Discurso durante a 164ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso, em 25 de novembro, do Dia Internacional da Não Violência.

Autor
Emília Fernandes (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Emília Therezinha Xavier Fernandes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. FEMINISMO.:
  • Transcurso, em 25 de novembro, do Dia Internacional da Não Violência.
Publicação
Publicação no DSF de 29/11/2001 - Página 29797
Assunto
Outros > HOMENAGEM. FEMINISMO.
Indexação
  • REGISTRO, DIA INTERNACIONAL, ELIMINAÇÃO, VIOLENCIA, MULHER, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO SEXUAL, ASSEDIO SEXUAL, DIFERENÇA SALARIAL, DESEMPREGO, EXCLUSÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, EXPLORAÇÃO SEXUAL, CRIANÇA, PROSTITUIÇÃO.
  • NECESSIDADE, INVESTIMENTO, MELHORIA, DELEGACIA, PROTEÇÃO, MULHER, AMPLIAÇÃO, ATUAÇÃO, AQUISIÇÃO, EQUIPAMENTOS, VIATURA MILITAR, CONTRATAÇÃO, PSICOLOGO.
  • SOLICITAÇÃO, URGENCIA, TRAMITAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, GRATUIDADE, LIGAÇÃO, TELEFONE, DENUNCIA, VIOLENCIA, DESTINAÇÃO, PERCENTAGEM, FINANCIAMENTO, HABITAÇÃO, MULHER, CHEFE, FAMILIA.
  • APOIO, ATUAÇÃO, MARIA BERENICE DIAS, DESEMBARGADOR, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), QUALIFICAÇÃO, CRIME HEDIONDO, ATENTADO AO PUDOR, AUSENCIA, LESÃO CORPORAL, HOMICIDIO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PT - RS. Como Líder. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de novembro, é, antes de tudo, um marco simbólico que nos remete à memória do passado, à consciência do presente e à responsabilidade do futuro.

            Do nosso passado, nos foram legadas marcas indeléveis de opressão, de submissão, de menor oportunidade e da violência, não raro socialmente consentidas como, infelizmente, espelha a realidade no Brasil e nas mais diversas regiões do Planeta até hoje.

            O Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher, instituído durante o Primeiro Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bogotá, em 1981, elegeu a data de 25 de novembro em reverência à memória das irmãs Mirabal, brutalmente assassinadas, na República Dominicana, durante o regime do ditador Trujillo, em 1960.

            Nesse dia, em todo o mundo, as atenções se voltam para a reflexão, denúncia e busca de soluções que apontem para o fim da violência contra as mulheres. Esse debate é importante para avançarmos no sentido de inserirmos o tema como uma questão de interesse público, bem como para instrumentalizarmos dispositivos legais e institucionais que visem assegurar direitos e garantias que estanquem a violência.

            Cumpre registrar, lastimar e clamar por justiça, sem dúvida, quanto ao assassinato, sempre lembrado, da Deputada Ceci Cunha, em Alagoas, e ainda da Prefeita Dorselina Folador, de Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul.

            A violência contra as mulheres, que é regra em todo o mundo, acentua-se nas regiões mais pobres, onde ocorrem outras diversas formas de agressão além da física, sexual e psicológica.

            No Brasil, por exemplo, à violência doméstica e sexual somam-se ainda a diferença de remuneração, a dificuldade de acesso a serviços de saúde adequados, o assédio sexual, dentre outras. Tais práticas atentam contra a democracia e o avanço da igualdade, afetam o bem-estar, a segurança, as possibilidades de educação, desenvolvimento pessoal e a auto-estima das mulheres.

            Este assunto merece destaque por dizer respeito diretamente à metade da população brasileira. Em nosso País, a cada quatro minutos uma mulher é agredida. Setenta por cento desses casos de violência são praticados dentro dos lares, dos quais 65% são cometidos pelos integrantes do próprio núcleo familiar.

            Grande é o número de casos de assédio sexual no trabalho e de outras formas de violência não tão evidentes, na forma de observações maldosas, palavras e gestos que discriminam e agridem a mulher.

