Discurso durante a 120ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise do movimento mundial pela "Responsabilidade Social".

Autor
Romeu Tuma (PFL - Partido da Frente Liberal/SP)
Nome completo: Romeu Tuma
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Análise do movimento mundial pela "Responsabilidade Social".
Publicação
Publicação no DSF de 26/09/2001 - Página 22762
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, DESENVOLVIMENTO, RESPONSABILIDADE SOLIDARIA, SOCIEDADE, AUMENTO, CRIAÇÃO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), ASSOCIAÇÕES, FUNDAÇÃO, BENEFICIO, LIBERDADE, CIDADANIA, CRESCIMENTO ECONOMICO, TRABALHO, VOLUNTARIO.
  • LEITURA, ANALISE, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, LUIZ CARLOS MEREGE, PROFESSOR, IMPORTANCIA, RESPONSABILIDADE SOLIDARIA, SOCIEDADE.
  • COMENTARIO, DISPOSITIVOS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, INCENTIVO, RESPONSABILIDADE SOLIDARIA.
  • LEITURA, NORMAS, PACTO, AMBITO INTERNACIONAL, AUTORIA, KOFI ANNAN, SECRETARIO GERAL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), REFERENCIA, RESPONSABILIDADE SOLIDARIA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ROMEU TUMA (PFL - SP) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, este início de milênio está marcado por mudanças político-econômico-sociais em todos os continentes. Mudanças sonhadas por gigantescas parcelas da humanidade há bastante tempo, mas que também constituíram - como ainda constituem - um pesadelo para muitos seres humanos. Inexiste forma de subestimar ou ignorar transformações desse nível que sinalizam uma volta da espiral da história para demarcar mais uma etapa do progresso humano, a era da queda de barreiras e até de fronteiras, num esforço global pela união dos povos. Ou seja: vivemos a era da globalização. Por conseqüência, novas relações econômicas mundiais prevalecem sob a égide da integração dos mercados, desnacionalização de investimentos e fluidez de capitais com a velocidade da luz.

            O compartilhamento de imensos mercados consumidores e sistemas de comunicação parece destinado a alavancar o progresso em larga escala, mas apresenta vários aspectos cruéis devido à crescente concentração de informação, capital e, portanto, poder nas mãos de agrupamentos privados supranacionais. A principal faceta perversa desse processo é a rápida drenagem de riquezas e cérebros. Em conseqüência, povos inteiros permanecem nos níveis mais baixos da escala que divide as nações em ricas, pobres e miseráveis, estas últimas servindo como fornecedoras de mão de obra sem qualificação e barata.

            Há uma lei da Física que sempre impera quando se atua sobre algo material: a toda ação corresponde reação igual e contrária. Foi por isso que a globalização - a meu ver imensamente benéfica, caso respeite os ideais de solidariedade, ainda que mesclando-os a interesses econômicos - provocou ponderáveis manifestações adversas. Ao mesmo tempo, porém, surgiram esforços universais para humanizá-la, de maneira a lhe garantir vigor, poder e perenidade mesmo diante das manifestações de inconformismo. A conscientização do que se convencionou denominar “responsabilidade social” insere-se nesses esforços para humanizar e dignificar a globalização. Tanto que deu origem a amplo movimento em inúmeros países, entre eles o Brasil, com a participação e o incentivo de instituições particulares, empresas e organismos públicos do porte da Organização das Nações Unidas (ONU); de grandes corporações empresariais particulares de natureza nacional e multinacional; e de considerável número de ONGs, isto é, organizações não-governamentais. Ou seja, nele estão engajados integrantes do Primeiro, Segundo e Terceiro Setor, de acordo com a terminologia que hoje permeia o conceito da “responsabilidade social”. De certa forma, esta expressão evoca alguns dos antigos princípios do cooperativismo, aplicados agora em termos mais abrangentes.

            Mas, o que vem a ser realmente e qual é a verdadeira amplitude do movimento mundial em prol da “Responsabilidade Social”? Tais questões são o escopo deste pronunciamento.

            As terminologias medram geralmente às custas de modismos e parece-me que a atualmente em voga também obedece a essa regra. A “setorização” da sociedade surgiu sob a influência de discussões relacionadas com a chamada “Terceira Via”, um caminho político-econômico que seria eqüidistante do capitalismo e do socialismo, dos quais herdaria aspectos considerados bons e desprezaria os demais. Constituiria algo como uma combinação de ambos os sistemas, tanto do ponto de vista dialético, como do formal. Ao nível de governo, já existem experiências nesse sentido, em algumas nações européias.

