CRIME ORGANIZADO.
  • REGISTRO, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, SIMPOSIO, CONGRESSO BRASILEIRO, DELEGADO DE POLICIA, DEBATE, EFICACIA, INVESTIGAÇÃO POLICIAL.
  • ANALISE, IMPORTANCIA, LEGISLAÇÃO, LEITURA, ARTIGO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COMBATE, PUNIÇÃO, CRIME.

O SR. ROMEU TUMA (PFL - SP) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, autoridades policiais de todo o País participaram, dia 17 do corrente, na Pousada do Rio Quente, Goiás, do XI Congresso Nacional de Delegados de Polícia, conclave que debateu, principalmente, as normas e métodos modernos, como a escuta ambiental e a infiltração, introduzidos nos últimos anos na investigação e no uso de provas assim coletadas contra o crime organizado. A convite do Dr. João Campos de Araújo, digníssimo Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de Goiás, apoiado pelo Dr. Jair Cesário, líder de nossa categoria no Estado de São Paulo, participei do simpósio como debatedor no painel “Os Avanços dos Mecanismos Legais para Eficácia da Investigação Policial (Lei n.° 10.217/2001)”, tema de interesse direto de todos os órgãos devotados à defesa do Estado democrático de direito e nossas instituições, especialmente no âmbito da Polícia, do Ministério Público e da Justiça. Creio ser importante registrarmos a realização desse evento nos anais do Senado da República e, ao mesmo tempo, fazermos esta Casa de leis cumprir seu papel como caixa de ressonância de acontecimentos de tal relevância, dignos, portanto, da máxima divulgação. Trago-lhes por isso, nobres Pares, as palavras que proferi naquele simpósio.

Quando se está a um passo da aposentadoria como Delegado de Polícia de Classe Especial, o ensejo de falar sobre fundamentos das atividades de polícia judiciária é extremamente gratificante. Sou do tempo em que fazer Polícia significava exigir o máximo de imaginação por se trabalhar diante de dificuldades legais aparentemente intransponíveis. Portanto, como profissional - e continuo a sê-lo, embora licenciado - , dá-me satisfação ver eficazes meios de trabalho, antes dispersos e dissimulados, saírem da informalidade para ganhar a força de lei, devido à implementação de um novo sistema jurídico em amparo à investigação criminal moderna. A importância da derrubada daqueles obstáculos, que se opunham à ação policial em plenitude, avultou diante da exacerbação do crime internacionalmente organizado, isto é, o terrorismo, o narcotráfico e o tráfico de armas de fogo, explosivos e munições.

Em conseqüência dos monstruosos atentados cometidos na semana passada nos Estados Unidos, o mundo acordou. Todos os povos têm agora consciência de que, após o fim da guerra fria, a maior ameaça à liberdade individual e à estabilidade dos Estados democráticos de direito provém de atividades criminosas supranacionais, dotadas de recursos inimagináveis, tanto para a violência, quanto para o suborno e a cooptação.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, vivemos mais uma guerra de âmbito mundial! A primeira grande guerra do Século XXI, conforme afirmou o Presidente norte-americano George W. Bush. Uma forma de conflito difuso, às vezes travestido da aparência bélica clássica em algumas manifestações regionais, mas sempre se desenrolando de maneira a deixar claro que, hoje, o mais importante soldado - aquele irremovível da linha de frente e do qual dependem as outras defesas nacionais - é o policial.

Como Senador da República e Delegado de Polícia licenciado, tenho procurado cumprir meu dever profissional, isto é, oferecer ao Congresso Nacional uma experiência de mais de 40 anos na área policial para incentivar o Poder Legislativo brasileiro à adequação das leis penais à realidade. Assim, graças ao mandato parlamentar e apesar das óbvias limitações políticas, pude influir na elaboração ou aprimoramento de dispositivos que tipificam modalidades delituosas antes só reprimíveis de forma indireta, assim como de leis que permitem métodos e meios de investigação modernos.

Desde os anos 80, vivemos verdadeira revolução no âmbito da aplicação da lei penal. Sob muitos aspectos relativos à execução de penas, surgiram normas deletérias, que amenizaram demais o sentido punitivo das condenações e enfatizaram sobremaneira os benefícios legais reservados aos condenados. Foram muitas as disposições que acabaram por aumentar a sensação de impunidade, incentivaram a prática de crimes e contribuíram para elevar de maneira alarmante os índices de criminalidade.

