Discurso durante a 158ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra.
Publicação
Publicação no DSF de 21/11/2001 - Página 28960
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, RAÇA, NEGRO, ANALISE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL, REGISTRO, DADOS, INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA (IPEA).
  • ANALISE, FALTA, TOLERANCIA, ORIGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL, NECESSIDADE, COMPROMISSO, SOCIEDADE CIVIL, GOVERNO, BUSCA, IGUALDADE, TRATAMENTO.

  SENADO FEDERAL SF -

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            O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, neste 20 de novembro, estamos lembrando, relembrando, chamando a atenção para a consciência negra. Não é, como outras datas, um dia de festa, propriamente. Como o nome diz, é um dia de tomada de consciência, de tomada de atitude diante dos problemas que envolvem a população afrodescendente. Mas, coincidentemente, na semana anterior, dia 16 de novembro, tivemos o “Dia Internacional da Tolerância”. E eu gostaria de refletir sobre esses dois temas, pois, mais que nunca, eles aparecem vinculados. O Dia Nacional da Consciência Negra nasceu de uma ação política concertada dos movimentos negros brasileiros; já o Dia Internacional da Tolerância foi proposto pela Unesco. E eu já explico a estreita conexão entre essas duas datas e o motivo pelo qual as evoco em um mesmo pronunciamento.

            Não é mais novidade que o Brasil não é o paraíso da miscigenação racial, como se acreditou por muitas décadas. A “consciência negra” que perseguimos, pois, não tem mais, meramente, o objetivo de elencar denúncias sobre as discriminações sofridas pelos descendentes de africanos em função da cor. Cabe-nos agora identificar pontualmente as exclusões que sofrem esses nossos compatriotas e, ao mesmo tempo, apontar políticas afirmativas para combater os malefícios provocados por séculos de exploração, humilhação e sofrimento.

            Mas eu me pergunto: essa discriminação não é derivada de um tipo de intolerância? E, como tal, não exige uma ação diferente de cada um de nós?

            Os estudos e as pesquisas mais recentes conseguem nominar, identificar, catalogar e quantificar o caráter discriminatório étnico de nossa sociedade. Não se trata mais, pois, de uma questão de opinião entre os que vêem e os que não vêem discriminação. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em estudo recentemente divulgado, ajuda-nos a configurar um quadro dos mais graves no que concerne a essa discriminação1:

·     - brancos constituem 54% da população brasileira e negros, 45%;

·     entre os 10% mais pobres, 70% são negros;

·     considerando a população com mais de 15 anos, as taxas de analfabetismo são de 8,3% para brancos e 19,8% para negros;

·     a escolaridade média de brasileiros com mais de 25 anos é de 8.4 anos para brancos e 6.1 anos para negros, diferenças que se mantêm há 50 anos;

·     negros e brancos com escolaridade idêntica ganham salários distintos, os primeiros recebendo 20% menos do que os segundos;

·     entre as crianças que trabalham, 62% são negras.

            Há poucos anos (1997) o Instituto Datafolha, ao investigar a percepção dos paulistanos em relação à polícia e aos criminosos, revelou visões de preconceitos ligados à criminalidade. Questionados sobre que grupo lhes causava mais medo, se policiais ou criminosos, obtiveram-se as seguintes respostas: 71% dos brancos têm mais medo dos criminosos; entre os negros, 55% declararam temer mais a polícia. Não é outra a razão para que negros temam a polícia. Estudo de Ignacio Cano, no Rio e em São Paulo, mostra que a proporção de negros mortos pela polícia é três vezes maior que a de brancos.

            Nas decisões judiciais, o tratamento também não é diferente. Sérgio Adorno, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, ao investigar casos de roubo semelhantes, verificou que negros eram condenados em 68,8% dos casos e os brancos, em apenas 59,4%.

            Outra pesquisa demonstra que, em São Paulo, a taxa de encarceramento por cem mil habitantes é de 77 para brancos e 280 para negros; já no Rio de Janeiro, negros representam 40% da população do Estado, mas 60% da população prisional.

            Enfim, são muitos os dados que comprovam a natureza econômica e educacional dessa discriminação. Outro estudo, também no âmbito do IPEA, sobre “O Perfil da Discriminação no Mercado de Trabalho - Homens Negros, Mulheres Brancas e Mulheres Negras”, identifica os pontos específicos da discriminação. Para o pesquisador Sergei Suarez, as diferenças no mercado de trabalho podem ter três origens básicas: diferenças de qualificação, diferenças de inserção no mercado de trabalho e pura diferença salarial. A fim de melhor medir a discriminação, o pesquisador teve como foco a renda. Para tanto, levou em consideração a renda de todos os trabalhos, padronizada pelo número de horas trabalhadas em todos os tipos de trabalho. Ele considerou como base para a comparação os homens brancos. A seguir, considerou os grupos “mulheres brancas”, “homens negros” e “mulheres negras”.

            Esta é uma de suas conclusões:

            A minha interpretação da discriminação contra negros é que existe uma visão do que seja o lugar do negro na sociedade, que é o de exercer um trabalho manual, sem fortes requisitos de qualificação em setores industriais pouco dinâmicos. Se o negro ficar no lugar a ele alocado, sofrerá pouca discriminação. Mas se porventura tentar ocupar um lugar ao sol, sentirá todo o peso das três etapas da discriminação sobre seus ombros.”

