Discurso durante a 133ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Necessidade de providências do governo federal para minorar os problemas que atingem as populações dos manguezais do Nordeste.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • Necessidade de providências do governo federal para minorar os problemas que atingem as populações dos manguezais do Nordeste.
Publicação
Publicação no DSF de 12/10/2001 - Página 24616
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, EXPLORAÇÃO, DESTRUIÇÃO, MANGUE, ESPECIFICAÇÃO, AUMENTO, EXTRAÇÃO, CAMARÃO, PREJUIZO, MEIO AMBIENTE.
  • SUGESTÃO, GOVERNO FEDERAL, APOIO, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), MINISTERIO DO MEIO AMBIENTE (MMA), CRIAÇÃO, RESERVA EXTRATIVISTA, MANUTENÇÃO, POPULAÇÃO, MANGUE, DESAPROVAÇÃO, ATIVIDADE, MINISTERIO DA AGRICULTURA PECUARIA E ABASTECIMENTO (MAPA), INCENTIVO, FAZENDEIRO, CAMARÃO, NECESSIDADE, CONTROLE, EXTRAÇÃO, MADEIRA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de tratar de um assunto que há algum tempo o meu gabinete vem estudando, numa interação com algumas comunidades e entidades, concernente aos manguezais.

            Infelizmente, o nosso País não tem dado a devida atenção a esse imenso patrimônio que tem uma função essencial na reprodução da vida marinha e contribui para que as pessoas que praticam a extração de camarões e mariscos possam viver com a mínima decência e respeito. Hoje, há grande incentivo, por parte de autoridades federais e estaduais, às fazendas de camarões, que acabam por destruir, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do ponto de vista social, as possibilidades de existência de vida digna para essas populações.

            Numa recente audiência com o Presidente do Ibama, solicitamos providências contra a exploração indiscriminada de madeira, que também é um outro problema que afeta a nossa população e o nosso meio ambiente, mas a exploração dos nossos manguezais, fundamentalmente, tem sido motivo de preocupação para muitas pessoas.

            Esse problema atinge diretamente as comunidades extrativistas marinhas, especialmente as dos manguezais do Nordeste, e sobretudo nos dois últimos anos, nosso mandato tem recebido muitas denúncias e pedidos de apoio por parte dessas comunidades. Em função disso, no mês de setembro, encaminhamos algumas dessas denúncias e acompanhamos militantes do movimento SOS Mangues, do Rio Grande do Norte, em diversas audiências. Também visitamos a comunidade de Encarnação, no litoral do Estado da Bahia.

            Os mangues, além de serem o útero e o berçário marinho, fonte de subsistência para muitas comunidades humanas, também são uma proteção física importantíssima em relação à ação do mar sobre o continente. Milhares de pequenas comunidades em todo o litoral brasileiro, quase sempre remanescentes quilombolas, indígenas ou caiçaras, têm vivido secularmente de uma relação onde os mangues alimentam as pessoas e as pessoas preservam os mangues, algo muito semelhante aos povos das florestas na Amazônia

            Antigamente, os homens iam à pesca e à caça de caranguejo, enquanto as mulheres e as crianças iam mariscar praticamente no quintal de casa. Havia abundância de mangues e de nutrientes, uma imensa diversidade de peixes que ali desovavam, mariscos, siris e caranguejos, camarões e ostras de todos os tipos. Por algumas gerações, famílias numerosas cresceram e se multiplicaram com pouco dinheiro e muita saúde, por conta da rica diversidade biológica desse ecossistema. A coleta básica era alimento; o excedente era vendido ou trocado na feira mais próxima. “Nunca faltava o de comer e de não passar vergonha” - dizem os mais velhos.

            Contudo, nos últimos quinze anos, uma intensa degradação se abateu sobre os mangues nordestinos, desabrigando uma extensa rede de relações vitais que incluía seres humanos. Quando não é a especulação imobiliária ou a poluição industrial e sanitária, é a voraz produção de camarões em viveiros, conhecida como carcinocultura. Protegidos legalmente como Áreas de Preservação Permanente (APP) e de Marinha - portanto, bens da União - os manguezais têm sido rapidamente abatidos por “novos donos”, munidos de precárias e duvidosas licenças ambientais. Rapidamente vão se transformando em insólitos viveiros de camarões (geralmente de espécies exóticas).

            Como essa atividade vem provocando derrubada das árvores do mangue, passa a faltar alimento para inúmeras espécies. Sem a sombra, fica comprometida a reprodução de outras tantas espécies de moluscos e peixes, e as ostras não têm mais onde se fixar. Assim, se vê seriamente alterada toda uma cadeia biológica que se estende até águas profundas.

            Além do mais, na troca de água dos viveiros, são periodicamente descartados no ambiente a ração, os antibióticos e outros elementos químicos utilizados nos viveiros. Essa prática é altamente nociva ao que resta no mangue próximo às chamadas “fazendas de camarão.”