            Ao longo desses últimos anos, as mulheres têm denunciado as agressões de uma forma mais ampla, desinibida e rápida. Mas é preciso avançar mais, perder o medo, denunciar, assumir o papel da mulher que exige respeito, da cidadã que cobra do Estado e das organizações sociais o apoio legal, institucional, e, principalmente, a compreensão da sociedade e da sua família para que passe a ter seu espaço e sua justa valorização.

            O combate à violência contra as mulheres é uma responsabilidade de todos, mas deve ter nas mulheres a iniciativa principal.

            As mulheres foram sempre objeto de maior discriminação, seja racial, religiosa, cultural ou econômica, e alguns dados são fortes indicativos de tal cenário.

            Depoimento constante do relatório anual da Unicef, de uma menina de 13 anos, na Nigéria, revela que, além de fazer todo o trabalho em casa, era enviada a um vizinho rico para conceder favores sexuais, como forma de garantir o sustento de sua família. Nada a diferir da situação de várias crianças brasileiras submetidas ao torpe comércio do turismo sexual e da exploração no trabalho.

            Na Turquia, 58% das mulheres adultas sofrem de violências e abusos por parte de seus companheiros permanentes, conforme dados de 1998, publicados inclusive pela Unifem - Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Mulher.

            Segundo o mesmo relatório, no Paquistão, apenas 8% do mercado de trabalho é reservado às mulheres e, no Azerbaijão, as mulheres têm um salário médio equivalente a 53% do salário médio masculino para a mesma atividade. Os dados são de 1998 e não se modificaram substancialmente até hoje.

            Os exemplos são incontáveis, todos resultando na cruel síntese de que a discriminação às mulheres se manifesta nas mais variadas formas de violência que nos fere de forma profunda, física, social, psicológica, cultural ou economicamente.

            De acordo com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, 33% das mulheres na América Latina, entre 16 e 49 anos de idade, sofrem algum tipo de violência sexual. Quase a metade das latino-americanas, portanto, 45%, passam por situações de agressão, ameaças, insultos e danos a bens pessoais.

            No Brasil, as estatísticas não mostram situações muito distintas. Daí, afirmarmos que a discriminação e as formas de violência não têm fronteiras, não têm classe social, não têm diferenças nas variadas e cruéis formas de exteriorização.

            Esse cenário deprimente, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, demanda acompanhamento e combate constante por parte de todas as mulheres, conscientizadas, principalmente por nós, as que militamos na política - e aí chamamos os homens à parceria no combate à violência conosco. A sociedade brasileira ainda é profundamente discriminatória em relação às mulheres, aos negros, aos idosos, aos índios e às pessoas portadoras de deficiência.

            As relações de opressão se reproduzem em uma rígida divisão de trabalho e de papéis e se expressam em todas as esferas, econômica, política, social e ideológica. E exatamente por isso, é imprescindível o desenvolvimento de políticas públicas que ataquem diretamente todas as formas de discriminação, de exploração e de opressão.

            A luta pela igualdade passa pela formação de cidadania das mulheres; pela prevenção, saúde, educação e capacitação pessoal; pelo acesso e garantia de direitos no trabalho e por uma distribuição de espaços, de poder e de renda.

            As desigualdades sociais e econômicas e a exclusão social e política das massas populares é uma constante na sociedade brasileira. as mulheres, principalmente as negras e pobres, encontram-se invariavelmente inseridas nos grupos mais penalizados: 48,6% das negras e 47,8% das mestiças têm menos de um ano de estudo. Aqui também lembramos que somente 2,5% das mulheres negras chegam ao ensino universitário. No sistema carcerário, 42% das presas são negras e mulatas.

            No Brasil, dos 50 milhões de brasileiros que passam fome, 22 milhões são mulheres. Nos demais países mais pobres, a situação ainda é pior: as mulheres representam 70% do total dos que vivem em absoluta miséria.

