Discurso durante a 170ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas ao posicionamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso à greve dos professores universitários, bem como à política do Governo adotada contra a inflação.

Autor
Lauro Campos (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • Críticas ao posicionamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso à greve dos professores universitários, bem como à política do Governo adotada contra a inflação.
Publicação
Publicação no DSF de 08/12/2001 - Página 30493
Assunto
Outros > PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • CRITICA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, AUSENCIA, REAJUSTE, SALARIO, PROFESSOR, FUNCIONARIO PUBLICO, ANALISE, INSUCESSO, REAL, AUMENTO, INFLAÇÃO, CUSTO DE VIDA, AMPLIAÇÃO, DESEMPREGO, POBREZA.
  • CRITICA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EXCESSO, AUXILIO, BANCOS, AUSENCIA, POLITICA SOCIAL.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Vive le Brésil!

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, que, prematuramente, aposentou-se aos 38 anos de idade, com vencimento integral, tem uma ojeriza não apenas aos funcionários públicos em geral, mas, especialmente, à classe a que pertenceu até tenra idade: 38 anos apenas.

A vivência e a experiência de “Sua Majestade” na universidade foi tão rápida que não lhe permitiu fazer uma avaliação correta das funções do professor, das atividades didáticas e de pesquisa. Por isso mesmo, despreza e persegue essa categoria.

Os funcionários públicos têm pouco valor em uma cabeça paulistana em que só vale o parafuso, só vale o carro montado, só vale a coisa, aquilo que Sua Excelência chamava de “valores de uso” e de “mercadorias”, nos velhos tempos pré-capitalistas e pré-FMI. Sua Excelência, agora, acabou de completar a sua postura de tempos atrás, em que declarou que, para sentar naquela cadeira, no trono presidencial, não era preciso ter lido nada que leu. Agora, pensa “Sua Majestade” que também não é preciso ter estudado para orientar e presidir a Administração brasileira.

Ledo engano. Melhor seria se, ao invés de criticar os estudiosos, os professores, os pesquisadores, tivesse tido a humildade de aprender mais, e aprender criticamente, porque não há outra maneira de aprender. A crítica é a cola que fixa as nossas leituras, as nossas experiências. Sem o olhar crítico, tudo se mistura em um angu indiferente. As determinações particulares de cada momento histórico e de cada país não contam nesse angu, nessa mélange - como o Presidente gostaria de dizer -, que impede que aproveitemos os nossos conhecimentos, que tenhamos a história como mestre, para não errarmos de novo, para não incidirmos nos mesmos erros que, por exemplo, o capitalismo incidiu em outras épocas, em outras paragens.

E não precisaríamos, por exemplo, ter entrado nessa absurda aventura do Real, uma aventura que hipnotizou brasileiros, argentinos e povos de outros países. Apavorados diante de uma inflação incontrolável, que eles não conseguiam também entender, fizeram um diagnóstico muito adequado aos interesses dos povos que nos dominam, muito adequado aos interesses protegidos pelo FMI e pelo capital financeiro internacional - que o Presidente Fernando Henrique Cardoso chamava de imperialista no tempo em que tinha coragem de escrever o que pensava -, um diagnóstico equivocado, dizendo que a nossa inflação havia galopado porque éramos uns consumidores conspícuos, consumidores incontíveis. Gastávamos e consumíamos demais, e, com isso, a demanda aumentava e os preços subiam.

É óbvio que isso não é uma ideologia. Isso é uma mentira mesmo. A ideologia tem refinamentos. A ideologia é uma capa para unir os opostos em uma sociedade polarizada. O papel da ideologia, diz Karl Manhein, é justamente este: obscurecer a realidade e permitir, então, que a polarização não transpareça, não fique muito clara, e que as classes opostas conjuguem a sua ação. De modo que não chega a ser uma ideologia, não é uma construção sutil da mente humana para realizar esse obscurecimento da sociedade e a unidade no processo de trabalho e de produção das classes opostas. O que percebemos é que, a partir daí, sofremos, como a Argentina e o México, um arrocho salarial fantástico, a inflação sorrateira, que passou do galope ao trote, que veio mansa, roendo diariamente, mensalmente, lentamente os nossos salários, desde o primeiro império, o primeiro mandato de Sua Excelência o Presidente da República, chegando hoje a 101%. E algumas categorias não tiveram reajuste de salário.