Tenho dito e repito: essa benevolência orquestrada é suspeita, na medida em que contribuiu para fortalecer um sistema de terrorismo sem terrorista. Nesse sistema, o criminoso “comum” posa de vítima de injustiças sociais para tentar justificar seus crimes. E é incensado como um “rebelde sem causa”, de acordo com o enfoque apregoado, há pelo menos 30 anos, pelos adeptos da chamada “Nova Criminologia”. Os resultados estão à mostra. Mais e mais latrocínios, seqüestros, estupros, assaltos, chacinas... A população alarmada, quando não desesperada. E o crime organizando-se mais e mais, agora até com ares de “partido político”, como ousa definir-se, por exemplo, o PCC.

O que se procura ferir com essas atitudes? É - se possível mortalmente - o Estado democrático de direito.

Mas, sempre surge a hora da verdade. Os fatos incumbem-se de impô-la e parece-me havermos atingido um desses decisivos momentos históricos. As manifestações de apoio e as reações contrárias à Lei n.° 10.217, sancionada em 11 de abril último, incutem-me essa convicção.

Sob o ponto de vista da repressão policial ao crime organizado, as modificações introduzidas em nosso arcabouço jurídico a partir de 1995 foram positivas. No dia 3 de maio desse ano, tivemos a sanção da Lei n.° 9.034, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Pode ser entendida como o marco inicial daquela modernização.

Tive a honra de relatar, posteriormente, neste Senado, o projeto transformado em lei em abril último, sob o n.° 10.217, para alterar dispositivos do diploma anterior que deixavam a desejar. Meu Parecer recebeu aprovação unânime na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Acabou sendo acolhido também pelo egrégio Plenário. Dessa forma, modificamos quase todo o Capítulo I da Lei n.° 9.034 para dar mais abrangência e pertinência a instrumentos imprescindíveis à investigação policial moderna e à instrução judicial criminal.

Foi assim que, emendada pela Lei 10.217, a de n.° 9.034 passou a alcançar “organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”, onde antes abrangia apenas “quadrilha ou bando”, com isso debilitando-se diante das interpretações decorrentes de tais termos. Há certeza insofismável agora de que os “meios de prova e procedimentos investigatórios”, definidos e regulados pela Lei n.° 9.034, atingem todos os delitos praticados por qualquer tipo de bando, quadrilha, organização ou associação de natureza criminosa.

Destaco ainda que, nesse artigo 1.°, houve a substituição da palavra “crime” por “ilícitos”, providência necessária para melhorar a abrangência da lei. Garantiu-se assim a persecução criminal nos casos em que criminosos procurem escapulir dos novos meios de prova e investigação com tortuosas alegações sobre a natureza de seus atos. Como se sabe, crime significa, segundo o conceito formal, violação culpável da lei penal; segundo o conceito substancial, ofensa de um bem jurídico tutelado pela lei penal; e, segundo o conceito analítico, fato típico, antijurídico e culpável. Por sua vez, ilícito quer dizer não lícito, aquilo que é proibido pela lei, injurídico, ilegítimo, contrário à moral e/ou ao direito.

Com a redação determinada pela Lei 10.217, foi suprimida do artigo 2.° do diploma anterior a expressão “que verse sobre ação praticada por organizações criminosas”. Dessa forma, o texto da Lei 9.034 diz agora que “em qualquer fase da persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei,” os procedimentos de investigação e formação de provas nela arrolados. Há quem veja nessa redação uma carta-branca para estender os procedimentos a toda e qualquer persecução criminal. Atitude temerária porque essa interpretação fenece ao se observar o verdadeiro escopo legal, explicito no Artigo 1.°, isto é: tais meios de prova e procedimentos investigatórios estão devotados ao combate daquilo que se convencionou chamar de crime organizado. Mas, quais são esses procedimentos tão importantes para o desmantelamento de organizações e associações criminosas, como as que se dedicam ao tráfico de drogas ou de armas e ao terrorismo?