            O fato é que, agora, se costuma classificar as estruturas nacionais em três níveis: o Primeiro Setor, que seria o Estado; o Segundo Setor, assim considerado o mercado; e o Terceiro Setor, constituído por “organizações privadas sem fins lucrativos e que geram bens, serviços públicos e privados”, como classifica a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Aliás, a FGV - instituição educacional das mais importantes, reconhecida internacionalmente - criou, em 1994, o Centro de Estudos do Terceiro Setor (CETS) com a finalidade de introduzir a área de Administração para Organizações não-Lucrativas, em sua Escola de Administração de Empresas (AESP-FGV).

            Como aquela definição deixa antever, o Terceiro Setor abrange, por exemplo, as ONGs, cooperativas, associações e fundações, que sempre teriam o objetivo de promover “o desenvolvimento político, econômico, social e cultural no meio em que atuam”. Nos últimos anos, o setor alcançou expansão muito expressiva no Brasil. Compreende, no País, mais de 250 mil entidades que empregam cerca de dois milhões de pessoas, chegam a movimentar, em apenas um ano, recursos da ordem de 1,2% do PIB - ou seja, 12 bilhões de reais - e favorecem mais de 9 milhões de cidadãos (6% da população brasileira), como aconteceu em 1998, conforme pesquisa da Universidade Johns Hopkins. Nessa ocasião, 10% da população brasileira (mais de 15 milhões de pessoas) doaram recursos àquelas entidades e já havia 12 milhões de voluntários trabalhando pela causa no Brasil. Nos Estados Unidos e em países da Europa, o Terceiro Setor movimenta quase 6 % do PIB e emprega acima de 12 milhões de pessoas diretamente. Acredita-se que, na década passada, tenha beneficiado mais de 250 milhões de filhos dessas nações.

            A FGV considera que “essas entidades são pouco conhecidas, divulgadas e valorizadas”, embora englobem comumente experiências de trabalho comunitário e de solidariedade. Pensa ainda que, na década de 80, “tiveram maior visibilidade, abrindo caminho para a participação cidadã" e lembra que, “hoje, é possível parcerias com Governos, empresas e, devido à informática e à formação de redes, comunicação mais ágil, dinâmica e efetiva”.

            O professor Luiz Carlos Merege, doutor pela “Maxwell School of Citizenship and Public Affairs” (Escola Maxwell de Cidadania e Negócios Públicos) da Universidade de Syracuse, EUA, coordena o curso de Administração para Organizações do Terceiro Setor e o Centro de Estudos do Terceiro Setor (CETS), da FGV/EASP. Afirma que “tais projetos se constituem na materialização de um sonho de seus idealizadores que passam a dedicar todas as suas energias para uma determinada causa”. No artigo-editorial intitulado “A Difícil Tarefa de Administrar Sonhos”, publicado pela revista eletrônica “IntegrAção”, da FGV, neste mês, ele apresenta outras afirmações e conceitos que merecem ser analisados. Passo a reproduzi-los:

“São (os idealizadores) verdadeiros empreendedores que indignados com a situação social em nosso país decidiram dedicar o seu trabalho para a transformação de pessoas e proporcionar melhoria nas condições de vida da população mais carente. Ao implementarem o seu projeto deparam com uma demanda que ultrapassa de longe suas capacidades de atendimento. Se pensarmos em categorias clássicas como oferta e demanda, não existe mercado mais desequilibrado no Brasil do que o mercado dos chamados bens públicos. A acelerada urbanização que o país vivenciou nos últimos cinqüenta anos resultou em parcelas crescentes de nossa população que não têm acesso a serviços essenciais para uma vida digna. Este desequilíbrio seria uma das explicações para o rápido crescimento do Terceiro Setor nas últimas décadas tendo em vista as inúmeras oportunidades que oferece para aqueles que desejam dedicar suas vidas a serviço da coletividade.

