Discurso durante a 151ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre o julgamento dos assassinos do índio pataxó Galdino. (como lider)

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • Comentários sobre o julgamento dos assassinos do índio pataxó Galdino. (como lider)
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 09/11/2001 - Página 28119
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • ANALISE, JULGAMENTO, HOMICIDIO, INDIO, REU, JUVENTUDE, CLASSE MEDIA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), REPUDIO, ALEGAÇÕES, CIRCUNSTANCIA ATENUANTE, CRIME, DEFESA, IMPARCIALIDADE, JUSTIÇA.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Como Líder. Sem revisão da oradora.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, farei um registro que, com certeza, nos entristece a todos e deve fazer parte de uma série de questionamentos que estão sendo feitos pela sociedade brasileira, que está acompanhando o julgamento dos jovens Max, Antonio Novely, Tomás e Eron, que foram responsáveis por aquele lamentável episódio, que resultou na morte do índio pataxó Galdino. Esse julgamento está acontecendo em Brasília.

Estamos vivendo, no Brasil, um momento privilegiado para uma grande reflexão. O julgamento dos quatro jovens que, na madrugada de 21 de abril de 1997, avistaram alguém que dormia num banco de parada de ônibus, na 703 Sul, e decidiram procurar um posto de gasolina para comprar combustível.

Já em adiantada hora da madrugada, os jovens tiveram que se deslocar até um posto de gasolina distante. Localizaram esse posto na 205 Sul. Tiveram que justificar para o empregado do posto - e, com isso, acabaram contando uma mentira - a compra da gasolina e seu transporte em vasilhame de plástico, alegando que estavam fazendo isso porque havia um outro carro parado em local diverso que necessitava do combustível. Em seguida, esses jovens chegaram até o local onde estava o índio Galdino, onde jogaram o combustível em seu corpo e atearam fogo.

Os argumentos que se seguem à justificativa desse ato são tão dramáticos e tão assustadores quanto o próprio ato, pois os jovens, quando identificados, no desespero, disseram que pensavam tratar-se de um mendigo e não de um índio. Qual a diferença entre um ser humano índio e um ser humano mendigo? Qualquer pessoa em quem se jogasse combustível e ateasse fogo sofreria os danos e as conseqüências desse ato criminoso. O índio estava coberto com um cobertor que, por si mesmo, é inflamável. Imaginem esse cobertor ensopado com combustível! As chamas invadiram o corpo do índio, que veio a óbito.

Argumentar que esses jovens não agiram intencionalmente é não querer ver a realidade ou, no mínimo, é querer distorcer a realidade, porque eles tiveram tempo para pensar. Não era apenas um jovem. O material inflamável não estava dentro do carro. Eles tiveram que pensar: vamos comprar um combustível, em que lugar vamos comprar o combustível, e ainda inventaram uma mentira para poder levar o combustível num vasilhame; só então dirigiram-se ao local onde tinham identificado a vítima e executaram a ação.

Falo isso sem nenhum prazer porque me dá muita tristeza. À época, senti muita tristeza sob dois aspectos: primeiro, pelo índio que perdeu a vida, pelos seus familiares, pelos seus parentes, pelos seus amigos, por todas as pessoas que viveram o drama de alguém que saiu lá do interior da Bahia, veio a Brasília comemorar o Dia do Índio, foi recepcionado na capital do País por seus parentes - como eles se chamam entre as várias tribos - e, logo em seguida, foi assassinado, queimado vivo. Sofro e lamento por isso. Mas também sofro e lamento por esses jovens, por serem jovens, e pelos seus familiares, porque qualquer um de nós estaria sofrendo como mãe, como pai, por ver o filho praticar um ato desses.