Foram mantidas a “ação controlada”, pela qual se pode retardar intencionalmente o desfecho da repressão policial até o momento mais adequado à incriminação dos envolvidos, e a possibilidade de quebra dos sigilos fiscal, bancário, financeiro e eleitoral. Entretanto, dois novos incisos e um parágrafo criados pela Lei 10.217 consagraram procedimentos de há muito reclamados e que, na realidade, integravam informalmente o arsenal das polícias. Pode-se agora, com autorização da Justiça, realizar oficialmente e utilizar como prova “a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise”. Ou seja, são legítimos os elementos de prova colhidos mediante o emprego dos modernos recursos de vigilância eletrônica, desde que sua coleta seja previamente autorizada pela Justiça. Além disso, ainda com prévia autorização judicial, podemos doravante infiltrar as organizações criminosas com nossos agentes, procedimento antigamente quase restrito ao emprego de informantes profissionais, com conseqüências às vezes piores do que aquelas dos crimes que se queria combater. Pelo parágrafo único do novo inciso, está garantido o sigilo que deve cercar esse tipo de operação. O juiz que autorizar a infiltração é responsável pelo segredo durante todo o tempo das operações.

Nos demais dispositivos, a Lei 9.034 permaneceu inalterada.

Contudo, mal havia entrado em vigor em abril último, a Lei 10.217 despertou a ira de alguns setores sobejamente conhecidos. Entre as principais acusações, disseram:

1.     o diploma “alastrou o alcance da norma que regulamenta a interceptação telefônica (Lei n.° 9.296, de 24 de julho de 1996), sem previsão expressa, para tanto, na Carta Magna”; e

2.     a infiltração de agentes em organizações ou associações criminosas pode representar um “salvo-conduto” para maus policiais cometerem crimes “sob o manto da lei”.

Até a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo viu-se às voltas com esses queixumes. Por isso, em maio último, resolveu divulgar um parecer elaborado por seu Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais (CAOCrim), através dos ilustres Drs. Eduardo Araújo da Silva e José Osvaldo Molineiro, que quase esgotaram o assunto. Passo a guiar-me pelos principais pontos desse Parecer sobre a Lei 10.217.

Em 1996, a Lei n.° 9.296 regulamentou apenas as interceptações das comunicações telefônicas ou em sistemas de informática e telemática. Deixou de contemplar tanto a captação (apreensão), como a interceptação (retenção) de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, praticadas por terceiros em ambientes fechados ou abertos, sem conhecimento dos interlocutores ou com ciência de apenas um deles. Graças à Lei 10.217, os agentes policiais já podem instalar aparelhos para a gravação de sons e imagens em ambientes fechados (residências, locais de trabalho, comerciais etc.) ou abertos (praças, ruas, jardins públicos etc.) “de modo a registrar sinais óticos (perceptíveis apenas através da visão), acústicos (perceptíveis apenas através de audição) e eletromagnéticos (perceptíveis apenas através de sinais elétricos ou magnéticos), desde que produzidos por pessoas investigadas ou acusadas de integrarem organizações ou associações criminosas. Tal estratégia de coleta de provas, comumente empregada em outros países, notadamente Itália e Estados Unidos, foi transplantada dos serviços secretos para o processo penal.”

Trata-se de iniciativa que limita o direito à intimidade, à vida privada e à imagem, assegurados na Constituição (art. 5º, inc. XII). Portanto, a Lei impõe prévia e motivada decisão judicial, na qual o magistrado deverá estar atento à proporcionalidade da aplicação da medida, pois direitos individuais serão restringidos. “Tal restrição, contudo, não macula de ilicitude a prova obtida por meio de interceptação ambiental: primeiro porque há previsão permissiva infra constitucional tutelando a matéria; depois extrai-se da estrutura da própria Constituição da República, a necessidade de excepcionalmente se restringir algumas garantias individuais, para proporcionalmente possibilitar a apuração de certas condutas delituosas consideradas graves.”

Realmente, dúvidas podem surgir quanto “à necessidade de expressa previsão constitucional para a interceptação ambiental, a exemplo do tratamento dispensado à interceptação telefônica (art. 5º, inc. XII).” Entretanto, “o próprio legislador constituinte não rotulou de absolutas certas garantias individuais, prevendo exceções no próprio texto constitucional, como a prisão em flagrante, a violabilidade do domicílio, a interceptação telefônica, a vedação de associação paramilitar, a limitação à liberdade de crença religiosa que exclua obrigação legal, etc. Trata-se da adoção implícita do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, destinado não apenas ao legislador ordinário, mas também aos aplicadores da lei.”

