Discurso durante a 149ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração, no dia 5 de novembro, do Dia da Cultura e da Ciência.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração, no dia 5 de novembro, do Dia da Cultura e da Ciência.
Publicação
Publicação no DSF de 07/11/2001 - Página 27928
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA, CULTURA, CIENCIAS, DATA, ANIVERSARIO, RUI BARBOSA, VULTO HISTORICO.
  • ANALISE, RIQUEZAS, DIVERSIDADE, CULTURA, AMBITO, HISTORIA, BRASIL.

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            O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, no dia 5 de novembro, comemora-se o Dia da Cultura e da Ciência, assim instituído, desde 1970, pela Lei n.º 5.579, de 15 de maio de 1970, resultado de projeto de autoria do então Deputado Jorge Kalume, que pretendia, com a iniciativa, homenagear Rui Barbosa, nascido a 5 de novembro de 1849.

            Na verdade, todo dia é dia da cultura. Toda vez que um músico trabalha no silêncio do seu quarto uma nova composição, é dia da cultura. O mesmo acontece quando um ator sobe no palco ainda escuro de qualquer teatro, de qualquer cidade imaginária. É dia da cultura quando o cineasta repete várias vezes, pacientemente, a mesma seqüência, o mesmo plano, na manhã ensolarada. É dia da cultura quando o escritor luta em busca da palavra certa, justa, única, debruçado sobre a luz fosforescente do computador. Ou quando o artista popular amassa o barro úmido ou esculpe os galhos retorcidos que a natureza generosamente lhe oferece.

            É dia da cultura, ainda, o dia de festa do Quarup, nas tribos indígenas, de processão do Fogaréu, em Goiás Velho, de desfile de Escolas de Samba, no Rio de Janeiro, do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e nos dias de mamulengos, de catiras, de bumba-meu-boi. É dia da cultura, também, todos os dias de Feira de Caruaru e de Lavagem da Ladeira do Senhor do Bonfim. E todos os dias em que um sertanejo ensina aos filhos o preparo da carne-de-sol, em que o gravador traça na madeira as figuras do cordel, em que as quituteiras preparam os acarajés.

            Afinal, “cultura” é o termo usado pelos cientistas sociais para designar a totalidade do modo de vida de um povo. Na conversação diária, a palavra “cultura” pode referir-se às atividades nos campos da arte, da literatura ou da música. Mas no sentido antropológico, a cultura de um povo consiste no conjunto de idéias, objetos e modos de fazer as coisas que foram criados pelo grupo. A cultura inclui as artes, as crenças, os costumes, as invenções, a linguagem, a tecnologia e as tradições.

            A pessoa adquire cultura como membro da sociedade. A cultura inclui os modos pelos quais os membros de uma sociedade relacionam-se entre si. Os seres humanos não conseguiriam conviver entre si se a cultura não definisse o que fazer e o que esperar do outro. A vida social seria impossível se os conhecimentos e as práticas não fossem compartilhados por todos.

            Cultura é algo fundamental, muito mais profundo do que o evento ou produto cultural por meio dos quais ela normalmente se expressa. O processo cultural não se encerra quando o show acaba, não termina quando o filme ou a celebração chegam ao fim, ou a exposição do artista plástico da grande cidade é inaugurada ou quando são vendidos os santos do artista popular. Esse processo permanece, circula dentro dos seres humanos, modificando de forma imperceptível a qualidade de vida de toda a sociedade.

            Se a cultura é um processo, mais que uma efeméride, Srªs. e Srs., tomemos este dia não apenas para comemorá-la como um fato ocorrido, mas para repensá-la em relação ao nosso País e ao nosso tempo.

            Em relação ao nosso País, não é possível ignorar que já vivemos momentos de maior expressividade cultural. Um desses momentos, inegavelmente, foram os anos JK: cabia ao Estado puxar como locomotiva o trem do País do futuro, alimentando sua fornalha de matérias-primas abundantes, substituindo importações em nome do desenvolvimento industrial. Ao parque industrial corresponderia a formação de um parque artístico.

            Muitas das principais instituições culturais do País seriam ali formatadas. Em São Paulo, por exemplo, a Bienal e o Masp dariam um ar contemporâneo à metrópole, e movimentos como o Concretismo nas artes plásticas e na poesia decretariam estarmos participando de uma fábrica internacional de design, livre de fronteiras e mensagens, acima do repertório local e de conteúdos sociais. No Rio de Janeiro, a Bossa Nova vendia ao mundo o samba na roupagem de jazz e, no território todo, o Brasil produzia seu outro maior produto de exportação cultural: o futebol - aquele mesmo esporte denunciado três décadas antes por Lima Barreto e Graciliano Ramos como “estrangeirismo” dedicado ao fracasso.

            Os anos 50 não eram só internacionalismo urbano, havia, ainda, o internacionalismo regional de Guimarães Rosa e João Cabral, capazes de tratar da realidade local sem reduzir sua arte a registro sentimental.