            Outro dado alarmante: no Brasil, 30% das mulheres são chefes de família, provendo sozinhas o sustento de seus lares. Contudo, o aumento dos índices de autonomia feminina de subsistência contribuiu, por outro lado, para agravar a pobreza da sociedade, justamente por quê? Porque os salários das mulheres são menores e o crescente desemprego atinge, de forma muito cruel, o sexo feminino.

            Dentre todas as formas de violência de que somos alvo, uma das que mais nos atinge é a violência doméstica ou intrafamiliar, imposta historicamente ante o silêncio de nossas antepassadas, e que, só nos últimos tempos, vem sendo descortinada e dimensionada em nossa sociedade. No Brasil, 46% dos casos de violência ainda ocorrem dentro de casa.

            Ainda que não existam estatísticas nacionais completamente abrangentes, estima-se que o número de denúncias anuais efetivamente consignadas já ultrapassa a casa dos duzentos mil registros.

            Fato ainda mais grave é que, em apenas 10% dos casos, a ocorrência redunda em um processo judicial e, dentre esses, 70% são arquivados e 20% se encerram com a absolvição do réu, concluindo-se que apenas um em cada cem agressores é condenado.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, são dados sobre os quais toda a sociedade brasileira, toda a classe política, todos os nossos Governantes devem refletir.

            O preceito constitucional da igualdade entre os brasileiros e brasileiras demanda, ainda, uma ampla mudança social e cultural em nossa sociedade, e a atuação legislativa é um dos baluartes dessa transformação, capaz de tornar prático e operacional o cumprimento dos ditames da Carta Magna.

            Dentre as importantes questões constantes da plataforma de ação da Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em1995, à qual comparecemos, está a revisão da legislação para introduzir sanções penais, civis, trabalhistas e administrativas destinadas a punir agressores e reparar danos causados a mulheres e meninas por qualquer tipo de violência - no lar, no local de trabalho, na comunidade ou na sociedade - e para assegurar sua eficácia, enfatizando a prevenção.

            Igualmente relevante em nossa atuação é garantir, nos orçamentos públicos, em todos os níveis, os recursos necessários à realização de atividades relacionadas à eliminação da violência contra as mulheres.

            Atividades, tais como a criação e a ampliação de serviços de atendimento jurídico e psicológico, delegacia de atendimento especializado e abrigo para as mulheres vítimas de violência, cuidando com especial atenção às situações de vulnerabilidade da violência contra meninas e adolescentes, pela exploração no trabalho, na prostituição e no turismo sexual.

            Sabemos que exemplo salutar de viabilização desta proposta, no Brasil, são as Delegacias das Mulheres vítimas da violência que, desde a década de 80, vêm prestando um grande serviço de apoio e de proteção às mulheres, especialmente nas grandes cidades - embora, a exemplo das Casas de Abrigo, essas instituições ainda sejam insuficientes e não contam com o apoio e os recursos necessários.

            Registro, Sr. Presidente, antes de concluir, apenas um dado importantíssimo. Acerca das delegacias de atendimento à mulher, o Conselho Nacional fez uma pesquisa e chegou às seguintes conclusões: existem no Brasil 307 delegacias de atendimento especial às mulheres. Isso representa apenas 10% dos mais dos cinco mil Municípios brasileiros que existem.

            Essas delegacias funcionam em situação precária: 60% não possuem assistentes sociais nem psicólogos; mais de 32% não possuem armas de fogo; 20% não possuem sequer uma linha telefônica, nem dispõem de viatura; 74,16% não possuem coletes a prova de balas e não operam em regime de plantão de 24 horas nem mesmo nos finais de semana, quando sabemos que ocorre a maioria dos crimes contra a mulher. Portanto, é uma medida que precisa ser aperfeiçoada.

            A regulamentação do art.  226, § 8°, da Constituição Federal, que trata da assistência à família e de coibir a violência no âmbito de suas relações, é tarefa indeclinável do Parlamento.