            No entender daqueles procuradores de Justiça, tais limitações “também estão previstas na legislação infraconstitucional. Como exemplo mais eloqüente, basta lembrar que apesar de a Constituição assegurar a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, ‘caput’), o Código Penal prevê como lícita a conduta de alguém atentar contra a vida alheia, desde que aja acobertado por qualquer das excludentes de ilicitude ou diante de um permissivo legal, como nas hipóteses dos abortos necessário e terapêutico. Sob a ótica processual, vale recordar que a legislação instrumental prevê a possibilidade de o juiz retirar o acusado da audiência, quando seu comportamento puder influenciar negativamente vítimas e testemunhas, em frontal contradição com sua autodefesa, integradora de sua ampla defesa (art. 5º, inc. LV). São todas previsões excepcionais, amparadas no critério de razoabilidade, que, ao que consta, não foram contestadas em face das garantias constitucionais.”

E mais:

“Poder-se-ia objetar, ainda dentro desse raciocínio, de que nada valeria o texto constitucional, se o legislador ordinário pudesse disciplinar violações às garantias asseguradas. À primeira vista, instintivamente, esse raciocínio parece estar marcado pela correção. Há de se considerar, entretanto, que o legislador, seja ordinário, seja constituinte, jamais conseguirá prever regras para todas as situações possíveis de realização, pois as normas jurídicas não são elaboradas matematicamente para os casos concretos, mas para a generalidade. O norte, portanto, é a observância estrita do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário, se entender que o legislador ordinário, na disciplina limitadora de determinada garantia, não atentou para esse princípio, gravar de inconstitucionalidade sua iniciativa.” 

            “Nesse rumo, cumpre ressaltar que o legislador brasileiro vem trilhando, embora a passos lentos, o mesmo caminho consagrado no direito estrangeiro. Nas últimas décadas, leis de outros países vêm tutelando formas excepcionais para a apuração do crime organizado, ante a constatação de que em razão de suas características diferenciadas, especialmente o alto poder de corrupção e a imposição da lei do silêncio, os tradicionais meios disponíveis para a obtenção da prova se mostraram insuficientes para a sua repressão. Outrossim, percebeu-se no cenário internacional que o braço do crime organizado avançava com tamanha facilidade em certos setores estatais, que o próprio Estado Democrático de Direito passou a suportar ameaça concreta na sua estabilidade.”

            “Dentre as inovações introduzidas na Itália para a apuração do crime organizado, em contraste com o envelhecimento dos instrumentos investigatórios e judiciários à disposição das autoridades italiana e o sucesso daqueles experimentados nos países da ‘common law’, está a ‘ação controlada’, a ‘infiltração de agentes’ e a proteção dos ‘colaboradores da justiça’ (cf. Silvio D’Amico, Il collaboratore della Giustizia. Roma: Edizioni Laurus Robuffo, 1993, pp. 86/87).”

            “Segundo Eckhardt Werthebach, citado por Jean Ziegler, o perigo para o Estado de Direito não reside no crime em si, mas na real possibilidade que o crime organizado tem de influenciar os processos de decisões democráticas, pois através do seu alto poder de corrupção influencia secretamente os valores da política, a independência da Justiça e, por fim, a função protetora do Estado de Direito (cf. Os senhores do crime: as novas máfias contra a democracia. Tradução Manuela Torres. Lisboa: Terramar, 1999, pp. 17 e 253).”

            Lembra o Parecer do CAOCrim que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de “habeas corpus” versando sobre gravação de conversa por um dos interlocutores, decidiu que “a Constituição não trata a privacidade como direito absoluto (art. 5º, X, XI e XII). Há momento em que o direito a privacidade se conflita com outros direitos, quer de terceiros, quer do Estado (...) Deve-se buscar o critério para a limitação. O princípio da proporcionalidade é o instrumento de controle. Deve-se ter em conta a proporcionalidade em concreto...”

Na mesma linha, “o Superior Tribunal de Justiça, amparado na lição sempre respeitável de José Carlos Barbosa Moreira, decidiu que ‘pelo princípio da proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cuja harmonia impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento de alguns direitos por ela conferidos, no caso, direito à intimidade.”