“A forte e crescente pressão por mais serviços ocasionou uma situação particular nas organizações do Terceiro Setor. As organizações até agora vinham focando suas ações prioritariamente para as atividades fim, para sua missão. Neste modelo a sua maior preocupação era com a qualidade dos serviços e com a captação de recursos que garantissem a sua sobrevivência. Atualmente, além das pressões da demanda por mais serviços na comunidade onde atuam, as organizações estão sendo procuradas por governos e pela iniciativa privada para parcerias em projetos que clamam por uma ampliação de sua capacidade de atendimento. Sem contar que importantes organismos de financiamento internacionais decidiram incrementar suas transferências de renda e investimentos para o Terceiro Setor. Estas pressões estão exigindo uma nova forma de administrar a sustentabilidade das organizações, tanto na ponta da prestação de serviços como na sua retaguarda administrativa. E os dirigentes das organizações conscientizaram-se rapidamente de que há uma premente necessidade de revolucionar a forma de gestão no Terceiro Setor. Esta conscientização aparece claramente no aumento considerável da procura por cursos de gestão social no nosso país. Exemplo desta demanda crescente é o número de inscrições no curso que é oferecido pela FGV em São Paulo. Este número está entre os dois maiores dentre mais de 30 cursos oferecidos pelo Programa de Educação Continuada. A relação de candidatos por vagas tem sido de quatro para uma, indicando uma grande vontade dos dirigentes de entrarem em contato com conhecimentos que resultem em um melhor desempenho administrativo de suas organizações.

“Considerar as atividades meio tão importante como as atividades fim para a sustentabilidade das organizações, se constitui em um grande desafio para se combinar a realização de sonhos com técnicas. Muitos dirigentes reagem a essa proposta temendo que novas técnicas e métodos administrativos possam diminuir o idealismo das missões a que se comprometeram. Por tratar-se de um enfoque mais sistêmico, ou seja, sair de um caso particular de oferta de um determinado serviço para uma abordagem institucional, os desafios são de fato enormes. Exemplo desta dificuldade aparece quando se solicita aos dirigentes que elaborem um plano estratégico institucional. Para aqueles que nunca trabalharam com tal técnica, este desafio, não raras vezes, é confundido com a elaboração de um projeto específico e o conteúdo de tal exercício acaba refletindo os formulários que geralmente são preenchidos para se captar recursos junto a órgãos financiadores.

“A abordagem sistêmica significa uma grande mudança qualitativa no papel dos dirigentes. O primeiro grande desafio surge com o abandono da forma passiva de administrar, isto é, de resolver problemas que já aconteceram para uma atitude preventiva e pró-ativa. O conhecimento e familiaridade com os conceitos de planejamento estratégico institucional tornam-se essenciais para se iniciar o processo de mudança na forma de gestão. Eles permitirão uma análise metodológica dos contextos interno e externo, que acaba indicando quais as mudanças administrativas necessárias assim como quais oportunidades devem ser abraçadas e transformadas em projetos. Desta forma os projetos passam a fazer parte de uma estratégia institucional, deixando de ser iniciativas autônomas para se constituírem em objetivos táticos no cumprimento da missão. A lógica deste procedimento é tão forte que quando colocada sob a forma de um pequeno documento - o plano estratégico - tem dado excelente resultado na captação de recursos.

“As organizações que já passaram por tal processo de mudança acabaram descobrindo que cuidar metodologicamente das questões administrativas significa evitar grandes turbulências em sua trajetória de vida, liberando os seus dirigentes para dedicar mais energia na luta pela causa que abraçaram. “

            A importância de tais considerações sobre o Terceiro Setor avulta quando se percebe que muitas de suas concepções foram transpostas para o Segundo Setor. Passaram a integrar uma idéia mais ampla sob o nome de “Responsabilidade Social”, às vezes acrescido de adjetivos como “corporativa” ou “empresarial”. Por extensão, surgiu a imagem da “empresa cidadã”.

            O Núcleo de Ação Social da Fiesp/Ciesp (Federação e Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) considera que “termos como Responsabilidade Social, Empresa Cidadã e Balanço Social têm sido usados com freqüência pela mídia, Governo, entidades de classes, empresários e trabalhadores, mas muitos empresários, notadamente os micro, pequenos e médios, têm grandes indagações de como atuar para desenvolver ações sociais”. Isto é devido, principalmente, à insuficiência de recursos financeiros, “no momento em que a maioria das empresas tem sérias dificuldades para manter seus negócios”. Esses empresários comandam a grande maioria das 100.103 indústrias existentes no Estado e 82,4% possuem até 19 empregados.

