Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o livro "Diálogos na Sombra", do historiador Keenneth P. Serbin. Homenagens ao Cardeal Dom Eugênio Sales.

Autor
Fernando Bezerra (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/RN)
Nome completo: Fernando Luiz Gonçalves Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.:
  • Considerações sobre o livro "Diálogos na Sombra", do historiador Keenneth P. Serbin. Homenagens ao Cardeal Dom Eugênio Sales.
Publicação
Publicação no DSF de 19/12/2001 - Página 31853
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • ELOGIO, PUBLICAÇÃO, LIVRO, AUTORIA, KEENNETH SERBIN, HISTORIADOR, ANALISE, DOCUMENTO, ENCONTRO, FORÇAS ARMADAS, IGREJA CATOLICA, OBJETIVO, PRESERVAÇÃO, SEGURANÇA NACIONAL, DIREITOS HUMANOS, DIFICULDADE, UNIÃO, IDEOLOGIA, NECESSIDADE, UTILIZAÇÃO, DIPLOMACIA.
  • HOMENAGEM, EUGENIO SALES, ARCEBISPO, ATUAÇÃO, EPOCA, GOVERNO, MILITAR, LUTA, DEFESA, DIREITOS HUMANOS, PROMOÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL, PROTEÇÃO, POPULAÇÃO, REFUGIADO, DESEQUILIBRIO, TORTURA, DITADURA, REGIME MILITAR.
  • ANALISE, NECESSIDADE, REAVALIAÇÃO, FATO, HISTORIA, EPOCA, REGIME MILITAR, RESGATE, PERSONAGEM ILUSTRE.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. FERNANDO BEZERRA (PTB - RN) - Sr. Presidente, Srªs, e Srs. Senadores, venho a esta tribuna movido por dois objetivos.

            O primeiro, é de cunho histórico: fazer ecoar nesta Casa o registro de importante pesquisa acerca de um dos períodos mais polêmicos de nossa História, quando os destinos do Brasil estavam nas mãos das Forças Armadas. O segundo objetivo é um dever pessoal: prestar merecida homenagem a um ilustre filho do Rio Grande do Norte, que teve destacada e decisiva atuação na difícil tarefa de tecer aqueles destinos.

            Refiro-me, Sr. Presidente, à recente publicação do livro Diálogos na Sombra, do historiador norte-americano Kenneth P. Serbin, editado pela Companhia das Letras e já à venda em todo o território nacional. Essa importante obra traz à luz, através de cuidadosa e profunda análise, documentos inéditos que relatam, com riqueza de detalhes, encontros secretos entre oficiais das Forças Armadas e bispos da Igreja Católica.

            Entre eles, destaca-se o norteriograndense Cardeal Dom Eugênio de Araújo Sales, uma das figuras marcantes do catolicismo brasileiro.

            A leitura da história desses encontros está provocando profunda revisão na maneira de julgar historicamente o conturbado período do governo do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).

            Enquanto ocorriam entrechoques entre os defensores do regime militar, de um lado, e os líderes democráticos e os militantes da esquerda, de outro, travava-se nos bastidores uma nervosa luta diplomática em que, cientes de suas responsabilidades, lideranças militares e eclesiásticas tentavam vislumbrar a verdade dos fatos, muitas vezes alterada por diferentes versões e boatos, bem como estabelecer um “modus vivendi” entre a doutrina social da Igreja e os princípios de segurança nacional dos militares.

            De um modo geral, a Igreja havia acolhido bem a chamada “gloriosa Revolução” de 64, que se propunha livrar o Brasil do perigo comunista. Mas a implantação da ditadura militar, alterando consideravelmente o ambiente político, obrigou a Igreja a se retrair. Foi-se acentuando cada vez mais o atrito entre a Igreja e as Forças Armadas, a ponto de acontecer uma ruptura quase total entre as duas tradicionais instituições do povo brasileiro.

            O Exército acusava a Igreja de abandonar sua habitual tarefa religiosa, passando a adotar uma postura excessivamente política na defesa dos direitos humanos, nas exigências de mais liberdade e na luta contra as desigualdades sociais.

            Por seu lado, a Igreja, embora reconhecendo as benesses do “milagre econômico”, reclamava do Exército a intransigência com que implantava a dura Doutrina de Segurança Nacional. De modo particular, condenava a pesada repressão indiscriminada a padres e militantes católicos, tachados de subversivos, inimigos da pátria ou associados a membros do proscrito Partido Comunista.

            Assim esclarece o autor: “Os generais queriam a benção dos bispos ao seu regime, e os prelados queriam a garantia dos privilégios e do espaço doutrinal concedidos à Igreja desde o início da história do Brasil. Os militares enfatizavam os perigos do comunismo enquanto a Igreja apontava para as necessidades da justiça social”.

            Srªs. e Srs. Senadores, foi nesse clima sombrio da pior crise jamais vivida entre Igreja e Estado no Brasil, que pastores e militares decidiram negociar, com uma condição aceita por ambas as partes: os encontros deviam se realizar longe das trincheiras e do calor das ruas, sem o conhecimento da imprensa. Todos procuravam a sombra da diplomacia e a salvaguarda do silêncio.

