Discurso durante a 172ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Regozijo com a exposição, no Senado Federal, do artista plástico Cícero Dias.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • Regozijo com a exposição, no Senado Federal, do artista plástico Cícero Dias.
Publicação
Publicação no DSF de 12/12/2001 - Página 30735
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • IMPORTANCIA, EXPOSIÇÃO, OBRA ARTISTICA, CICERO DIAS, ARTISTA, PINTOR, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), SENADO.
  • ELOGIO, TRABALHO, OBRA ARTISTICA, CICERO DIAS, ARTISTA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), RECONHECIMENTO, AMBITO NACIONAL, AMBITO INTERNACIONAL.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS -- PE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, "Ele pinta poemas. Pinta sonhos". José Lins do Rego assim define, com extrema sensibilidade e concisão, a arte de Cícero Dias, artista plástico pernambucano de dimensão internacional cuja vida, dividida entre Recife, Rio e Paris, é o retrato bem-sucedido do talento brasileiro. Conhecida e reconhecida por artistas, críticos e intelectuais, sua obra é digna de todas as iniciativas para torná-la mais próxima do grande público. Estamos esta semana tendo a honra e a oportunidade de ver, no Senado Federal, algumas das mais belas gravuras de Cícero Dias, que nos remetem um pouco à grandiosidade de sua obra.

            Cícero Dias vive há décadas em Paris e conta hoje com 94 anos. Sua trajetória, marcada pelo brilhantismo e capacidade criadora, o faz um dos mais importantes artistas nacionais. Ousadia e vanguarda foram seus primeiros nomes; depois, lirismo, fantasia. Surpresa e deslumbramento, do início ao fim.

            A primeira mostra, realizada no Rio de Janeiro em 1928, conseguiu dividir águas: deixou exultantes os modernistas, ao tempo em que acendeu críticas ferozes e indignadas de todos os adeptos de cânones, amarras e teorias a que Cícero nunca se apegou. Os intolerantes não podiam mesmo aceitar a liberdade que representava, numa alegoria fantástica e fantasmagórica, o erudito e o popular, e toda a riqueza criadora de um autor que, partindo das experiências regionais, alcançava o universal. Mas a reação não impediu que Cícero fosse devidamente saudado na sua grandeza e reconhecido, então e nas décadas seguintes, como o pintor-poeta que é.

            Em 1931, a hora do verdadeiro escândalo. Seu painel de 15 metros de largura por 2,5 de altura, exposto no Salão Nacional de 31, organizado por Lúcio Costa e posteriormente chamado de Salão Revolucionário, causou sensação no tradicional habitat de acadêmicos. O "anjo músico", como disse Mário de Andrade, exibia seu telúrico Eu vi o mundo... ele começava no Recife, marco indiscutível nas artes nacionais. Uma obra regional, nacional e universal, como manda a tradição e a vocação da intelectualidade pernambucana. O mesmo Mário de Andrade testemunhou a agitação provocada pelo painel, descrevendo em carta dirigida a Tarsila do Amaral como o trabalho do jovem pernambucano estava fazendo com que "rachassem as paredes" da Escola Nacional de Belas Artes. Infelizmente, vândalos destruíram 3 metros do painel, onde apareciam seus nus. Detalhe: esse painel fôra realizado quando o autor tinha somente 21 anos.

            Aqui um parêntese, apenas para trazer um pouco de picardia ao discurso. Esse negócio de “o mundo começar no Recife” sempre traz algumas polêmicas. Temos o exemplo recente da obra de Francisco Brennand, escultor internacionalmente reconhecido, ela instalada defronte à praça Marco Zero, nos arrecifes do porto, que escandalizou os moralistas, vestais e conservadores de nossa terra. Gostaria que fosse diferente, mas Pernambuco, um pedaço revolucionário do Brasil, também conta com fundamentalistas morais e sua ira, que presumem santa.

            Na Europa, para onde foi em 1937, cresceu artisticamente e arrebanhou a mesma admiração que aqui havia conquistado. Principalmente em Paris, onde sua arte se expandiu e o artista teve contato com outros grandes, iguais, especialmente os amigos Pablo Picasso e o poeta Paul Éluard. Passou pela Alemanha nazista, de onde saiu trocado por uns soldados; foi para Lisboa, encontrando um regime de restrição, como era o de Salazar, que apesar de tudo lhe permitia locomover-se e encontrar-se com gente do porte de Almada Negreiros, Casais Monteiro, Adriano de Gusmão, entre outros.

            Depois de sua primeira aparição, foi tachado de surrealista, sem nunca ter visto quadros dessa corrente. Ele mesmo se surpreendeu: "Só conheço o surrealismo pela conversa de alguns amigos. (...) Por isso mesmo não sei se sou surrealista. Sei apenas que sou de Pernambuco, terra de muitas fantasias na arte popular." Como é do gosto dos críticos, sua obra foi também enquadrada na arte fantástica, embora Ariano Suassuna tenha preferido chamá-la de "realismo mágico", frisando que não se tratava do mesmo movimento surgido no Velho Mundo. Nesse fantástico nordestino que de fato habita a obra de Cícero, há mitos e fábulas fundacionais, herdados de portugueses, espanhóis, negros e povos originários da América. Não é à-toa que sua obra tenha encontrado em Gilberto Freyre um grande admirador e parceiro. Posteriormente, mais uma "classificação": a de pioneiro do concretismo no Brasil, título recebido em virtude de oito murais abstratos que em 1948 foram exibidos em Pernambuco. Como era de costume, protestos veementes se levantaram contra as novas composições do autor.

            Em todas as tentativas, válidas e legítimas, de compreender e interpretar a obra de Cícero Dias, o que fica sempre visível é o prestígio e a especial deferência pela originalidade e fecundidade de sua obra. E a convicção de que seu regionalismo - o Pernambuco com sua civilização do açúcar, seus coqueirais, personagens, calungas, cordéis - plasmou-se universal, sem perder as cores e a luminosidade dos trópicos, que encantavam e encantam o mundo.

            A força de suas raízes está ali, inegavelmente - nos painéis escandalosos e nos inspirados em Frei Caneca, assim como nos desenhos de Casa Grande e Senzala, o clássico de Gilberto Freyre e Cobra Norato, de Raul Bopp; nos cenários e figurinos do Ballet Jurupari, com música de Villa-Lobos, ao cartaz para o 1º Congresso Afro-brasileiro, de 1934; na sua obra em geral plena de emoção, inclusive nas cores estouradas de seus geometrismos. Também poeta e romancista, e dos bons, embora tímido, Cícero Dias encarna a poesia em toda sua produção. Talvez por isso a admiração de José Lins do Rego, que o via como um "milagre", mas também como o "menino do engenho".

            Muito mais poderia falar-se sobre sua obra, seus prêmios, sua rica experiência. São inúmeros os trabalhos e os escritos sobre ele e desde logo se diga, todos me foram de extrema serventia. O "menino do Recife", como a Cícero Dias já se referiu Rachel de Queiróz, comete todas as ousadias até hoje, ao desafiar o tempo e manter-se, ainda, nos encantando, como aquele menino da nossa cidade e do mundo. Por isso o homenageamos e respeitamos: pela capacidade de trabalho, pela beleza que nos oferece e, acima de tudo, por nos fazer sonhar.


            Modelo15/2/2412:36



Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/12/2001 - Página 30735