            A Fiesp/Ciesp afirma que “para o empresário, seu maior instrumento é o seu ‘valor agregado’ que advém de ações éticas e morais, exemplos de vida voltados para o trabalho produtivo e a conseqüente distribuição de riquezas”. Diz também que “o respeito e a confiança, obtidos em suas comunidades, propiciam a articulação de parcerias e o credenciam a incentivar o voluntariado para respaldar seu trabalho social”. E acentua:

“A Responsabilidade Social e a Cidadania Empresarial crescem no mundo todo e as empresas lucram com essas ações. No Brasil, a ação social do empresário tem, também, a função de reconstrução e reunificação do País, perigosamente dividido pela perversa política de concentração da renda e a conseqüente exclusão social. O micro, pequeno e médio empresários, historicamente, já atuam como educadores em seus núcleos de influência privado. Porém, casos concretos de ações sociais desenvolvidas por muitos desse s empresários, junto à comunidades, são exemplos do poderoso instrumento para o exercício da responsabilidade empresarial - o capital social - formado pelo respeito e confiança da comunidade onde se inserem. O empresário pode, também, exercer sua responsabilidade social, empregando um adolescente carente, treinado e motivado para o trabalho.”

            A expressão “responsabilidade social” refere-se, portanto, aos Segundo e Terceiro setores. O adjetivo “empresarial” concernente ao Segundo Setor indica, de acordo com definição corrente no Canadá e outros países desenvolvidos, o “papel que as corporações podem ter na promoção da saúde e segurança de seus funcionários, proteção do meio ambiente, luta contra a corrupção, apoio em casos de desastres naturais e respeito aos direitos humanos nas comunidades em que operam”. Enfatizo a presença, nesse conceito, da frase “luta contra a corrupção” porque trata de crime dependente do agente passivo (aquele que se deixa corromper) e do agente ativo (quem corrompe, isto é, aquele que oferece e paga o suborno). Daí a importância de uma atitude ética e honesta das empresas como contexto de “responsabilidade social”, também devido ao elevado potencial de corrupção ativa, presente em qualquer processo de acúmulo de capital.

            A ONG “Transparência Internacional”, famosa por publicar anualmente um “ranking” dos países mais corruptos do mundo, considera que “corrupção se combate preventivamente” porque, na maioria das vezes, tentar extingui-la através de ações repressivas, como as comissões parlamentares de inquérito, “não leva a nenhum lugar”. Para o Sr. Miguel Schloss, chileno e seu Diretor-Executivo, “o sucesso depende dos mecanismos que a sociedade crie para fiscalizar os negócios com o dinheiro público”. E é através desse prisma que também se deve considerar a participação social das corporações empresariais. Ele entende ser falsa a afirmação de que, com o tempo, “as eleições purificam os governantes”. E frisa:

“Na verdade, o processo é inverso. Eleições, sozinhas, não purificam nada. Só quando há mais gente se preocupando com o tema ele passa a fazer parte da agenda política. Quando a sociedade é fraca porque o país não é tão desenvolvido quanto o desejável, forma-se um círculo vicioso, que se rompe apenas quando passam a existir maneiras que permitam à sociedade civil falar de igual para igual com os Poderes, exigindo mais transparência e eficiência”.

             Empresários canadenses, que desempenham importante papel no movimento em prol da “responsabilidade social”, consideram que o grande interesse despertado pelo tema é devido “à importância do comércio internacional e dos investimentos na concepção das prioridades de instituições e de governos nacionais”. Acreditam na existência de “um reconhecimento geral de que o comércio e os investimentos são os motores do crescimento econômico”, mas sabem que o público, freqüentemente, “considera como negativa a atividade mercantil internacional como fator de integração econômica global”. Assim, as empresas se estão tornando cada vez mais cientes de que “um comportamento exemplar é um bom negócio para elas”. No Canadá e Estados Unidos, “companhias que adquiriram uma reputação positiva junto aos consumidores graças a um sólido desempenho social e ambiental acumulam diversos benefícios”. Um deles é a atração exercida sobre “indivíduos de boa qualificação que buscam companhias com responsabilidade social, onde, uma vez empregados, permanecem ao longo de suas carreiras profissionais”. Por conseqüência, “tais empresas formam uma clientela fiel, têm menor volatilidade no valor de suas ações e reduzem os custos jurídicos e ambientais.”