            O refluxo tardaria mas não falharia. Aquele Brasil que saíra da derrota para o Uruguai, em pleno Maracanã, na Copa de 50, em direção aos triunfos da geração de Pelé e Garrincha, em 58 e 62, continuava a não ser o que pensava ser. O Brasil não eram os Estados Unidos do Sul, apesar de todo o alinhamento com a política e os costumes que vinham lá do norte. Era injusto, corrupto e concentrador, mesmo que a criação de Brasília em 1960 visasse a empurrar - como se substituísse a eliminação do analfabetismo - o desenvolvimento para o interior atrasado, que não escutava Tom Jobim nem andava de Sinca Chambord. Era dominado por uma elite composta de latifundiários à esquerda e à direita, por militares, bispos e capitalistas selvagens, incapazes de explorar as riquezas nacionais e, ainda mais, incapazes de distribuí-las.

            Nos anos 60, o internacionalismo da década anterior refluiria e os principais movimentos culturais proporiam a sempre falada “redescoberta do Brasil”. O Cinema Novo, cuja expressão maior seria Glauber Rocha, e a busca do autor nacional marcariam o período por uma afirmação da identidade brasileira em prejuízo de seu contato respeitoso com as influências estrangeiras. O extremismo era moda.

            Em 1937, o Estado Novo de Getúlio Vargas tinha cassado a liberdade de expressão, produzindo o testemunho lento e sombrio de Graciliano Ramos no magistral Memórias do Cárcere. Em 1964, o golpe militar viria como paliativo anticomunista, mas se tratava do mesmo temor conservador à desintegração federalista e à perda de privilégios seculares.

            Depois dos primeiros cinco anos em que a efervescência se prolongaria, a linha dura abortaria de vez o futuro de duas gerações. A partir dos anos 70, os exílios, as torturas e a censura terminariam lançando a sombra sobre qualquer expressão criadora. Não houve outro Memórias do Cárcere, mas romances como Reflexos do Baile, de Antônio Callado, e A Festa, de Ivan Ângelo, assim como o cancioneiro duradouro de Chico Buarque.

            Talvez seja o caso de se afirmar, Srªs e Srs. Senadores, que o desequilíbrio entre internacionalismo e nacionalismo, a indefinição entre olhar de novo para dentro e exibir o novo para fora - na verdade, a crença subjacente de que havia essa bifurcação, essa necessidade de opção - criaram espaço para as rupturas verificadas em 37 e 64.

            Por outro lado, é forçoso reconhecer que a redemocratização do País não foi capaz de gerar o esperado renascimento cultura. Não fomos capazes, também, de construir um projeto cultural para o País. É certo que temos artistas e valores culturais. É fato, também, que existem algumas boas iniciativas de fomento à produção cultural. Falta-nos, contudo, uma concepção, uma unidade de propósitos, uma política definida.

            É necessário, então, Srªs e Srs. Senadores, explicitar, com clareza, que o desenvolvimento compreende não apenas o acesso aos bens e serviços, mas também a oportunidade de eleger um modo de vida coletivo que seja pleno e satisfatório.

            Talvez não seja mais o caso de se esperar um movimento estético que unifique o País. Talvez as condições do mundo contemporâneo exijam novos arranjos e novos paradigmas culturais.

            É preciso, portanto, particularmente diante dos últimos acontecimentos do cenário político internacional, aceitar que a diversidade cultural do mundo está no centro do debate dos dias de hoje.

            Assim, qualquer reflexão a respeito de cultura não poderá ignorá-la.

            Alguns defendem que o mundo está menor depois da Internet e que os padrões de consumo vêm provocando a homogeneização da “fauna” global, decretando o fim dos traços culturais peculiares a cada povo. Afinal, todos conhecem as grandes marcas e tudo se resumiria à busca de meios para acessá-las, de preferência falando inglês e pilotando as telas iluminadas dos computadores.

            Outros, entre os quais devemos nos situar, defendem que o mundo está muito maior e mais rico em oportunidades e que os padrões de consumo passam ao largo das determinantes culturais mais fundamentais.

            Nesse contexto, é fundamental relativizar as situações sob dois prismas. O primeiro diz que nenhuma cultura tem o monopólio da “normalidade”, a começar pela nossa. O segundo reza que o que é diferente não deve ser encarado como hostil.

            Nós, brasileiros, por nossa própria formação étnica, temos condições de vivenciarmos, em nosso território, o dilema global das nações. O problema principal que enfrentamos é adaptarmo-nos à globalização sem negar os elementos valiosos de nossas tradições, e fazê-lo em condições de eqüidade e justiça, demonstrando que a diversidade cultural e o pluralismo étnico não são fenômenos a serem “tolerados” ou “respeitados”, mas desejados, pois é deles que nascem as novas possibilidades culturais para a humanidade.

            Muito obrigado.


            Modelo19/26/249:01



Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/11/2001 - Página 27928