            Assim, surgiu a chamada “Comissão Bipartite”. Embora autorizada pelo Presidente Médici, ela não tinha estrutura legal, mas foi, informalmente, uma séria tentativa de discutir e tentar resolver os impasses entre Igreja e Governo.

            Durante quatro anos (de 1970 a 1974), em 24 encontros secretos, estiveram frente a frente dois grupos de personalidades que se autodenominaram “Grupo da Situação”, formado por oficiais que tinham ligação com a Escola Superior de Guerra (ESG) e “Grupo Religioso”, que reunia bispos de várias tendências, alguns mais tarde designados Cardeais.

            Nas discussões, procuraram esclarecer as diferentes posições ideológicas de ambas as partes: a Doutrina de Segurança Nacional, assumida pelos militares, e a Doutrina Social da Igreja, suscitada pelo Concilio Vaticano II e implementada na América Latina pelo Documento de Medellín.

            Sobretudo, a Comissão constituiu-se um foro privilegiado para a discussão das constantes violações dos direitos humanos.

            Havia concessões de ambos os lados: enquanto intensificava sua força repressiva na ação desenfreada dos torturadores, o Governo procurava um diálogo com as autoridades eclesiásticas. E a Igreja, enquanto desempenhava seu papel de denúncia e do protesto em relação às violações dos direitos humanos, aceitava a oferta do diálogo, submetida à exigência do silêncio.

            A importância maior desta Comissão que atravessou incólume os anos do regime militar com seu trabalho persistente e secreto, foi certamente a de estabelecer um canal de comunicação que contribuísse para amenizar os atritos entre as duas posições.

            Todavia, o maior entrave para essa convergência era justamente o Documento de Medellín, um dos textos mais revolucionários posto em prática pela Igreja na América Latina, produzido pelas lideranças católicas e aprovado pelo episcopado do continente na assembléia do CELAM (Conferência do Episcopado Latino Americano), em 1968 e que fora aprovado pelo Papa.

            O capítulo do Documento de Medellín que trata da justiça social foi de responsabilidade de Dom Eugênio Sales, que chefiava a Comissão de Justiça da Conferência.

            Os militares consideraram o documento altamente subversivo, dizendo que ele incitava à revolta e à luta armada. Dom Eugênio procurou então mostrar que a importância daquele texto era de outra ordem. Além disso, o texto não especificava a situação do Brasil, pois era endereçado a toda a América Latina. Visto no seu conjunto, o Documento era mais religioso, do que político, opondo-se inclusive ao marxismo.

            Srªs. e Srs. Senadores, Dom Eugênio se impôs como um dos principais participantes da Comissão Bipartite, o mais respeitado interlocutor da Igreja junto às Forças Armadas, e, por esta razão, quero prestar-lhe minha homenagem nesta Casa do povo.

            Dos documentos secretos agora divulgados e analisados emerge o verdadeiro perfil de Dom Eugênio, e é necessário que a ele se faça justiça.

            Maniqueístas e sectários o haviam taxado de “conservador” e “amigo dos militares”. Na verdade, Dom Eugênio sempre pautou sua vida por uma transparente e constante fidelidade à Igreja e pelo respeito às autoridades constituídas. Sua índole reservada e o fato de raramente conceder entrevistas contribuíram para se tivesse dele a falsa imagem de uma submissão que nunca existiu.

            Dom Eugênio nunca foi de ficar na sacristia. Grande parte da história do meu Estado, o Rio Grande do Norte, foi escrita pelo jovem bispo que plasmou lideranças leigas no famoso “Movimento de Natal” e foi pioneiro na alfabetização de adultos, com a criação do Movimento de Educação de Base (MEB), tendo usado positivamente o grande poder de alcance do rádio nas regiões mais inóspitas, quando nem se sabia no Brasil o que era televisão.

            A Igreja reconheceu sua capacidade de liderança elevando-o rapidamente aos mais altos postos eclesiásticos. Arcebispo de Salvador, a sede primaz do Brasil, em 1968, foi designado Cardeal no ano seguinte, 1969, e logo depois, em 1971, foi transferido para o Rio de Janeiro.

            Como Cardeal da mais importante arquidiocese do Brasil, Dom Eugênio teve de enfrentar o período ditatorial. O fato de estar no Rio e ser Cardeal trouxe-lhe o peso de uma responsabilidade maior. Agora o Cardeal potiguar, além de seu dever pastoral tinha nova obrigação: o desafio político. Ao chegar ao Rio ele vai encontrar a “Revolução” na sua face mais dramática e cruel. Tinha de conviver com ela, sem se perder!

            Na realidade, Dom Eugênio nunca apoiou o regime ditatorial. Ele tinha compromissos com as reformas sociais. Em 1964, ele proibiu uma celebração religiosa pela “Revolução” e, mais tarde, recusou uma condecoração que lhe seria dada pelas mãos daqueles que prendiam padres e desrespeitavam os direitos humanos.