            A modernização do Código Civil, ora em discussão no Congresso Nacional, deve contemplar mecanismos eficientes de garantia aos direitos da mulher, igualdade na família e na sociedade e em suas responsabilidades coletivas, no trato com filho, herança, propriedade, justiça e liberdade.

            Temos de afastar, de vez , o tabu de que o ambiente familiar é território fora do alcance da lei, com a indiferença social para o que acontece em seu interior: é necessário que as mulheres - sejam esposas, filhas, companheiras ou dependentes- possam estar amparadas pela vigilância legal e social, que as proteja dos abusos de pais, irmãos, companheiros, ou quaisquer outros terceiros que com elas convivam.

            Enquanto milhares de mulheres forem espancadas em suas próprias casas, estupradas e desrespeitadas, a nossa cidadania continuará sendo de segunda categoria.

            No espírito dessa luta contra a violência, apresentei projeto de lei autorizando o Poder Executivo a disponibilizar serviço telefônico nacional gratuito, para denúncias de violência. O projeto, já aprovado no Senado Federal, está atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, e pretende ser mais uma forma de disseminar as possibilidades de acesso a autoridades para a proteção das mulheres, das crianças e dos idosos.

            O projeto, sem dúvida, objetiva cumprir recomendação da Declaração sobre a Violência contra a Mulher, resultante da Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada na Áustria, em 1993, e reafirmada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida em Beijing, China, em 1995.

            Apresentei também projeto de lei reservando às mulheres chefes de família, um mínimo de 20 % dos recursos destinados aos financiamentos habitacionais.

            Para ambos, peço a atenção e o apoio parlamentar necessário à agilidade de sua tramitação.

            Sr. Presidente, a violência contra a mulher, em todos os seus aspectos configura , antes de tudo , uma agressão aos direitos humanos, à democracia, e à vida. A sua erradicação, além do combate específico, exige a superação, de forma mais ampla, das políticas econômicas impostas aos países pobres, que aprofundam a recessão, a concentração de renda e a miséria.

            A violência é , também, fruto da exclusão, do desemprego, da desestruturação familiar e da desesperança que atingem a muitos homens e mulheres.

            Portanto, façamos desta data Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher um momento de reafirmação do compromisso da sociedade brasileira, com o debate, com a mobilização e, acima de tudo, com o combate à violência, num processo que deve ser coletivo e diário.

            Concluirei, fazendo uma referência pessoal específica, pois entendo que cabe essa reflexão neste momento.

            Muitas mulheres, conhecidas ou anônimas, enfrentam grandes lutas contra a violência de que somos vítimas. Aqui vai o meu reconhecimento a todas que lutam e brigam por este País afora e no mundo todo. Entretanto, faço um destaque à figura de uma ilustre gaúcha, a Desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Essa digna magistrada capitaneia a luta contra a instituição do chamado estupro light, ou seja, a desqualificação de crime hediondo quando o estupro ou o atentado violento ao pudor não gerar lesões corporais ou levar a vítima à morte. A Drª Maria Berenice Dias, primeira mulher Desembargadora do meu Estado, com grande coragem e determinação, levantou um verdadeiro estandarte de luta que transcende os limites do Poder Judiciário e, inclusive, do Rio Grande do Sul, estimulando um movimento nacional contra esse casuísmo jurídico. A Desembargadora publicou dezenas de artigos na imprensa e concedeu inúmeras entrevistas à imprensa, reunindo e mobilizando o movimento de mulheres contra essa decisão nitidamente sexista. Precisamos, todos e todas, levantar nossa voz para que isso não se torne jurisprudência.

            Encerro meu pronunciamento, com as sábias palavras do Frei Leonardo Boff:

            O feminino - porque obedece à lógica do complexo e porque é naturalmente inclusivo - representa o único caminho para a humanidade, para um planeta sustentável e para a convivência humanitária entre os povos.

            Diga “não” à violência, por um Brasil e um mundo de homens e mulheres livres e iguais.

            Obrigada.

 

            


            Modelo15/7/241:01



Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/11/2001 - Página 29797