Os autores do Parecer dizem que assim também se define a orientação da doutrina internacional, há tempos convivendo com a limitação de garantias individuais em prol da apuração de certas formas de criminalidade. Observa Jesús-Maria Silva Sánchez, que “frente ao fenômeno da criminalidade organizada, impõe-se que algumas garantias processuais sejam ‘reinterpretadas’, razão pela qual entende inevitável, nos dias atuais, reformas ‘anti-garantistas’ para a apuração de certas formas de crime”. Na mesma linha Vieira de Andrade, citado por José Miguel Sardinha, anota que assim como os direitos fundamentais do cidadão, o bem-estar da comunidade, a existência do Estado, a segurança nacional, a prevenção e a repressão da criminalidade têm assentos constitucionais e não podem ser sacrificados por uma concepção puramente individualista dos direitos fundamentais. Ainda Vicente Gimeno Sendra ressalta em relação à apuração do crime organizado que “a resposta ao desafio de buscar um ponto de equilíbrio será exatamente o que resultar do ‘critério de limitação mínima dos direitos fundamentais’, segundo o juízo de estrita necessidade”.

A segunda inovação proporcionada pela Lei 10.217 disciplina a figura do agente infiltrado ou, como preferem os espanhóis, “agente encubierto”. O sociólogo suíço Jean Ziegler, em sua obra “Os senhores do crime: as novas máfias contra a democracia”, dedica-lhes um capítulo com o seguinte título: “Um Herói do nosso Tempo: o Infiltrado”. Alude, assim, aos “relevantes serviços prestados por agentes policiais infiltrados em investigações coordenadas pelo governo norte-americano (“undercover agent”) em territórios estadunidense e europeu, no desmantelamento de grandes organizações criminosas dedicadas ao tráfico internacional de substâncias entorpecentes.”

Ainda quanto à infiltração, os procuradores de Justiça adotam postura crítica relativamente à “reação retardada do governo brasileiro: primeiro porque deixou escapar, há mais de meia década, por temer eventuais abusos nesse delicado campo, a oportunidade de disciplinar a figura do agente infiltrado, ao vetar o inciso I da Lei n.º 9.034/95, que tutelava a matéria, fazendo-o apenas agora; segundo porque não disciplinou o instituto com a profundidade exigida, deixando de dispor acerca de questões importantes, como a previsão de participação do Ministério Público, a imposição de eventuais limites à atuação do policial, a duração da infiltração e a possibilidade de sua renovação, a disciplina de utilização de falsa identidade pelo agente, antes e depois da infiltração, assim como sua especial proteção em juízo.”

Prevêem, porém, que essas omissões relevantes serão supridas pelas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais. Louvam a inovação, “do ponto de vista da apuração do crime organizado, pois se trata de mais um meio de obtenção da prova, empregado largamente pelas polícias de outros países, na busca de uma eficaz repressão às associações criminosas, que como salientado, são marcadas especialmente pela lei do silêncio (“omertà” do direito italiano), dificultando a apuração de suas atividades através da prova oral tradicional.” E ressaltam:

“De outro lado, embora possa causar espécie à primeira vista, a tutela da infiltração de agentes não deixa de ser uma garantia aos próprios investigados e acusados, pois se antes havia a possibilidade de o instituto ser utilizado informalmente, agora poderá contar com a fiscalização do Ministério Público e do Poder Judiciário, que certamente coibirão eventuais excessos.”

“Cuidando-se de mais um meio de obtenção da prova que implica em limitação do direito à intimidade e à vida privada da pessoa investigada ou acusada, a Lei exige prévia e motivada autorização judicial. A propósito, a tutela desse novo instituto também poderá ensejar discussões a respeito de sua constitucionalidade, impondo-se repetir a mesma justificação exposta quando do comentário da interceptação ambiental, sob pena da Carta Magna passar a figurar como repositório ilimitado de toda e qualquer exceção ao sistema de garantias individuais do cidadão.”

“Também poderá causar polêmica, a determinação expressa na Lei para que a autorização judicial seja estritamente sigilosa (art. 2º, parágrafo único, da Lei n.º 9.034/95), ou seja, na prática os autos nos quais for autorizada a infiltração deverá tramitar em sigilo, apenas a ele tendo acesso o representante do Ministério Público, para o qual o elemento de prova é produzido, e o Judiciário. A justificativa para tal previsão é a necessidade de não apenas assegurar o sucesso das investigações em curso, mas sobretudo a vida do agente infiltrado, pois se sua condição for descoberta pelos integrantes da organização criminosa, sua vida estará em risco. Recorde-se, ademais, que o art. 20 do Código de Processo Penal desde há muito assegura a possibilidade da Autoridade Policial determinar o ‘sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. 

