Discurso durante a 146ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre a importância da consolidação da Defensoria Pública como instrumento do exercício pleno da cidadania no Brasil.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • Comentários sobre a importância da consolidação da Defensoria Pública como instrumento do exercício pleno da cidadania no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 01/11/2001 - Página 27026
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • CRITICA, SISTEMA, JUDICIARIO, BENEFICIO, CLASSE, SUPERIORIDADE, PODER ECONOMICO, DISCRIMINAÇÃO, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA.
  • ANALISE, NECESSIDADE, REESTRUTURAÇÃO, JUDICIARIO, DEMOCRACIA, ACESSO, JUSTIÇA, CRIAÇÃO, ORGÃO SUPLEMENTAR, DEFENSORIA PUBLICA, COMBATE, INJUSTIÇA, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA.
  • REGISTRO, HISTORIA, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, CIDADÃO, ANALISE, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, GARANTIA, CRIAÇÃO, DEFENSORIA PUBLICA, PROTEÇÃO, DIREITOS, IGUALDADE, ACESSO, JUSTIÇA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, grandes discussões vêm sendo travadas acerca da ingente necessidade de se adotarem mecanismos alternativos e institutos de direito que viabilizem o acesso do cidadão à Justiça. E por Justiça entenda-se não apenas a esfera Judiciária, mas a realização de justiça, enquanto ordem jurídica justa ao alcance de todos. É o que nos ensina o Prof. Horácio Wanderlei Rodrigues, ao defender que "frente à vagueza do termo acesso à justiça, a ele são atribuídos pela doutrina diferentes sentidos. São eles fundamentalmente dois: o primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à justiça e acesso ao Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano". Ambos os conceitos, conclui o Jurista, são válidos e não excludentes; sendo, em realidade, complementares.

Sr. Presidente, há que se ter uma visão mais ampla do sentido do acesso à justiça, considerando-se assim, a adequada e satisfatória prestação deste serviço estatal. Como diz Watanabe, "não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim viabilizar o acesso à ordem jurídica justa".

Na verdade, é possível perceber que a própria estrutura atual do Judiciário acaba funcionando como entrave à efetiva e correspondente prestação jurisdicional. A crise por que passa o Judiciário é resultante, exatamente, da inadequação de sua estrutura à realidade social. Em conseqüência, verifica-se que a grande preocupação da doutrina processual moderna está em garantir e alcançar o acesso à "ordem jurídica justa", nos ensinamentos de Kazuo Watanabe, e não, como se defendia antes, limitar-se o acesso às vias Judiciárias.

Há, pois, que se resolver uma equação de duas variáveis - informação e recursos - para estar garantido o acesso de que falamos.

A primeira delas, a informação, encontra seu valor no processo educacional da população, que, esclarecida, passa a reconhecer seus direitos e deveres de cidadão e busca sua preservação, seja em relação aos demais cidadãos, seja em relação ao Estado. Surge aí um dos pressupostos basilares do Estado justo e nobre: aquele que é capaz de, por meio de uma Defensoria Pública, assegurar a um cidadão sua defesa contra o próprio Estado que lhe oferece o serviço.

De fato, Sr. Presidente, há uma premissa no direito consuetudinário que diz que todo cidadão é suposto conhecer a lei e, portanto, não lhe será possível alegar desconhecimento para infringi-la. Ora, como exigir tal conhecimento diante de um emaranhado de leis que nem mesmo os jurisconsultos conseguem manipular com desembaraço, que dizer de uma população em boa parte iletrada, incapaz de ler um texto simples, quanto mais de ler e compreender uma lei?

De fato, Sr. Presidente, impõe-se afirmar enfaticamente que o nível de desenvolvimento de uma nação também pode e deve ser avaliado do ponto de vista da democratização de seu aparato judiciário, ou seja, como e de que meios dispõe o povo para ter acesso ao aparato judiciário do Estado.

É comum, no mundo globalizado de hoje, incorrermos no erro de aferir o grau de evolução de uma sociedade considerando exclusivamente fatores de ordem econômica, tais como o acesso a tecnologias sofisticadas ou a bens de consumo. Não posso, em conseqüência, deixar de enfatizar quão importante é perceber que a absorção de tecnologias sofisticadas deveria priorizar o atendimento das necessidades imediatas de cada nação, segundo suas peculiaridades socioeconômicas e culturais. Não obstante, a evolução desordenada tem tido nítidas repercussões no complexo das relações sociais e deu origem a novos conflitos de interesses.

A defasagem na relação entre conquista tecnológica e benefício social é visível até nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, pois a máquina do Estado não se desenvolve no mesmo compasso das novas expectativas da sociedade.

Uma das nítidas conseqüências desse fato é a sobrecarga e o descrédito do aparato judiciário. O problema se agrava e toma proporções calamitosas nos países menos desenvolvidos, particularmente, no que nos interessa, na faixa intermediária denominada de Terceiro Mundo, onde o acesso à Justiça constitui verdadeiro privilégio das camadas favorecidas da população. Nestes, o aparato judiciário apresenta evidentes sinais de esgotamento, sendo alvo de crescente preocupação. Se o Poder Judiciário não tem como cumprir sua finalidade precípua de garantir a solução pacífica dos diversos conflitos de interesses, há o comprometimento de toda a estrutura do Estado pelo aumento da marginalização das camadas mais pobres, e o conseqüente recrudescimento da violência e das taxas de criminalidade.