            Nas antigas áreas de mariscagem, agora com status de “propriedade privada”, as mulheres e crianças da comunidade não podem mais passar. Têm de caminhar quilômetros na areia molhada da maré baixa, voltando a pé com até trinta quilos de mariscos na cabeça, debaixo do sol quente do meio dia - as crianças menores ou as mulheres mais velhas agora ficam em casa. Dizem que hoje em dia leva-se o dobro do tempo para se juntar metade do que se conseguia noutros tempos. E quando chegam em casa, após muitas horas de trabalho, o pesado conteúdo dos balaios se transforma em dois quilos de mariscos limpos a serem vendidos na feira por R$2,00 ou R$3,00 o quilo.

            A antiga abundância do manguezal, que a todos satisfazia, unia e dignificava, agora, é escassez, opressão e insegurança.

            Carcinocultura implantada dessa maneira exige pequeno capital inicial e responde com um lucro rápido e vultoso. É verdade que, para a exportação, a produção de camarões de cultivo nos mangues do Nordeste é um excelente negócio do ponto de vista econômico, mas precisa ser melhor administrado do ponto de vista socioambiental. Infelizmente, em detrimento da legislação ambiental que protege os mangues, setores do Governo Federal e de Governos Estaduais vêm estimulando essa atividade sem o devido controle, sob o pretexto de que gera emprego e aumenta a arrecadação de impostos. Contudo, por força dessa atividade, a quantidade de pessoas que desce da linha da pobreza para a miséria é de tal monta que os lucros públicos e privados não cobrem os prejuízos socioambientais. Crescem as distâncias e concentra-se a riqueza nas mãos de uns em detrimento dos demais e do ecossistema que abriga a todos.

            Tal como ocorre na Amazônia e no que resta da Mata Atlântica, os empreendedores dessa atividade vêm pressionando o Congresso Nacional por alterações na legislação ambiental - ora por via do Código Florestal, ora por meio de projetos de lei específicos.

            No ano passado, houve um projeto de lei que tramitou nesta Casa que, do meu ponto de vista, felizmente não foi aprovado. Novamente, houve uma tentativa, quando da tramitação na Comissão Especial, que dava parecer ao Código Florestal, uma nova tentativa de incluir os manguezais como uma área de interesse social, visando fundamentalmente o interesse daqueles que exploram essa atividade em detrimento das comunidades extrativistas, que vivem da extração dessas espécies que alimentam as suas famílias e que lhes possibilitam alguma renda.

            O que essas propostas não revelam é que há apenas 15% dos manguezais brasileiros na faixa que vai do Ceará até Santa Catarina. Grande parte dessas áreas já foi desmatada para expansão urbana ou industrial. Os remanescentes encontram-se permanentemente ameaçados por rejeitos urbanos e industriais, retificação de cursos de água e fazendas de camarão.

            Várias comunidades, no entanto, começaram a organizar uma reação que une marisqueiros, caranguejeiros e pescadores a organizações sociais, biólogos, juristas e políticos de oposição. Inspirado na saga dos seringueiros da Amazônia, o movimento reivindica a implementação de reservas extrativistas marinhas, a recuperação de manguezais degradados e a melhoria das condições de vida de suas comunidades.

            No primeiro dia deste mês, em audiência na sede do Ibama, a questão dos mangues foi mais uma vez tratada com o presidente Hamilton Casara. Quanto aos casos ocorridos no Rio Grande do Norte e na Bahia, no Município de Encarnação especialmente, o Dr. Hamilton Casara disse que já ordenou a paralisação das operações nas fazendas com desmates ilegais, além de também verificar, juntamente com o CNPT, a criação de reservas extrativistas para aquelas populações.

            Acredito que, se formos capazes de pôr um freio na busca de lucro desenfreados por alguns grupos empresariais que não percebem o prejuízo que estão causando, tanto às comunidades quanto ao ecossistema, e de criarmos algumas reservas extrativistas a exemplo do que já fizemos na Amazônia - em áreas de floresta rica em biodiversidade, recursos naturais de seringa, castanha e outros recursos naturais que possibilitam vida digna àquelas famílias -, se fizermos a mesma coisa nos nossos manguezais, o Ibama e o CNPT, juntamente com o Ministério do Meio Ambiente, estarão dando uma grande contribuição do ponto de vista socioambiental a essa problemática.

            Tenho absoluta certeza, Sr. Presidente, que é fundamental que se tenha um encontro de ações do Governo Federal com os seus vários Ministérios, porque, se de um lado há preocupação por parte do Ministério do Meio Ambiente, na figura do Dr. Casara, com relação à preservação desses ecossistemas, do outro, temos uma ação do Ministério da Agricultura que incentiva a criação de camarão em fazendas. Isto, sob o meu ponto de vista, é uma espécie de esquizofrenia na política ambiental do Governo que não nos levará a uma ação que dê a resposta que o nosso País precisa.

            Durante o período em que não havia o “olho gordo” dos investidores privados nessas áreas de manguezais, as comunidades extrativistas viviam da pesca das espécies que mencionei anteriormente e tínhamos ali uma pressão mínima sobre esses recursos naturais. Agora, além da extração, da desconstituição do ecossistema, ainda são lançados resíduos que contaminam aquela área e tornam impossível a reprodução de determinadas espécies que, aos poucos, vão desaparecendo, causando um grande empobrecimento para as nossas riquezas naturais, principalmente para as diversas espécies que se constituem em fonte de renda para muitas populações, principalmente as quilombolas.