O Parecer reconhece a possibilidade de ocorrerem eventuais condutas delituosas dos agentes policiais infiltrados, mas frisa que essa hipótese “não deve desnaturar por completo o objetivo buscado pelo instituto. Assim como a prisão em flagrante poderá implicar em eventuais excessos, a busca e apreensão na residência do investigado poderá resultar em eventuais abusos, a interceptação telefônica poderá culminar com a desnecessária exposição da privacidade do acusado, também a infiltração de agentes poderá ter eventualmente sua finalidade desvirtuada. O risco, portanto, inerente a todos os meios de obtenção da prova, não pode afastar sua aplicação, sob pena da exceção prevalecer sobre a regra, em prejuízo de uma das principais atividades do Estado moderno, que é a repressão da criminalidade.”

Ao final, a conclusão do Ministério Público é límpida: “malgrado a preocupação do interessado, o parecer deste Centro Operacional de Apoio das Promotorias de Justiça Criminais é no sentido de que não se vislumbra nenhum traço de inconstitucionalidade na disciplina da interceptação ambiental e da infiltração de agentes, introduzidas pela Lei n.º 10.217/01, eis que compatíveis com o princípio da proporcionalidade.”

Mas, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, creio ser de bom alvitre evitarmos a análise isolada do disposto na legislação que acabamos de examinar. Tais diplomas integram um conjunto de normas jurídicas em vigor, inspiradas em tratados, convenções e acordos firmados pelo Brasil no âmbito da ONU e da OEA nos últimos tempos. Tive a honra de relatar, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado, alguns desses importantes instrumentos destinados a amparar o combate às organizações criminosas transnacionais. Em todos os casos, o Legislativo federal ratificou o autógrafo brasileiro. Além disso e com os mesmos objetivos, resoluções aprovadas em diversas reuniões anuais da Assembléia Geral da Interpol - Organização Internacional de Polícia Criminal - instaram os países-membros, entre os quais o Brasil, a adotar tais tipos de legislação. Pude participar dessas reuniões mundiais como Vice-Presidente da entidade internacional e, depois, apresentar a este Plenário aquelas solicitações. Serviram, felizmente, para firmar convicção entre os nobres parlamentares e para inspirar providências também no âmbito do Poder Executivo federal.

Entre os tratados e acordos internacionais anteriores, merece destaque a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena a 20 de dezembro de 1988 e promulgada pelo Presidente da República, através do Decreto n.° 154, de 26 de junho de 1991. Outros diplomas, especialmente no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), prevêem a cooperação regional ou bilateral no combate ao narcotráfico, inclusive mediante “entrega controlada”, além da adoção de legislações nacionais harmônicas para extirpar a lavagem de dinheiro. Como exemplo, destaco o “Regulamento Modelo sobre Delitos de Lavagem Relacionados com o Tráfico Ilícito de Drogas e outros Delitos Graves”, aprovado pela Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD) em 1998.

O fato é que, após tais tratados, enveredamos pela modernização da legislação criminal, na qual se inserem, entre outras, a Lei n.° 9.296, de 24 de julho de 1996, já mencionada e que “regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5.° da Constituição Federal”, ou seja, “a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal”.

Surgiu também a Lei n.° 9.613, de 3 de março de 1998, que “dispõe sobre os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro” para os ilícitos que prevê; e “cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, além de dar outras providências.

Ganhamos ainda a Lei n.° 9.807, de 13 de julho de 1999, que “estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, inclui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.” Dela tenho-me valido bastante desde o ano passado, ao longo dos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre o Roubo de Cargas, que presido no âmbito do Congresso Nacional.

Todas essas leis são de interesse direto da investigação policial. Alinhadas com as de números 9.034 e 10.217, formam um conjunto harmônico nesse sentido. Ressalto ainda que a repressão ao crime organizado escora-se igualmente em outros diplomas legais, como, por exemplo, a Lei n.° 7.560, de 19 de dezembro de 1986, que foi alterada até 1999 por sucessivas medidas provisórias e leis para regular o Fundo Nacional Antidrogas e dispor “sobre os bens apreendidos e adquiridos com produtos de tráfico ilícito de drogas ou atividades correlatas”.