As estatísticas criminais dos grandes centros urbanos constituem o sintoma mais visível da relação paradoxal que ali se estabeleceu. A deficiência dos mecanismos de segurança do Estado provocou a busca de soluções alternativas pela sociedade. Por exemplo, a solução encontrada pela classe média ao procurar os denominados condomínios fechados para fugir da violência crescente, originando o surgimento de indústrias imobiliária e de segurança específicas associadas. Ou ainda, o desenvolvimento das organizações internacionais de narcotraficantes, fortemente armadas, que transformaram as áreas periféricas miseráveis dos grandes centros urbanos em verdadeiras unidades autônomas, valendo-se da própria deficiência do Estado para excluí-lo, gerando as denominadas áreas de exclusão.

Desse modo, a democratização do acesso à Justiça, como garantia fundamental e instrumento de aperfeiçoamento social, aliada à reestruturação do Poder Judiciário e sem órgãos auxiliares, as polícias, não mais podem ser postergadas sob pena de tornar irreversível o colapso do Estado democrático frente às expectativas da Nação.

É a sociedade quem determina a dinâmica dessa busca de justiça de acordo com suas necessidades. Por esta razão, o mais seguro indicador de desenvolvimento social de um povo é o seu nível de acesso ao aparato judiciário do Estado, na medida em que quanto maior o acesso à Justiça maior também será a perspectiva de paz social. O poder econômico não pode continuar como determinante da realização da Justiça.

De nada adiantará desviar a discussão de seu eixo principal - acesso à Justiça e reestruturação do Judiciário e órgãos auxiliares - reduzindo-a à simples proposição de um "controle externo do judiciário" que, por ser apenas um aspecto superficial do problema, jamais evitará o agravamento da crise entre a sociedade e o Estado. Dentro desse contexto, a Defensoria Pública torna-se elemento fundamental de justiça num país como o Brasil.

De fato, Sr. Presidente, é impossível fixar com precisão quando teria surgido o primeiro esboço da assistência judiciária pública como instrumento de defesa do cidadão carente, já que sua origem se perde no tempo. Contudo, é importante lembrar alguns referenciais históricos para que se tenha uma idéia da dimensão temporal do problema.

A consolidação do Direito Romano deu-se com Justiniano, nos séculos V e VI D.C., que incorporou definitivamente a prática de dar advogado às partes que não o tivessem, transformando a assistência judiciária em um dever do Estado. Este o marco fundamental do instituto assimilado gradativamente pelo Direito europeu.

Dando um salto, Senhoras e Senhores Senadores, para o Brasil do século XIX, surge o Decreto n.º 1.030, de 14 de novembro de 1890, outorgado pelo Governo Provisório da República, que, ao tratar da organização da Justiça do Distrito Federal, instituiu oficialmente a Assistência Judiciária gratuita no Brasil. Contudo, sua implementação só aconteceu mais de seis anos depois, quando o Vice-Presidente da República Manoel Vitorino Pereira, e o Ministro da Justiça Amaro Cavalcanti fizeram publicar o Decreto n.º 2.457, de 8 de fevereiro de 1897, organizando a Assistência Judiciária no então Distrito Federal. Dentre as inovações trazidas, o Decreto procurou estabelecer parâmetros para o conceito de "pobre" como destinatário do novo serviço público:

Art. 1º. É instituída no Distrito Federal a Assistência Judiciária, para o patrocínio gratuito dos pobres que forem litigantes no cível ou no crime, como autores ou réus, ou em qualquer outra qualidade.

Art. 2º. Considera-se pobre, para os fins desta instituição, toda pessoa que, tendo direitos a fazer valer em Juízo, estiver impossibilitada de pagar ou adiantar as custas e despesas do processo sem privar-se de recursos pecuniários indispensáveis para as necessidades ordinárias da própria manutenção ou da família.

A partir da edição do Decreto n.º 2.457, várias Unidades da Federação passaram a seguir os princípios básicos ali introduzidos, que subsistiram por cerca de vinte anos.

Contudo, tanto a primeira Constituição brasileira - Imperial de 1824 - como a segunda - Republicana de 1891 - se omitiram sobre a matéria que, nos países mais avançados, rapidamente evoluía para o status de garantia fundamental.

Finalmente, a assistência judiciária é erigida em garantia constitucional, nos termos preconizados pela Carta de 1934, que no seu Título III, Capítulo II, ao dispor "Dos Direitos e Garantias Individuais" estatuiu:

Art.113. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais, e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.

Sem dúvida, a conquista é um marco na história da assistência judiciária no Brasil, mas, sobretudo, tem ainda maior significação por se incorporar ao conjunto dos direitos de cidadania.