Mas não posso, em hipótese alguma, aceitar a tese de que não houve intencionalidade na prática desse crime. É verdade que existia um menor, mas os outros eram maiores e planejaram essa ação. Meu Deus! Era um grupo de quatro pessoas que, com seus valores, seus referenciais, poderiam ter questionado e refletido sobre o que iriam fazer! Mas havia uma decisão tomada. E essa decisão foi tomada em nome de um equívoco: eles não sabiam que a pessoa que estava embaixo do cobertor era um índio; imaginavam ser um mendigo. Então pode-se atear fogo em um mendigo que está dormindo numa parada de ônibus, numa calçada, para ver o fogo pegar? E isso pode ser considerado uma brincadeira? Ora, até uma criança de sete, oito anos de idade sabe que não pode atear fogo em uma pessoa! Imaginem jovens de 16 a 19 anos! Ao cometerem esse ato, eles tinham plena consciência disso, inclusive pelas condições sociais em que viviam. Trata-se de jovens bem informados, que tinham escola, tinham certamente uma relação de referência entre o que é certo e errado. Não existe essa “inocência”, essa brincadeira como estão querendo caracterizar uma ação seguida de morte. Não é isso.

Em nome dos familiares de Galdino, de sua mãe, de todos os seus parentes brasileiros e em nome da cura que a sociedade brasileira precisa efetivar em relação à Justiça, não podemos aceitar essa tese. Com certeza, se isso não acontecer, estaremos praticando uma grande injustiça. Vamos pensar em uma situação contrária: suponhamos que alguns jovens índios, de repente, não digo nem com gasolina ou álcool, mas com uma palha de uricuri, de jaci ou de coco, resolvessem tocar fogo em um filho de algum juiz, advogado ou grande fazendeiro. O que aconteceria com esses índios? Com certeza, iriam mofar na cadeia porque todos estariam mostrando o lado selvagem, abominável dos índios que não tiveram compaixão e tocaram fogo em uma pessoa.

Não podemos praticar a justiça própria, e isso é um exercício da justiça própria. Essa é a pior forma de injustiça porque, quando os outros erram, nós nos colocamos como juízes e julgamos o que é certo ou errado; mas quando somos nós que cometemos um erro, imediatamente purificamos esse erro que passa a ser encarado de outra forma. A justiça própria é a pior forma de injustiça, inclusive porque é uma blasfêmia; é como se tivéssemos o poder divino de decretar o que é certo ou errado para os outros e para nós mesmos, sendo que, quando ocorre conosco, estamos sempre prontos a compreender, a absolver e a ser bem mais flexível do que seríamos quando julgamos o outro.

Nesse caso, não se trata apenas do julgamento dos jovens que cometeram esse crime contra o índio Galdino. Diria mesmo que é a nossa justiça atuando em relação a outra cultura, a outra forma de pensar e agir, julgando a partir de uma visão equivocada da nossa sociedade em relação aos completamente despossuídos e sem nenhuma referência, os mendigos que estão a nos envergonhar por todas as ruas da nossa cidade e em todos os cantos do nosso País, seja por pobreza ou por loucura. Independentemente da razão pela qual encontram-se nesse estado, isso não nos dá o direito de pensar que seja normal esse tipo de atitude que vem sendo praticada também com os mendigos. Há algum tempo, em São Paulo, um mendigo acordou sem os olhos. Alguém aplicou-lhe uma anestesia, fez uma cirurgia técnica, profissional e tirou-lhe os olhos. E ele amanheceu sem os dois olhos.

Esta é uma sociedade completamente doente. Se não dermos o exemplo pela justiça - seja pelo filho do grande ou do pequeno - em relação a essa atrocidade que nosso processo civilizatório e nossa cultura produzem, não nos estaremos curando. E digo isso porque faço parte desta sociedade. Devemos curar nossa sociedade realizando a justiça não por vingança em relação a esses jovens; esse ato de justiça tem que ser necessariamente um gesto de amor.