            Mas, afinal de contas, o que tem a natureza discriminatória da sociedade brasileira com “intolerância”? Não somos nós o país da “democracia racial”? Não são de natureza social e econômica os nossos problemas? Afinal de contas “branco pobre” e “negro” não sofrem discriminações semelhantes? Aparentemente, pela natureza “cordial” no trato entre brancos e negros, não se pode falar em intolerância. Quando se fala em intolerância, a imagem que nos vem é a da África do Sul antes de Mandela, com o regime do apartheid. Mas será que é só em casos extremos que se manifesta a intolerância?

            Para “pegarmos uma carona” nos fatos recentes, não é difícil ver intolerância nas relações entre americanos e árabe-descendentes. Principalmente após os ataques terroristas contra as torres em Nova Iorque. Nos dias que se seguiram aos ataques, houve vários casos em que pessoas identificadas pelo fenótipo de “árabes” foram atacadas, xingadas, tiveram suas casas depredadas. Muçulmanos chegaram a ser expulsos de aeronaves, a pedido dos passageiros, que se recusavam a viajar com “aqueles”. Imediatamente, as autoridades americanas saíram em defesa desses cidadãos e condenaram os atos hostis aos muçulmanos e árabes.

            Não teríamos dúvida de classificar como “intolerância” as relações entre palestinos e judeus, em suas lutas diárias, nas ruas de Jerusalém. Não seria intolerante, também, condenar “muçulmanos” em qualquer circunstância, só porque Osama Bin Laden se declara muçulmano e defensor de uma guerra santa? Com certeza, ninguém tem dúvida de que os ataques terroristas são frutos da intolerância.

            Mas o que têm a ver nossas relações raciais com intolerância? Vejamos o que diz a “Declaração de Princípios sobre a Tolerância” da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), de dezembro de 1995:

            “A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.” (Artigo 1º - Significado da Tolerância)

            Avançando na definição, a Declaração afirma que a tolerância “não é concessão, condescendência, indulgência”. Ela seria, antes de tudo, atitude “fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”, o sustentáculo dos direitos humanos. A prática da tolerância significa “aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são”. E mais: que a tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.

            Referindo-se especificamente ao papel do Estado, a Unesco prega que este deve garantir “que todos possam desfrutar de oportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação”, pois “a exclusão e a marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo.”

            Segundo a ONU, a intolerância pode se reverter em marginalização dos grupos vulneráveis e na exclusão destes de toda participação na vida social e política, além de gerar violência e discriminação.

            Para romper contra situações de injustiça derivadas da intolerância - inclusive os preconceitos raciais -, “medidas devem ser tomadas para assegurar a igualdade em dignidade e nos direitos dos indivíduos e dos grupos humanos em todo lugar onde isso seja necessário. Para tanto, deve ser dada atenção especial aos grupos vulneráveis social ou economicamente desfavorecidos, a fim de lhes assegurar a proteção das leis e regulamentos em vigor, sobretudo em matéria de moradia, de emprego e de saúde (...)”.

            Bem, aqui volto ao ponto inicial: será que, no Brasil, a discriminação racial (com severíssimas implicações sociais e econômicas) não seria uma forma de intolerância? Ao reler alguns dos princípios estabelecidos na Declaração, parece que foram feitos para a nossa realidade. E qual seria a “vantagem”, digamos assim, de considerar a situação brasileira como de “intolerância”? A meu ver, as implicações são profundas. Diante da intolerância, o sentimento que nos aflora é o da indignação. Todos nos indignamos diante da intolerância. E a indignação é o sentimento que nos move para a mudança.

            Mas, principalmente, considerar a discriminação como derivada da intolerância nos leva a buscar uma posição pessoal, individual, de cada cidadão. Ou seja, não se trata apenas de definir uma política pública - como a de cotas para negros nas universidades. Trata-se de buscar um compromisso de toda a sociedade.

            Um compromisso dos órgãos públicos, mas também das empresas; uma lição para as universidades, que viesse sendo repetida desde a creche e a escola do ensino fundamental; uma prece diária dos dirigentes espirituais (de todas as crenças) e de seus fiéis; um conceito para todos os professores e uma consciência de todos os alunos; uma receita para todos os médicos e uma prescrição para todos os pacientes; um julgamento para todos os juízes, mas igualmente uma causa para todos os advogados; uma norma para os síndicos de prédios e uma disposição dos ascensoristas; um programa de todas as emissoras de rádio e televisão e uma notícia em todos os jornais; e assim por diante, uma chama que atinja cada pessoa, cada evento, cada processo.

            Não tenho dúvida de que, neste momento, são necessárias “ações afirmativas”, “discriminações positivas”, “políticas de cotas” e outros mecanismos compensatórios, destinados a abreviar os resultados dessa discriminação que vem de séculos. Tampouco desconsidero que leis sejam necessárias e que o Estado seja o grande patrocinador das políticas públicas contra a discriminação. No entanto, enquanto não houver a “consciência” da discriminação, enquanto não considerarmos como “intolerância” inaceitável tais preconceitos, não haverá mudanças substanciais na situação dos negros historicamente marginalizados.

            Por isso, para mim, este 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra é também o Dia Internacional da Tolerância.

            Era o que tinha a dizer. Muito obrigado.


1 Estudo de autoria do pesquisador Ricardo Henriques.



            Modelo19/27/242:37



Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/11/2001 - Página 28960