Lembrei aos participantes do Congresso Nacional de Delegados de Polícia a importância de terem presente o que preceituam essas normas, assim como o Decreto n.° 2.799, de 8 de outubro de 1998, que aprovou o estatuto do Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF. Com jurisdição em todo o território nacional, o COAF “tem por finalidade disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas em sua lei de criação (9.613, de 3 de março de 1998), sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades”. O Regimento Interno do Conselho, aprovado pela Portaria n.° 330, baixada a 18 de dezembro de 1998 pelo Exmo. Sr. Ministro da Fazenda, está disponível no “site” desse Ministério, na Internet. Merece atenção, assim como as decisões já adotadas pelo COAF e as providências do Banco Central delas decorrentes, consubstanciadas na Circular n.° 2852 e na Carta-Circular n.° 2826 do BC. Enfatizei ainda que essas decisões, voltadas para a grande frente de combate ao crime organizado, ou seja, o ataque à “lavagem de dinheiro”, afetam não apenas bancos e entidades financeiras, pois se estendem até às transações com imóveis e jóias.

Dispomos, assim, de copiosa legislação preventiva e repressiva para obstar as organizações e associações criminosas de qualquer natureza. Falhas devem existir porque tudo o que o ser humano produz é passível de aprimoramento. Todavia, há outras proposições tramitando no Congresso Nacional e estou certo de que, “pari passu” com as normas já existentes, nos levarão a bom termo. Tais proposições condizem, principalmente, com as reformas do Poder Judiciário e do Código de Processo Penal, ambas em andamento.

É natural que, agora, os maiores problemas estejam concentrados na execução daquelas leis e que novas dificuldades possam emergir nas instituições policiais destinadas a sua aplicação. Devemos, por isso, acelerar o saneamento de nossas polícias para torná-las ainda mais infensas à corrupção, às relações criminosas, às ligações promíscuas com a política local, à inépcia na investigação criminal e assim por diante. Fica evidente, além disso, a necessidade urgente de melhor capacitação técnica e de retribuição salarial adequada para que alcancem seleção profissional condizente com os novos meios de investigação e obtenção de prova. Precisamos buscar também a modernização dos setores de polícia científica, a informatização e o desenvolvimento de bancos de dados criminais e administrativos, assim como dos sistemas operacionais. Neste sentido, há necessidade urgentíssima da integração dos sistemas de comunicações e informações da Polícia Federal e das polícias estaduais. Precisamos ainda ter em mente a integração operacional da polícia ostensiva com a polícia judiciária, sem descurar da integração Ministério Público/polícia judiciária em todas as fases da atividade de investigação, conforme prevê a Carta Magna no artigo 129.

Mas, os novos meios de investigação e coleta de provas também constituem um inusitado desafio à capacidade profissional dos delegados de Polícia e seus agentes. São meios que facilitam a investigação, é claro. Mas, tornam mais agudo o perigo inerente ao trabalho policial e criam condições de risco processual introduzido pela possibilidade de novas estratégias de defesa obterem êxito em juízo, como tem acontecido em países que utilizam aqueles recursos há mais tempo. Por exemplo, o direito anglo-saxão está repleto de casos em que o acusado alegou ter sido induzido ou instigado por um agente secreto a cometer o crime. Invocam esses réus assim as circunstâncias tipificadoras do chamado “entrapment”, isto é, “a instigação de um crime com a intenção de obter causa para um processo criminal”.

A literatura inglesa nos oferece inúmeras obras devotadas ao tema, como, por exemplo, “Compelled to Crime” (Compelido ao Crime), de Beth E. Richie, e “Entrapment Defense” (Defesa pela Instigação), de Paul Marcus, que tratam de casos reais ou de ficção. O assunto merece acurada análise das autoridades que irão utilizar agentes infiltrados (“undercover agents” ou “agentes encobertos”) e o máximo cuidado para se esquivarem de situações nas quais o acusado possa alegar ter sido induzido a um crime que, em circunstâncias normais, não teria cometido.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, para provar o “entrapment”, a defesa precisa demonstrar que a idéia de perpetração partiu de um agente da lei; que esse agente persuadiu o autor a cometer o delito; e que ele - autor - não estava predisposto a cometê-lo. Observando estes princípios e se a infiltração for bem orientada, pode-se evitar o problema.