Observe-se também que a norma constitucional refletiu a preocupação de expandir o conceito de assistência judiciária, muitas vezes alvo de interpretação equivocadamente restrita, pois entendido como simples isenção do pagamento das custas processuais.

Com o advento da Constituição de 1937, a conquista de 1934 é banida do texto constitucional. Somente com o fim da Segunda Guerra Mundial, ressurgem os movimentos pela redemocratização, obrigando Getúlio Vargas a convocar eleições para 2 de dezembro de 1945. Em 2 de fevereiro de 1946 instala-se a Assembléia Nacional Constituinte que, a partir das Cartas de 1891 e 1934, em 19 de setembro de 1946 promulga a nova Constituição. A assistência judiciária aos necessitados volta a integrar definitivamente o elenco dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 141, parágrafo 35: "O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.").

Até mesmo após o golpe de 1964, fica mantida a garantia constitucional da assistência judiciária na Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967 (art. 150, parágrafo 32: "Será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei.").

A rigor, a retrospectiva da história brasileira revela que sempre se alternaram breves períodos de normalidade democrática com situações de perturbação institucional. Perscrutar o passado pode permitir a melhor compreensão do presente e a antevisão do futuro. Assim, a História está repleta de exemplos demonstrativos de que, após um período de regime de exceção, segue-se um natural período de euforia e ansiedade pelo resgate das liberdades cerceadas.

Talvez essa seja a explicação para o que se denominou de "Constituição Cidadã". Essa preocupação está presente na própria estrutura organizacional do texto constitucional de 1988, pois pela primeira vez o seu Título I, que sempre fora reservado à "organização nacional" ou "federal", cuidou "Dos Princípios Fundamentais" a serem cultivados e preservados, além de presidirem todas as ações de Estado. Também pela primeira vez, empregou-se a expressão "Estado Democrático de Direito", complementando a definição da forma de governo republicana, tal como se fez inserir no texto do Artigo 1º.:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

Dentro dessa perspectiva, ao longo do texto constitucional constata-se a preocupação quase obsessiva com a afirmação da cidadania como delimitadora do papel do Estado.

Os direitos e garantias individuais, antes um capítulo que sempre integrara o título "Da Declaração de Direitos", foi trazido para o pórtico da Constituição, dando nome ao seu Título II, além de ter sido alterado significativamente para "Dos Direitos e Garantias Fundamentais".

Percebem-se com nitidez os avanços assimilados pela Carta de 1988 que, sem sombra de dúvida, pode ser considerada uma das mais completas do mundo na matéria.

Mantido entre os direitos e garantias fundamentais, o instituto da assistência judiciária ganhou nova definição, que lhe ampliou consideravelmente o alcance, conforme estatui o artigo 5º, em seu inciso LXXIV: "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

Antes o texto constitucional falava em assistência judiciária, compreendendo, portanto, apenas a assistência jurídica gratuita em Juízo, exclusivamente no âmbito de ações judiciais. Agora, incumbe ao Estado prestar assistência jurídica integral aos necessitados, ou seja, essa assistência passa a ter muito maior abrangência, extrapolando os limites das ações judiciais, pois onde quer que se faça necessária a presença de um advogado, o cidadão comprovadamente necessitado terá direito de invocar a assistência do Estado.

E foi pretendendo dar eficácia a essa garantia fundamental que a Constituição, no seu Título IV, Capítulo IV, aos tratar "Das Funções Essenciais à Justiça", incluiu a Defensoria Pública :

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

Parágrafo único. Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

Passados mais de cinco anos da promulgação da Constituição de 1988, foi sancionada a Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que "Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados e dá outras providências".

Indiscutivelmente, este é um marco na história brasileira da evolução dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, já que a assistência jurídica ao necessitado finalmente é atribuída a uma instituição pública a partir do nível federal e com preceitos orientadores para sua organização regional.

Em última análise, a garantia constitucional visa assegurar o acesso indiscriminado à Justiça, ou seja, independentemente da condição econômica do cidadão, buscando dar eficácia aos princípios da igualdade perante a lei e da segurança jurídica.

Assim, é indispensável à prestação jurisdicional do Estado a existência da Defensoria Pública. O Estado não pode prescindir da proteção da cidadania individual ou coletiva, cabendo-lhe, como poder delegado da sociedade, assegurar tal expediente.

A reforma do Poder Judiciário, em conseqüência, não é meramente uma necessidade funcional ou organizacional, mas uma necessidade da cidadania, de própria organização da sociedade e do estabelecimento de uma ordem justa nas relações entre seus membros.

E nesse quadro, inscreve-se a consolidação da Defensoria Pública em todas as esferas do Estado, como instrumento inelutável do exercício pleno da cidadania no Brasil. Superando nossas mazelas históricas de incapacidade de organizar adequadamente as instituições do Estado, devemos travar uma luta de superação para que o Poder Judiciário, como um todo, e a Defensoria Pública, em particular, se estruturem para atender à sociedade brasileira do Século XXI, se quisermos ter algum futuro como sociedade organizada, justa e pacífica.

Muito obrigado, Sr. Presidente, eram essas as minhas palavras.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/11/2001 - Página 27026