Discurso durante a 138ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões sobre religião, santidade e ateísmo.

Autor
Lauro Campos (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
RELIGIÃO.:
  • Reflexões sobre religião, santidade e ateísmo.
Publicação
Publicação no DSF de 20/10/2001 - Página 25659
Assunto
Outros > RELIGIÃO.
Indexação
  • LEITURA, TEXTO, ANALISE, RELAÇÃO, CONTRADIÇÃO, RELIGIÃO, ORADOR.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, depois de uma semana estafante, quero aproveitar a oportunidade de estar nesta tribuna - oportunidade que não determinamos, não marcamos - para dizer que o que vou ler aqui agora seria mais conveniente ser lido na véspera do Dia de Todos os Santos.

      Quê! perguntam-me se tenho religião, se creio em Deus? Gostaria de não ter religião, de ser uno e inconsútil, sem emendas, e não religado, religioso. Gostaria de desenvolver o cristal que existe em mim, a transparência que não permite colagens, religações, religiosidade.

      Eu não sou uma árvore que apenas balouça seus galhos como braços desarticulados, suas folhas silenciosas e dependura seus frutos que não sabem sequer que são saborosos; eu não sou uma árvore que liga sua parte superior, viva e mutante, ao chão, por meio do tronco uno e frio. Eu sou um ser humano cuja fragilidade se afirma em cada passo que não passa de uma queda interrompida. Eu sou um ser dual, cindido desde os pés por uma ambigüidade básica, por uma fissura que me move. Meus braços e minha cabeça se plantam no meu tronco e este se equilibra sobre a fragilidade e a dualidade das pernas. Ao invés de galhos, de folhas e de frutos, agito braços desgalhados e produzo palavras, expresso sentimentos, paixões, sensações, idéias e ideais.

      O que é básico em mim é a dualidade, a ambivalência, a dúvida, o medo de cair e de morrer. A terrível consciência de meus limites e de minha fragilidade coexiste com minha inteligência, minha força, meus infinitos a cada momento alcançados e, em seguida, ultrapassados. Minha dúvida essencial, minha ambigüidade fundamental produzem uma consciência sempre angustiada, ou angustiada sempre que a consciência pousa e se apodera da intimidade do real. Quero ser uno, íntegro, inteiro. Não quero mentir, mas não tenho forças para arrostar a verdade e a realidade angustiantes e implacáveis.

      Ser coerente e ser pleno é assumir por inteiro a minha dualidade, as minhas ambigüidades; conscientizar-me de minhas dúvidas e abraçar, unindo-as, as minhas partes contraditórias. Minha consciência ainda é uma ilha cinza no meio do mar de ondas negras e ameaçadoras, capazes de fazer submergir minha luz pequena.

      Eu sou palco de infindáveis diálogos entre as partes opostas que compõem a minha diversidade. Se eu fosse um homem-cristal, transparência e lucidez, eu seria um cristal quebrado, cindido, dual, porque cristal-homem.

      Ao assumir minha verdade, tenho de confessar que, embora não queira admitir minha fissura, minha religação, minha reunião, e me rebele contra essa essência verdadeira, dual, ao afirmar que não tenho religião, estou dizendo que, ao mesmo tempo, possuo todas as crenças, ritualizam em mim as magias primevas, existem em mim pavores e fraquezas avoengos e mitos primitivos. Sou um ser fraco, dual e religioso: um ser que se rendeu à verdade. Mas, se meu Selbst junguiano ou meu id e meu inconsciente freudianos são habitados por todas as religiões, mitos, crenças e fantasias, eu também sou ateu e materialista.

      A ilha cinza de minha consciência perdida quer ser continente, vencer ondas negras e brilhar. Ela sabe que o único brilho possível é o clarão angustiado do ser consciente.

      Sou um velho e, de repente, desperta em mim a criança que dormia em meu esquecimento. Levanta, corre e brinca o meu eu criança.

      Nos momentos de plenitude, de força, de levitação, prescindo de minhas pernas, levito. Esqueço os deuses e peco ao assumir-me como totalidade coesa e coerente. Talvez, sugere minha dúvida, ao se fazer materialista e declarar sua independência, você tenha encarnado um semideus: ao se transformar, você se hipostasiou e veio a ser apenas Narciso, o demiurgo da vaidade. E, assim, reafirmo a dualidade e a dúvida que, junto com o trabalho e a linguagem, me produziram, me modelaram e me transformam.

      O que procura, então, nessa sua vida sofrida, por que o olhar já embaçado, os cabelos embranquecidos por uma inquietação constante, por um trabalho contínuo, por um pesquisar e indagar sem fim, se não procura a verdade, por que ela vem de mãos dadas com a angústia? Se não quer ser sábio e desdenha do poder, o que deseja, então, pergunta uma parte de minha unidade à outra parte de minha diversidade. No fundo, tenho de assumir que, materialista e ateu, quero mesmo é ser santo. Não um santo qualquer, com velas nos pés, cercado de uma multidão de devotos e incomodado pelos pedidos sem fim de socorros, pelas solicitações de milagres meus...

      Para cada desvalia, para cada sofrimento ou cada aflição existe um santo de plantão: o santo das crianças, o santo dos velhos, o santo dos presidiários, o santo dos devedores, o santo dos marginalizados, o santo dos negros, o santo dos maus políticos, o dos ladrões e o das prostitutas. Até mesmo os genocidas e os banqueiros têm seu santo, o que provaria a infinita misericórdia de Deus, se ele, existindo, protegesse os bons e a corja, praticando, ao nivelar os opostos, estranha e incompreensível “justiça”.

      Só os materialistas e ateus não têm santo e, por isto, o santo dos ateus seria o mais humilde e esquecido de todos os santos. Logo, o menos vaidoso, o mais santo deles...”

            Humildemente, candidato-me a ser santo dos ateus.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


            Modelo15/3/246:13



Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/10/2001 - Página 25659