            No âmbito do NAFTA (“North American Free Trade Agreement” ou Acordo Norte-Americano de Livre Comércio), firmado entre os Estados Unidos, Canadá e México, está havendo esforços para despertar o interesse da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo tema. Objetiva-se, com isso, fazer a organização considerar seriamente as possibilidades de “encorajar maior envolvimento do setor privado na promoção de um comportamento socialmente responsável e de boa administração, com a contribuição de outros grupos da sociedade civil e de parlamentares", conforme documento sobre a “Segurança Humana nas Américas”, distribuído pelo governo canadense através de seu Ministério de Relações Exteriores e Comércio Internacional. Como conseqüência desses esforços, a Responsabilidade Social Empresarial (SER) passou a figurar recentemente na agenda da OEA.

            Espero poder desempenhar no Senado da República, através principalmente da Comissão de Assuntos Sociais (CAS), cuja Presidência exerço, um papel conscientizador semelhante ao dos canadenses no âmbito da OEA, em relação à responsabilidade social no seu sentido amplo, uma vez que inexiste legislação destinada ao incentivo direto de seu desenvolvimento ou de projetos pertinentes. Entretanto, diversos dispositivos da Constituição de 1988 já propiciam uma conjuntura incentivadora. Por exemplo, conforme o inciso XVIII do artigo 5.°, associações e cooperativas podem ser criadas sem necessidade de autorização estatal e o Estado não pode interferir no seu funcionamento. Outro inciso do mesmo artigo (o de número XXI) garante que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. Mais um (o XXIII) especifica que “a propriedade atenderá a sua função social”.

            Por outro lado, ao dispor sobre a ordem econômica (artigos 170, 174 e 218), a Constituição determina ainda, além da função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor etc., o respeito à “defesa do meio ambiente”, “redução das desigualdades regionais e sociais” e “busca do pleno emprego”. Diz mais: o planejamento que o Estado fizer, como agente regulador e normativo da atividade econômica, será apenas “indicativo para o setor privado”. Finalmente, determina que a lei apoie e estimule o cooperativismo e outras formas de associativismo, assim como também deve fazê-lo em relação às empresas que invistam em “formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho”. Para se legislar dentro dessa realidade constitucional, em se tratando de incentivo dirigido à “empresa cidadã”, a imaginação é o limite.

            O tema “responsabilidade social empresarial” ganhou maior consistência após o Secretário-Geral da ONU, Sr. Kofi Annan, propor no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro de 1999, uma agenda mínima de nove princípios “reconhecidos como universais nas áreas de direitos humanos, trabalho e meio ambiente”. Deu-lhe o nome de “Global Compact” (Pacto Global). Por intermédio de entidades oficiais e particulares - como o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, no Brasil - que se engajaram no movimento, o Sr. Kofi Annan obteve a adesão de inúmeros grupos empresariais e firmas singulares para “promover a cidadania global, através da incorporação de valores universais no mundo dos negócios”, em cooperação com “as agências da ONU, governos e organismos internacionais”. Destacam-se, entre essas agências e organismos, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH/ONU); a Organização Internacional do Trabalho (OIT); o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA/ONU); e a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCED), que interagem com inúmeras ONGs, sindicatos e associações assemelhadas ao redor do mundo.

            Eis os princípios do Pacto Global (ou “Global Compact”):

            (No campo dos Direitos Humanos)

            Princípio 1: Apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos internacionais dentro de seu âmbito de influência;

            Princípio 2: Certificar-se de que suas próprias corporações não estejam sendo cúmplices de abusos em direitos humanos.

            (No campo do Trabalho)

            Princípio 3: Apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva;

            Princípio 4: Apoiar a eliminação de todas as formas de trabalho forçado e compulsório;

            Princípio 5: Apoiar a erradicação efetiva do trabalho infantil;

            Princípio 6: E o fim da discriminação com respeito a emprego e cargo.

            (No campo do Meio Ambiente)

            Princípio 7: Adotar uma abordagem preventiva para os desafios ambientais;

            Princípio 8: Tomar iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental;

            Princípio 9: Incentivar o desenvolvimento e difusão de tecnologias ambientalmente sustentáveis.