Gostei muito da frase que li certo dia de que o contrário de injustiça não é justiça por justiça; o contrário de injustiça é amor, porque toda justiça que não se realiza por amor é vingança. E percebo esse fato como um gesto de amor, em primeiro lugar, para que esses jovens paguem pelo erro que cometeram. E para que, pagando pelo erro que cometeram, possam recompor-se diante da sociedade, de Deus, da sua família e deles próprios. Portanto, trata-se de um gesto de amor para que essa conta não seja debitada pelo resto da vida em suas consciências, na consciência de quem julga e daqueles que sofrem e gostariam muito de ver seus filhos absolvidos ou com uma pena menor. Permitir que a injustiça permaneça não é a melhor forma de amar.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo o aparte ao Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senadora Marina Silva, quero cumprimentar V. Exª pela maneira como analisa a tragédia que, infelizmente, levou quatro rapazes a assassinarem o índio Galdino. V. Exª analisou bem como seria próprio que mesmo os familiares, os pais desses quatro rapazes, se tiverem - e acredito que tenham - sentimento de profundo amor para com seus filhos, reconhecessem que há que se proceder com justiça. Por outro lado, é preciso que desse episódio venhamos a tirar lições, sobretudo se pensarmos naqueles adolescentes pelo Brasil afora que por vezes são levados a ações tão graves quanto essas. Isso, sei bem, ocorre com muita freqüência. Também já fui adolescente e sei que pessoas que estão relativamente melhor em suas vidas pensam que podem agir como donos do mundo ou decidir sobre quem deve viver ou não, quem pode ser objeto de uma ação de ofensa ou de destruição. E são aqueles destituídos de quaisquer direitos, pessoas marginalizadas nas metrópoles afora, por vezes, ali, nas praças e jardins, que acabam sendo objeto de violência, como aconteceu com o índio Galdino. Esse julgamento que se realiza, hoje, em Brasília, tem como advogado de acusação o Sr. Deputado Luis Eduardo Greenhalgh, que tem grande experiência na defesa dos direitos à cidadania e dos direitos humanos e está procurando agir com muito equilíbrio, seriedade, assertividade e disciplina, ao observar que os argumentos da defesa - como V. Exª está mostrando - não guardam razão, já que justificam a morte do índio Galdino como, simplesmente, um ato de natureza culposa. V. Exª bem mencionou que esses rapazes tiveram todo o tempo de refletir, trocar idéias. Não era apenas um, eram quatro. Às vezes, a conversa entre quatro pessoas acaba contribuindo para que uma ação seja até mais grave, como parece ter ocorrido. Não houve um que dissesse aos outros: “estamos cometendo uma bobagem que vai acabar custando-nos muito caro”. Mas quão importante será esses jovens reconhecerem que o seu ato foi algo que não pode ser repetido. Quão importante será não apenas assumirem a responsabilidade por seu ato, mas também advertirem outras pessoas de que devem pensar muito antes de causarem outras tragédias, como as que, infelizmente, têm ocorrido nas ruas e praças das cidades pelo Brasil afora. Cumprimento V. Exª, portanto, pela maneira tão equilibrada e justa com que analisa o julgamento do índio Galdino, pessoa tão amada por seu povo, que veio a Brasília justamente como um dos principais representantes dos Hã-Hã-Hãe, para demonstrar ao povo brasileiro e às autoridades que eles têm direito à terra na Bahia. Por essa razão, não apenas a sua mãe, os seus parentes, os seus companheiros Hã-Hã-Hãe e toda a comunidade indígena recebem a solidariedade do povo brasileiro, mas também o índio Galdino. Esperamos que essa tragédia sirva - daí a importância da sua reflexão, Senadora Marina Silva - para que tais atos jamais sejam novamente cometidos em nosso País.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Agradeço o aparte de V. Exª e incorporo-o ao meu pronunciamento, Senador Eduardo Suplicy.

No início, falei que sou mãe: tenho dois filhos jovens e duas crianças. É claro que penso no drama tanto dos pais quanto daqueles jovens que tiveram sua vida cortada, altamente prejudicada por um ato que nos aterroriza. Mas, pelo bem desses jovens, pelo bem da sociedade brasileira, não se pode arranjar um subterfúgio para fugir da pena, da realização da justiça. Esta tem que ser realizada em nome da verdade, dos interesses maiores da humanidade, que é o direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade.

Com certeza, já houve a interrupção da vida do índio Galdino, mas também da busca da felicidade dos familiares que o perderam, da busca da felicidade dos jovens e de seus familiares. Houve interrupção da liberdade, com a privação do ente querido, que teve a sua vida ceifada prematuramente, de uma forma perversa e não pelo processo da morte natural, por que todos nós passaremos.