Para nós, professores, que não tivemos reajuste nos nossos salários, é como se estivesse havendo uma inflação de 75% ao mês, porque todo mês ganhamos 75% a menos do que deveríamos ganhar se tomássemos como referência o início do Plano Real. Isso é muito pior do que aquilo que aconteceu ao final do Governo Sarney, porque, naquela época, embora a inflação tivesse ascendido a 84% ao mês, havia reajustes mensais e até quinzenais de salários e vencimentos.

De modo que, então, a perversidade desenvolveu-se neste Governo da modernidade. E aí começam outras mentiras, de como o País se entregou a uma crise fantástica, capaz de empobrecer todos. Tanto que talvez tenha havido até redistribuição de renda: os que tinham mais perderam mais e os que tinham quase nada não tinham muito a perder. Talvez tenha havido uma redistribuição de renda neste País, governado pelos desgovernados e alienados.

Houve falência das indústrias nacionais, dos fornecedores de peças, de empresários eficientes e honestos, como, por exemplo, o Midlin, que não agüentaram a taxa de câmbio, completamente enlouquecida. O Presidente Fernando Henrique Cardoso falou algo parecido com o Sr. Gustavo Franco, dizendo que ela estava exagerada. Exagerada está para ele, pois, para mim, está enlouquecida.

Eles queriam que um real comprasse dois dólares, no princípio. Então, ajustaram em torno de R$0,80 a paridade do dólar com a nossa fraca moeda. Estaríamos, assim, monetariamente no Primeiro Mundo. “O nosso real vale mais do que o dólar”, diziam os mentirosos de outrora. Mas as mentiras têm pernas curtas. Acontece que, para uns, o tempo corre de uma maneira, e, para outros, o tempo tem outra significação. Para aqueles que gastam o tempo em Paris, Londres, nos grandes restaurants, restaurantes ou ristoranti, em cada país se fala uma língua e se saboreia um paladar, a arte culinária se diversifica para servir àqueles para quem o tempo não passa. Agora, para aqueles que sofrem, que estão desempregados - o que vem aumentando enormemente -, o tempo custa a passar, é um exercício de sacrifício.

Portanto, nem o tempo é neutro. Para alguns, oito anos de Governo é pouco: “Que pena! Passou muito depressa!” Mas não para aqueles que, quando ficavam desempregados, com uma ou duas semanas encontravam um novo emprego e agora ficam cinqüenta semanas desempregados, algo que os economistas chamam de “desemprego friccional”. É uma terminologia neutra: “desemprego friccional”, “inflação residual”. São nomes bonitos, interessantes, soft e sofisticados. Mas o sofrimento é o mesmo - agora, muito maior do que outrora, porque agora leva-se 50 meses para se conseguir arranjar uma outra ocupação.

Então eles, lá de cima, falam que os culpados pelo desemprego são os trabalhadores que não se atualizaram. Veio a modernidade, e eles não perceberam. Deveriam ter-se reciclado. Reciclado para quê? O desemprego não exige reciclagem de nada. Reciclado para que, se os formados não conseguem lugar no mercado de trabalho? Reciclados para que, se aqueles que estão empregados são submetidos a uma tal de demissão “voluntária”, com o revólver na testa? Demissão “voluntária”! Os nomes são bonitos, muito burgueses, nomes e palavras que usam talco e perfume francês. Mas a realidade bruta é aquela mesma, que eles não conhecem. Outro dia, o Presidente do Banco Central disse que nunca tinha visto um pobre, que não havia pobres no Brasil, e quando uma criança veio pedir-lhe uma esmola na garagem, ele se recusou, porque, naturalmente, aquele deveria ser um banqueiro travestido em mendigo, pedindo esmolas. É isso o que acontece neste País.