            Assim, o tema adquiriu relevância nos principais centros da economia mundial. Fundos de investimentos, formados por ações de empresas “socialmente responsáveis”, proliferam nos Estados Unidos e Europa. Por exemplo, a necessidade de integração dos fatores econômicos, ambientais e sociais nas “estratégias de negócios das empresas” está enfatizada no “Sustainability Index”, da Dow Jones. Avultam igualmente normas e padrões certificáveis, como as normas SA8000 (relações de trabalho) e AA10000 (diálogo com partes interessadas).

            Já existe copiosa bibliografia a respeito em nosso meio. Dispomos, por exemplo, do livro “Responsabilidade Social e Cidadania Empresarial - A Administração do Terceiro Setor”, dos professores Francisco Paulo de Melo Neto, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e consultor do Banco Mundial, e César Fróes, da Universidade Federal Fluminense e também pertence à UFRRJ. Constitui manual básico para quem deseje estudar o tema, que chegou a unir a Fiesp, o Partido dos Trabalhadores (PT) e grandes empresas, como General Motors, Unibanco e Eletropaulo num projeto denominado “Empresa Cidadã”.

            O movimento em prol da “responsabilidade social” vem adquirindo impulso no Brasil graças a ONGs, institutos de pesquisa e empresas engajadas. Exemplo disso é o trabalho do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) para promover o “Balanço Social”, isto é, a contabilização e publicação anual do que a empresa produziu socialmente. Esse impulso atraiu a São Paulo a Sra. Peggy Dulany, filha do bilionário banqueiro norte-americano David Rockefeller e Presidente do Instituto Synergos, dos EUA, entidade fundada há 16 anos e dedicada à promoção da filantropia e da responsabilidade social empresarial. É dela esta frase, proferida num simpósio aqui realizado dois anos atrás:

“O interesse das empresas na construção de uma sociedade civil forte, democrática, digna e justa nem sempre é óbvio, mas é do seu interesse contar com uma base forte de consumidores, com uma economia estável e com uma força de trabalho educada.”

            Sintoma do crescente interesse empresarial brasileiro é a obtenção de certificados de padrão de qualidade e de adequação ambiental, como as normas ISO, por centenas de nossas empresas. Outro exemplo notável está nas campanhas da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, notadamente contra o trabalho infantil. O interesse é tamanho que 469 empresas brasileiras, com 750 mil funcionários, associaram-se voluntariamente ao Instituto Ethos, em apenas três anos (tempo de existência da entidade), para participar do Pacto Global. Isto porque - como dizem os Srs. Oded Grajew, Diretor-Presidente do Ethos, e Hélio Mattar, Diretor-Presidente do Instituto Akatu e da Fundação Abrinq, o consumidor tem o poder de optar por determinadas empresas e isso é fundamental “para que ocorra a revolução do consumo, do cotidiano e do gesto individual”. O Sr. Hélio Mattar exemplifica com o que aconteceu no âmbito das empresas Nike, Unilever, Pizza Hut, Coca-Cola, Bacardi e Danone, “boicotadas devido a denúncias de uso de mão de obra infantil e falta de ética na propaganda”: “houve uma mudança na relação consumidor/empresa, o produto deixou de ser o contato da empresa com o consumidor e ela se tornou transparente”. Ele exprime, dessa maneira, sua crença em que “o consumidor consciente também é parte fundamental na transformação do mundo”.

            Por sua vez, o Sr. Oded Grajew, também Diretor-Presidente do Conselho de Administração da Fundação Abrinq, acentua:

“Ao defender os direitos dos trabalhadores e os direitos humanos em geral, ao denunciar a degradação ambiental e a exploração de crianças no trabalho, ao defender os direitos dos consumidores, condenar a injustiça social e a discriminação de raça, gênero e idade, defender os direitos dos portadores de deficiências (física, mental e sensorial), promover os valores da solidariedade, estabelecer uma legislação de proteção aos direitos trabalhistas, humanos, sociais ambientais e formar profissionais com valores éticos, estas organizações criam um contexto cada vez mais incentivador à responsabilidade social empresarial.”

            Os resultados dessas idéias foram sentidos num seminário realizado recentemente pela Rede Globo de Televisão, em São Paulo, para debater o tema “Merchandising Social”, isto é, a inserção de temas sociais nas novelas de TV. Elas motivaram, igualmente, campanhas radiofônicas para disseminar e ampliar o debate sobre a responsabilidade social empresarial, como aquela realizada em 21 cidades brasileiras, em junho último, pela Rádio CBN (Central Brasileira de Notícias), sob o título “Empresa Voluntária”.