Assim, Srª Presidente, quero somar a minha solidariedade a todos aqueles que hoje estão buscando o cumprimento e a realização da justiça e dizer que todos os brasileiros devem fazer, neste momento, uma reflexão sobre os valores com os quais estão contribuindo, sobre os referenciais que os nossos jovens estão recebendo, para que, em determinado momento, não se manifeste algo patológico. Se em algum momento isso acontecer, será como um cisto ou um tumor que deve ser tratado sob o olhar cirúrgico de quem quer aplicar o remédio correto. E o remédio correto, neste caso, é a realização da justiça da forma como deve ser realizada.

Lamentavelmente, os prejuízos são irreparáveis para os que perderam o seu ente, para o índio Galdino que perdeu a própria vida e para aqueles que praticaram esse ato e que hoje têm que pagar pelas conseqüências.

Fiquei vendo o depoimento emocionado da mãe do índio Galdino, quando alguém perguntou se ela perdoava aqueles jovens. Ela respondeu, a sua maneira, nos seus referenciais, na sua cultura - não estamos aqui para julgar - que não perdoava de jeito nenhum. Mas o perdão espiritual é um ato unilateral de Deus. E se há arrependimento, independentemente do meu perdão pessoal, humano, as pessoas são perdoadas. Mas o perdão espiritual não revoga o erro que foi praticado; e o erro praticado tem que ser reparado. E não existe outra forma de reparar o erro para a sociedade a não ser pelo cumprimento da pena na forma em que deva ser aplicada.

Trata-se de um crime que foi planejado. Os estudiosos do Direito afirmam que foi um homicídio doloso; mais que isso, preterdoloso, porque tiveram um tempo para pensar, preparar algo que poderia ter tido os questionamentos, que tanto eu quanto o Senador Suplicy já colocamos. Mas, infelizmente, não houve esse questionamento e o ato foi realizado.

Agora, só nos resta fazer aquilo que compete à Justiça e à sociedade brasileira: punir, para que esse crime não seja motivo para que as pessoas continuem a pensar que, por terem uma condição melhor e poderem pagar um advogado, podem brincar com a vida de pessoas indefesas, que talvez não contem com os mesmos meios, mas que nem por isso são inferiores, que devem ser tratados com o mesmo respeito, enquanto seres humanos, para que possamos continuar a realizar os objetivos maiores da humanidade -- a preservação da vida, a nossa ética, o nosso ethos, o cuidar da nossa casa, desse nosso interior que realiza a moral, a ética, valores --, para que não sejam profanados por um ato impensado, que aparentemente pode ser de compaixão e de amor, mas que nos joga na vala comum da injustiça, da impunidade e, sobretudo, daquilo que não é amor.

Ao não darmos a oportunidade a esses jovens de cumprirem a pena pelo erro que praticaram, não estaremos contribuindo para que se refaçam diante deles próprios, da sociedade e da Justiça, já que a vida do Galdino é irrecuperável, pelo menos do ponto de vista humano, porque acreditamos que há um plano maior para todos nós, em todas as circunstâncias.

Quero concluir, Sr. Presidente, dizendo que qualquer ação nossa, como Parlamentares, enquanto sociedade, não deve ser a de um olhar raivoso de vingança para com esses jovens. Não, deve ser um olhar, sobretudo, amoroso, de compaixão. E, do meu ponto de vista, a compaixão e o olhar amoroso se realizam pelo cumprimento da justiça na medida certa, nem mais e nem menos, como um crime que foi praticado e que não tem nenhum respaldo para as atenuantes que estão querendo dar. A sociedade brasileira não pode aceitar e todos nós temos que nos somar pela realização da justiça, não como um gesto de vingança, mas como um gesto de amor, porque o contrário de injustiça, como falei anteriormente, não é justiça, é amor, porque quando ela se realiza dessa forma tem única e exclusivamente o objetivo de reparar, de corrigir para que a pessoa se restabeleça diante de si mesma e diante da sociedade.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/11/2001 - Página 28119