            Com relação ao desumano problema da tortura, a posição de Dom Eugênio foi sempre clara, sem ambigüidades e corajosa. Cito o autor do livro: “Dom Eugenio deixou bem claro que ele sabia dos abusos e que o governo só poderia se redimir se acabasse com eles”.

            Dom Waldyr, bispo progressista de Volta Redonda, atingido duramente pelas forças de repressão, também deu seu testemunho a favor de Dom Eugênio: “Morando em Natal, dentro daquela miséria, Dom Eugênio tinha iniciativas amplamente sociais, conhecidas no Brasil inteiro. Agora ele mudou? Mudou os métodos, não a preocupação pelos problemas sociais. Nunca apoiou a violência. Nós denunciávamos, ele dialogava”.

            O autor de “Diálogos na sombra” observa que é muito interessante escutar o que Dom Eugênio e Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal-arcebispo de São Paulo, disseram um do outro. Entrevistados separadamente, houve coincidência de sentimentos.

            Disse Dom Eugênio: “Dom Paulo tem um método que é diferente do meu, mas creio que queremos a mesma coisa”.

            Disse Dom Paulo: “Dizem que Dom Eugênio é mais conservador, que eu sou mais progressista. Isso tudo é conversa. Nós temos outra maneira de proceder, mas sempre a mesma finalidade”.

            Assim, embora mantendo uma relação com as autoridades militares, Dom Eugênio não se omitia em discordar diretamente, sem alarde, mas com firmeza, dos excessos do regime, sobretudo no desrespeito aos direitos humanos e à prática da tortura.

            A grande verdade que hoje vem à tona é que Dom Eugênio optou pelo equilíbrio. Por um lado, era dever da Igreja promover a justiça social e ser voz dos excluídos. Por outro lado, havia a necessidade de manter a convivência com o regime militar.

            A tensão entre o pastor e o político exigiu de Dom Eugênio um posicionamento que salvaguardasse um, sem desmerecer o outro. Era muito fácil ser pastor contra o governo. Mais difícil era ser político, sem abdicar do pastor. Foi este o caminho que ele escolheu.

            No entanto, a mídia viu apenas o político e logo o esteriotipou de “conservador” e “colaborador”.

            Secretamente, porém, muitas pessoas que encontraram a liberdade graças à sua paciente intervenção, vislumbraram o pastor, que não gritava na praça pública, mas que não se cansava de defender os direitos humanos e de proteger os perseguidos pela ditadura.

            Na batalha pelos direitos humanos, Dom Eugênio revelou-se ser, de fato, um grande estrategista.

            Segundo o autor do livro: “Durante os anos Médici, Dom Eugênio ajudou dezenas de pessoas, inclusive padres, que foram presos ou ameaçados pelas forças de repressão. Em alguns casos, recebeu indivíduos em sua casa ou fez com que passassem a noite na residência de funcionários da arquidiocese. Dom Eugênio protestou com Médici sobre o uso da tortura”.

            Dom Eugênio ajudou também centenas de refugiados políticos, inclusive tupamaros e monteneros, levando-os em seu carro oficial ao Sumaré para abrigá-los em sua casa e, depois, escoltando-os ao aeroporto, para a saída do País. Ele sabia que estava desafiando o regime e avisou pessoalmente ao governo o que fazia.

            Eis o seu testemunho: “Vou seguir o meu dever de pastor, embora isso contrarie a lei do Brasil. Liguei para o comando militar. - General, quando chegar ao conhecimento dos serviços secretos da Revolução que os comunistas estão na minha casa, eu quero lhe dizer que eu sou o responsável. Ponto final. Eu não podia pedir permissão ao general para cumprir meu dever de bispo”.

            Srªs. e Srs. Senadores, na verdade o grande efeito destes “diálogos na sombra” nós estamos sentindo agora: é a necessidade, por parte dos estudiosos, dos pesquisadores, do povo em geral, de fazer uma reavaliação daquele período nebuloso da história nacional, quando, estando amordaçada a liberdade, o medo dominava os espíritos e a camuflagem protegia os crimes.

            Particularmente para o povo do Rio Grande do Norte, que eu tenho a honra de representar nesta Casa, uma conclusão se impõe: o Cardeal Dom Eugênio Sales emerge desta pesquisa inédita com todo o vigor dos heróis esquecidos.

            A sua face oficial e visível é bastante conhecida.

            Surge agora o herói invisível que, na sua modéstia e discrição, apenas alguns colaboradores mais íntimos conheciam. Revelando ao público, após anos e anos de pesquisa, numerosos e preciosos segredos dos “Diálogos na sombra”, o historiador norte-americano Kenneth P. Serbin deu o primeiro passo para o resgate definitivo da figura de Dom Eugênio Sales, um paladino dos direitos humanos, um herói anônimo.

            Muito obrigado.


            Modelo112/19/241:05



Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/12/2001 - Página 31853