            A Universidade de São Paulo realizou, em 1999, pesquisa inédita sobre a responsabilidade social corporativa e produziu conhecimentos inesperados, como, por exemplo, o de que “as empresas perceberam que não podem mais se fechar dentro de seus muros”, de acordo com a Profa. Maria Fischer, do Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor (Ceats) da USP. Isto porque, naquele ano, 56% das empresas em operação no Brasil já estavam investindo em programas e atividades de cunho social ou comunitário e na promoção do voluntariado entre seus funcionários. Como amostragem, foram ouvidas 273 pessoas jurídicas de grande, médio e pequeno porte em nove Estados e no Distrito Federal.

            Cerca de 48% delas apoiavam a atuação de seus funcionários como voluntários em projetos sociais, 17% durante o horário regular de trabalho. Mais da metade tinha alguma ação principalmente quanto à assistência a crianças e adolescentes carentes e na área da educação. Entre as empresas públicas, 42% informaram atuar na área social, contra 61% das multinacionais e 56% das nacionais.

             Antes de concluir este pronunciamento, desejo reverenciar uma pessoa que deve ser lembrada como incomparável incentivadora da responsabilidade social em nosso meio, assim como os que estão dando continuidade ao seu trabalho. É ela a Sra. Ginetta Calliari, falecida dia 8 de março último e que foi co-fundadora do Movimento dos Focolares, ao lado de Chiara Lubich, na Itália, em meio à II Guerra Mundial. Em 57 anos de existência, esse movimento provocou renovação espiritual e social em mais de 7 milhões de pessoas de todas as idades, raças, culturas, condições sociais e convicções religiosas, em 198 países. No cenário brasileiro, a figura de Ginetta emergiu como líder e construtora de uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, fundamentada no amor evangélico que gera uma nova ordem social. Com tenacidade e fé inabalável, ela construiu pontes de diálogo e inúmeras obras em todos os campos da atividade humana. Nasceu em Trento (Itália), em 15 de outubro de 1918, e, sob a influência de sua amiga e líder Chiara Lubich, resolveu dedicar a vida à implementação do mandamento de Jesus: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei".

            Em 1991, Chiara Lubich veio ao Brasil e lançou o projeto Economia de Comunhão, que articula princípios da economia, solidariedade e liberdade. A novidade está na distribuição do lucro, dividido em três partes: uma para reinvestimento na própria empresa; outra para ir ao encontro dos necessitados; e a derradeira destinada a formar pessoas com uma mentalidade aberta à "cultura da partilha". Ginetta Calliari desempenhou papel pioneiro na implantação do Pólo Empresarial Spartaco, a 4 km da cidadezinha Mariápolis Araceli, em Vargem Grande Paulista, sede do movimento no Brasil. Atualmente estão em funcionamento nesse pólo seis empresas do projeto Economia de Comunhão. No mundo inteiro, são 775 empresas e atividades produtivas, das quais 80 no Brasil. Aqui existem hoje três cidadezinhas-testemunho (as chamadas “Mariápolis permanentes”) e cinco Centros Mariápolis (em Igarassu-PE, Benevides-PA, Manaus-AM, São Leopoldo-RS e Vargem Grande Paulista-SP), dedicados à formação espiritual e sócio-cultural dos cerca de 280 mil membros desse movimento, bem como 55 centros de difusão em várias capitais do País. As Mariápolis tornaram-se espaço de diálogo entre cristãos, fiéis de outras religiões e pessoas que, mesmo sem um referencial religioso, buscam a vivência de valores universais. Esta experiência tem reflexos também no tecido social, notadamente nos setores da educação, saúde, política, arte e promoção humana.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, espero haver contribuído para o debate e esclarecimento de questões momentosas. Creio que, periódica e individualmente, devamos realizar um “balanço social” de nossas ações porque a responsabilidade social transcende o campo corporativo, diz respeito a cada um de nós. Eu a resumiria num “slogan”: abaixo a malandragem!

            Na verdade, a Responsabilidade Social envolve, ao mesmo tempo, o alicerce e a prática consciente da liberdade e da cidadania.

            Muito obrigado.


            Modelo112/1/246:06



Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/09/2001 - Página 22762