E resolveram, com a cabeça monetarista, que o FMI, naquela ocasião, estaria errado. O FMI disse que o Plano Real era um engodo para vencer as eleições e não duraria mais do que três meses. Quem disse isso foi o FMI. O FMI jamais supôs que seria possível anestesiar um povo inteiro, ou povos inteiros - o brasileiro, o argentino, o mexicano, etc. - e aplicar neles essa dose de remédio heróico, de remédio letal. Enxugaram depois os funcionários públicos. Primeiro, privatizando, e é claro que a lógica da privatização, de uma empresa privatizada, é diferente da lógica das empresas estatais. A lógica da empresa privada consiste, única e exclusivamente, em maximizar lucro e, agora, com a crise aprofundada por este Governo, minimizar prejuízos. Aquilo que se aprendia antes nas faculdades de economia - maximizar lucros - transformou-se em minimizar prejuízos. O downsizing ou reengenharia são mais duas palavras com “pó de arroz e perfume franceses”. No caso, é “perfume americano”: Demitir, demitir, demitir é a tradução desse termo. Enxugar para reduzir custos e aumentar lucro, como sempre! Não há novidade nenhuma nisso, só os nomes são novos e importados via FMI.

O neoliberalismo também não é novo. Se os professores e aqueles que desprezam os professores e os pesquisadores tivessem lido mais um pouco, em vez de se aposentarem prematuramente, tivessem continuado a estudar mais uns dez ou onze anos, vencendo uma parte do seu narcisismo, que afirma que eles sabem tudo, são donos de todo o saber e de todo o poder, se eles tivessem humildade, eles teriam percebido um dia que o neoliberalismo surgiu em Viena, na Áustria; em Lausanne, na Suíça, e em Londres, em 1873. E foi ressuscitado por Friedman e Hayek, em meados dos anos 50. Não tem nada de novo, a não ser para aqueles que não sabiam, não conheciam, que não tinham pesquisado, que não tinham lido, que não tinham estudado. Apenas para aqueles que estavam au-delà de la mélange, acima do angu, é que poderiam cair de novo na mesma esparrela do neoliberalismo, que faleceu de morte não muito súbita em 1929.

Diante da crise de 1873, que foi a mais prolongada crise que o capitalismo conheceu, havia uma coisa esperta, malandra e inteligente na construção, por exemplo, de Alfred Marshall, professor inglês - que foi professor do Lord Keynes - que passou vinte anos escrevendo o seu livro Principles of Economics.

A esperteza principal consiste no seguinte: eles dizem no seu diagnóstico equivocado, de 1873, que o governo atrapalha, que a moeda atrapalha, e que, portanto, se acabarmos com o governo e deixarmos a responsabilidade do ajuste entre produção e consumo, entre oferta e demanda, entre mercadoria e dinheiro, deixarmos essas coisas livres, o mercado as ajustará, pois o mercado é muito mais inteligente do que os seres humanos - dizem eles.

Então, esses iluministas acham que existe uma inteligência superior a dirigir as coisas quando livremente soltas. Assim, se arranjarmos um governo que não faça nada, que não faça obras, talvez propaganda, do nada ou do quase nada; se tivermos um governo ausente diante do desemprego crescente, das falências, da invasão do capital estrangeiro, da desnacionalização e da privatização, tudo vai se ajustar no melhor dos mundos - pensam e afirmam esses senhores.

Qual é a inteligência desse falso diagnóstico? O Estado, o governo, sempre, desde o princípio do capitalismo, ajudou na acumulação de capital, principalmente no Brasil. Se não fosse o governo, não haveria nenhuma grande empresa neste País até hoje. Elas nasceram sob a égide do Estado e se mantiveram, como diz Delfim Netto, mamando nas tetas do governo até exauri-lo. Então, o governo, exaurido, entra em crise, não consegue mais pagar e sustentar nem aviões no ar, nem banqueiros na terra.

Esse governo, falido e incapaz de atuar no mundo real, diz que é bonito ser magro, que é bonito deixar o mercado agir com sua razão pura e destruir, como se fosse um cavalo de Átila, a terra em que pisa.