Algumas conclusões do trabalho elaborado em 1995 pelos pesquisadores e professores de direito Andrew L-T Choo e Manda Mellors, da Universidade de Leicester, Inglaterra, constituem verdadeiros “mandamentos” para realizar infiltrações orientadas de maneira a evitar o “entrapment”. São elas, numa tradução livre:

1.     Nenhum membro de uma força policial ou informante deve aconselhar, incitar ou procurar o cometimento de um crime;

2.     Quando um informante delata à polícia a intenção criminosa de outras pessoas e revela entender que irá tomar parte do crime planejado, pode-se permitir que continue na ação apenas se:

a.     não tiver que se engajar ativamente no planejamento e na perpetração do delito;

b.     foi solicitado a desempenhar um papel secundário; e

c.     sua participação é essencial para permitir à polícia subjugar os criminosos principais e prendê-los, embora por delito menor (formação de quadrilha e porte ilegal de arma de fogo, por exemplo), antes que a violência atinja alguma pessoa ou haja sérios danos à propriedade.

Quando se tratar de informante, sempre deverá ser instruído a nunca agir como “agente provocador”, isto é, não poderá sugerir a outros que podem cometer delitos ou os encorajar a fazer isso.

Essas diretrizes estão enfocadas no risco de as infiltrações (“undercover operations” ou operações secretas) resultarem na “fabricação” de um crime, ou ainda de encorajarem ou estimularem a prática delituosa. Trata-se de um perigo real, como Gary T. Marx, professor emérito do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), descreve em sua vasta obra sobre o assunto. É dele uma pesquisa que nos permite conhecer algumas das maneiras pelas quais atividades policiais secretas podem “amplificar” o crime. Ei-las, numa tradução livre:

1.     “podem produzir um mercado para compra e venda de bens e serviços ilegais, assim como criar indiretamente capital para outros tipos de ilegalidade;

2.     “podem gerar a idéia e o motivo para o crime;

3.     “podem acarretar coerção, intimidação, engano ou persuasão de uma pessoa não disposta, de outra forma, a cometer a ofensa;

4.     “podem oferecer uma sedutora tentação a uma pessoa que, de outra forma, não iria encontrá-la;

5.     “podem possibilitar o contrabando (tráfico), ou fornecer um recurso faltante, ou ainda prover ingredientes essenciais à perpetração do crime;

6.     “podem originar um contexto de falsos registros e enquadramentos;

7.     “podem gerar uma estrutura dissimulada para acobertar ações ilegais da parte do agente secreto ou informante;

8.     “podem conduzir a uma retaliação violenta contra informantes; e

9.     “podem estimular uma variedade de crimes cometidos por aqueles que não são os alvos da operação secreta.”

A esta altura, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, havia exposto os ângulos cruciais do tema que me fora proposto, na condição de debatedor do XI Congresso Nacional de Delegados de Polícia. Um tema indicativo da nova era que se abre à investigação policial e à produção de provas.

Havia enfatizado facilidades e perigos operacionais que começam a existir e pedira atenção para a experiência adquirida por outros países democráticos, já acostumados à vigilância eletrônica e à infiltração. Os resultados por obtidos nessas nações demonstram que, apesar dos riscos, valeu a pena legitimar tais meios de trabalho policial diante da maior ameaça que pesa hoje sobre a humanidade, isto é, o crime organizado.

No meio policial, o sucesso desse difícil, mas gratificante combate não depende apenas das ações inspiradas na nova legislação. Vivemos um período de crise moral e, às vezes, até de inversão de valores. Desgasta-se deliberadamente o princípio de autoridade e a segurança pública, num contexto de terrorismo sem terrorista. Busca-se a substituição do orgulho por vergonha pelo exercício de autoridade, como se, exercê-la legitimamente num Estado democrático de direito, fosse o mesmo que o fazer sob algum regime discricionário. Rogo a Deus que essa nova legislação nos proporcione retumbantes vitórias do bem sobre o mal, garanta a vida em liberdade apesar das tentativas de opressão do crime organizado e permita recuperar a dignidade do profissional de Polícia aos olhos da população.

Oxalá essas leis democráticas contribuam decisivamente para que aconteça o que nosso povo anseia, isto é: a restituição, de fato, do poder de polícia à Polícia.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/09/2001 - Página 22394