            Até o momento, no entanto, não se tem mencionado resultados concretos das providências que o Presidente do Ibama citou naquela audiência. Mas esperamos que essas providências sejam tomadas o mais rápido possível, até porque sabemos do empenho e do compromisso do Dr. Casara - que se tem dedicado, em que pese uma estrutura que não está à altura das necessidades da problemática ambiental do nosso País, principalmente no que se refere à fiscalização e ao controle de ações irregulares. Sabemos que são muitas as demandas. Eu mesma, no dia em que tive audiência com o Dr. Casara, não levei apenas a questão referente aos mangues, mas também a exploração irregular de madeira no sul do Amazonas, a necessidade da criação de reserva extrativista no Cazumbá-Iracema, lá em Sena Madureira, entre outras questões. Enfim, são muitas as demandas ao Ibama. Mas, neste caso, estamos diante de uma emergência em que de um lado as comunidades estão pressionando - até porque já não têm mais condições de resistir à busca desenfreada de lucro por parte das empresas que criam camarões - e, de outro, os movimentos ambientalistas percebem o risco a que esse ecossistema está submetido e buscam uma resposta por parte das autoridades competentes, inclusive do Congresso Nacional.

            Temos que ter muito cuidado quando aparecem projetos de lei que se constituem como verdadeiras panacéias para determinadas questões sociais. Por trás de tudo isso, com certeza, há o interesse econômico de grandes grupos que querem desalojar centenas de famílias que vivem da coleta de mariscos ou da pesca do camarão e de ostras para instituir fazendas de produção de camarão que darão lucros apenas ao grupo, que se apropriará da área com titulação e com licenciamento duvidosos. Portanto, não podemos pactuar, em hipótese nenhuma, com esse tipo de projeto.

            Também temos de apoiar a proposta apresentada ao Presidente do Ibama no sentido de que o Centro Nacional das Populações Tradicionais - CNTP, possa criar ali reservas extrativistas a fim de que essas comunidades continuem sobrevivendo e continuem fiscalizando e controlando aqueles ecossistemas - porque existe uma integração saudável entre as comunidades de caiçaras, de pescadores quilombolas, outros grupos sociais e o ecossistema que manejam. Da mesma forma que os seringueiros fazem o manejo sustentável das reservas extrativistas ao longo de séculos, essas comunidades têm feito o mesmo em relação ao mangue e não têm causado a destruição que observamos ser praticada pelas fazendas de criação de camarão.

            Reconhecemos que as divergências sobre o uso desse patrimônio biológico alcançam outras áreas do Poder Executivo Federal. Mais que divergências, há contribuições explícitas entre as ações do Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente às quais me referi anteriormente.

            Seguramente uma avaliação de impacto ambiental demonstraria facilmente que não há necessidade de se destruir um ecossistema tão produtivo para se desenvolver uma aqüicultura lucrativa no Nordeste.

            Inspirados no bom senso e na experiência das populações tradicionais, poderíamos atentar para algumas condições imprescindíveis ao sucesso integral para tais empreendimentos:

1.     que a extração de alimentos seja devidamente manejada, sem comprometer os estoques;

2.     que a madeira seja extraída apenas para moradia e fabricação de artefatos de pesca;

3.     que salinas ou viveiros não sejam construídos em áreas de manguezais, mas recebam apoio das instituições financeiras e dos órgãos de fomento à pesquisa;

4.     que as áreas de salinas e viveiros abandonados sejam recuperadas ou reflorestadas;

5.     que a disposição de lixo, os aterros e a construção de diques não sejam permitidos em áreas de manguezal.

            Com essas propostas, Sr. Presidente, acredito que estaremos dando uma contribuição para que esse ecossistema seja preservado e para que as práticas de sobrevivência das populações tradicionais possam também ser preservadas.

            Precisamos unir duas ações que são fundamentais à preservação desse ecossistema: o manejo florestal por parte das comunidades e a preservação de seu meio de sobrevivência. Ninguém em sã consciência vai querer destruir aquilo que constitui a sua fonte de renda e de alimentação. Essas comunidades já demonstraram, ao longo dos séculos, que são capazes de fazer esse manejo sem causar a destruição.

            Registro que as entidades que vêm atuando com muita dificuldade para que essas áreas sejam preservadas estão prestando um relevante trabalho à União, porque essas áreas são de domínio público, são de domínio da União. O Governo Federal tem de, por um lado, desarticular a ação incentivadora das fazendas de camarão, praticada pelo Ministério da Agricultura, e, por outro lado, dar todo o suporte ao Ministério do Meio Ambiente para que esse órgão possa efetivamente fiscalizar, controlar e apresentar alternativas de uso sustentável dos nossos mangues.


            Modelo15/18/2411:14



Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/10/2001 - Página 24616