O Governo encontrou a justificativa para a sua incompetência total, o seu diagnóstico equivocado, a sua medicina letal. E diz que o culpado não é ele, é o mercado, o mercado de câmbio que eles congelaram lá embaixo, facilitando as importações e as compras de perfumes, de gravata Hermès, de carros e de tudo. Importamos e destruímos o parque nacional. Subsidiamos as importações com o câmbio enlouquecido.

A taxa de juros, que é a renda dos banqueiros, livremente, foi colocada, não pela inteligência do mercado, mas pela esperteza dos presidentes do Banco Central, a 49% ao ano. Que liberdade é essa? No entanto, os salários e os vencimentos, estes sim, foram submetidos à rigidez cadavérica. Deu no que deu!

A Argentina enxugou tanto, durante todo esse tempo, desde 1990, na primeira cavalgada do Sr. Domingo Cavallo, com um peso valendo um dólar, constitucionalizado - o que é outro absurdo.

Não tive tempo de começar ainda, mas já vou terminar.

Antigamente, nos saudosos tempos do ACM, nos saudosos tempos do Presidente Sarney, a TV Senado, de vez em quando, nos ouvia com mais paciência e mais tempo. Agora, não. Agora, é a eficiência. São flashes, porque o tempo é ouro para eles. Então, nós não temos muito tempo para falar nem aqui nem lá, na TV Senado, democraticamente. Saudades do ACM!

Parece-me que, se eles tivessem lido mais, teriam percebido o que aconteceu em várias experiências históricas: quando falta dinheiro, quando restringem muito o meio circulante, as moedas em circulação, enxugam demais, acontece, como aconteceu, por exemplo, com o Ato Peel, na Inglaterra, em 1844. Reagindo contra o enxugamento inglês, em 1844, apareceu uma forma monetária, a moeda escritural, que desempenhava um papel duas vezes maior, em média, no mundo, do que o próprio papel moeda que circula.

Na Argentina, enxugaram, enxugaram e apareceu o patacón, apareceu o bonnaipe, novas formas monetárias. Assim como no Brasil, que enxugou tanto que o vale-refeição, o vale-transporte, o vale-tudo adquiriram credibilidade e passaram a funcionar como moeda - a moeda que eles levaram, que eles enxugaram. Mas, enxugaram principalmente dos funcionários e dos trabalhadores; não a enxugaram dos banqueiros, não! Para os banqueiros, ao contrário, eles deram o Proer; um Proer que deu um prejuízo de R$23 bilhões. Naquele tempo US$ 23 bilhões!

            Hoje vim aqui para falar sobre essas moedas que vão aparecer. Quando fazem uma rigidez nos Estados, os que se valiam dos bancos estaduais para aumentar ao seu poder de compra, para aumentar o meio circulante, perdem esta fonte de criação de moeda. Agora, mais e mais restrições; os Estados e Municípios só têm dispõem de 87% de sua receita, quando 100% já não eram suficientes. Então, vão surgir novas moedas, como aconteceu em Diamantina, por exemplo, no final do Século XIX, quando lá apareceu o borrusquê, uma moeda fabricada por um comerciante. E aqui, nós não temos o patacón, que é esse dinheiro argentino emitido por municípios. Os municípios não tendo o peso, pagam em patacón. De modo que, dentro de pouco tempo, para se salvarem, teremos aí o Governo de Minas Gerais emitindo a sua moeda, o Governo de São Paulo emitindo as suas "alquimetas", assim como o Governo do Rio de Janeiro. É a proteção da vida contra esses desalmados, desumanos tecnocratas que se apoderaram do poder. Um Governo de cabeça, da eficiência, industrial e que não tem sequer a humildade de reconhecer que diante da crise a realidade muda, e, se os governos não entendem o processo da crise, passam a produzir patacones e passam a produzir borrusquês, e passam a produzir - como na crise de 1847, na Inglaterra - a moeda escritural. Deviam ter continuado a estudar, sim, para impedir que se repetissem erros que não precisariam ser repetidos se eles tivessem estudado mais, se não tivessem uma visão unidimensional do mundo, se não desprezassem a universidade e a experiência histórica.

Eu gostaria de ter começado por aqui.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/12/2001 - Página 30493