Discurso durante a Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre o ano de 2001. Leitura de apostila sobre Ética do grupo composto pela Fundação de Prefeitos Faria Lima, União dos Vereadores do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Municípios. Preocupação com a questão ecológica no Brasil.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ORÇAMENTO. POLITICA CULTURAL. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • Reflexão sobre o ano de 2001. Leitura de apostila sobre Ética do grupo composto pela Fundação de Prefeitos Faria Lima, União dos Vereadores do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Municípios. Preocupação com a questão ecológica no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 27/12/2001 - Página 32236
Assunto
Outros > ORÇAMENTO. POLITICA CULTURAL. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • CRITICA, DEMORA, APROVAÇÃO, ORÇAMENTO, ESCLARECIMENTOS, AUSENCIA, RESPONSABILIDADE, BANCADA, OPOSIÇÃO.
  • LEITURA, TRABALHO, ETICA, RESULTADO, PESQUISA, ASSOCIAÇÕES, FUNDAÇÃO.
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, ETICA, INFLUENCIA, COMPORTAMENTO, PESSOAS, POLITICO.
  • LEITURA, TRECHO, TRABALHO, LEONARDO BOFF, ESCRITOR, DEFINIÇÃO, ETICA.
  • COMENTARIO, PERIODO, ATUALIDADE, DESENVOLVIMENTO, TECNOLOGIA, ACUMULAÇÃO, INFORMAÇÕES, IMPORTANCIA, CAPACIDADE, PRODUÇÃO, CONHECIMENTO.
  • CRITICA, MISERIA, FOME, DESEQUILIBRIO, NATUREZA, DESMATAMENTO, FLORESTA.
  • COMENTARIO, LIVRO, AUTOR, YANINE BENYUS, BIOLOGO, ASSUNTO, RELACIONAMENTO, ESPECIE, NATUREZA, IMPORTANCIA, LIGAÇÃO, HOMEM, LOCAL, HABITAÇÃO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, esta sessão contou com a participação de vários Srs. Senadores. Cada qual fez uma abordagem muito competente, principalmente quanto à questão que aqui viemos debater e para a qual fomos convocados, no dia 26, após o Natal: o Orçamento da União.

            É claro que não repetirei os argumentos dos Colegas, até porque me sinto contemplada, em boa parte pelas abordagens que aqui foram feitas.

            Aproveitando o espírito introduzido pelo Senador Romeu Tuma, que fez uma justa homenagem ao apresentador Raul Gil, pela capacidade que tem de ser um verdadeiro pescador de talentos, quero fazer uma ligeira reflexão, talvez tocada um pouco pela melancolia de um fim de ano.

            Ainda não temos certeza de que concluímos as nossas tarefas, em função de tudo o que já foi dito em relação ao Orçamento, e não sabemos como fazer para concluí-las.

            Não concordo com a tese de que é uma minoria que está impedindo a votação do Orçamento. Este Congresso tem 513 Srs. Deputados e 81 Srs. Senadores. Se houvesse uma maioria determinada a fazer aquilo que acredita, aquilo que quer, aquilo que está dentro das diretrizes gerais do Governo, com certeza aprovaria a matéria; afinal de contas, a Oposição e alguns outros não formariam quorum suficiente para impedir essa votação. Seria muito simplista colocar na conta de uma minoria o que está acontecendo aqui. O que está acontecendo, na verdade, é fruto de uma série de problemas que ocorreram ao longo de todo o ano e que vieram a refletir no fim dos trabalhos, quando as matérias passam a ser votadas açodadamente, de última hora, com pautas cheias, adentrando as madrugadas, como muito bem salientou o Senador Osmar Dias.

            Não quero falar sobre esse assunto; quero apenas fazer justiça, para que não se debite na conta da Oposição o que está acontecendo. Afinal de contas, quando o Governo quer aprovar uma matéria, já observamos que ele consegue. Não há Oposição que o impeça de fazê-lo. Portanto, algo está errado.

            Se esta sessão estiver sendo ouvida na Amazônia por algum caboclo, ele dirá que se trata da famosa “sessão do choro do surubim”. Quando algo está errado, o surubim emite um som parecido com o choro para denunciar. De certa forma, é um aviso para as demais espécies da redondeza. Talvez estejamos fazendo isso.

            Quero continuar o choro do surubim, fazendo uma reflexão sobre o fim do ano. Vivemos um momento em que somos levados a pensar sobre as nossas atividades, sobre os fatos que deram ou não certo no ano que está sendo concluído. Somos obrigados a planejar o que queremos para o próximo ano e a fazer uma espécie de breve acerto de contas da nossa vida, que, muitas vezes, recomeça somente no fim de fevereiro. Nesse período, a rotina já nos engoliu novamente, e vemo-nos completamente atabalhoados, sem nos atermos ao planejamento que fizemos. Porém, boa parte das pessoas acaba fazendo esse planejamento quando chega o fim do ano, e eu não tenho fugido à regra.

            Sr. Presidente, quero também fazer a leitura de uma espécie de apostila muito simples, que foi feita por um grupo de instituições, composta pela Fundação de Prefeitos Faria Lima, União dos Vereadores do Estado de São Paulo, Associação Paulista de Municípios e algumas instituições de apoio, como a Escola de Governo da ABFG, a Pontifícia Universidade Católica, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, Secretaria de Economia e Planejamento, Universidade de São Paulo e assim por diante.

            Foi muito interessante o trabalho realizado, Sr. Presidente, porque era sobre ética, destinado exatamente à ação na esfera municipal. Achei tão interessante esse trabalho que acabei pedindo autorização aos organizadores para fazer uma reprodução no Senado, a fim de que seja distribuído nas escolas de Primeiro e Segundo Graus, principalmente a partir da 8ª série. Trata-se de um projeto muito curioso sobre ética, feito de forma simples, sem ser simplista, que dá exatamente a dimensão do que deve ser a ética na política e nas instituições.

            O trabalho coloca a ética como um dos seis sistemas da filosofia, em que podemos pensar nela como comportamento ideal do indivíduo, e a política como comportamento ideal das instituições.

            Há um trecho muito pequeno e muito sucinto, escrito pelo Frei Leonardo Boff, em que ele parte do conceito de ética, da origem grega dessa palavra, ethos, que designa a morada humana. Diz ele:

      O ser humano separa uma parte do mundo para, moldando-a ao seu jeito, construir um abrigo protetor e permanente.

      A ética, como morada humana, não é algo pronto e construído de uma só vez.

      O ser humano está sempre tornando habitável a casa que construiu para si.

      Ética significa, portanto, tudo aquilo que ajuda a tornar melhor o ambiente para que seja um morada saudável: materialmente sustentável, psicologicamente integrada e espiritualmente fecunda.

            Esse é o conceito de Leonardo Boff sobre ética.

            Tenho vários conceitos belíssimos aqui, mas vou ater-me apenas a esse, porque nos remete ao sentido de morada, de que a ética é uma espécie de parte do mundo que nós moldamos, do ponto de vista moral, cultural e ético; de que construímos o nosso habitat; de que a nossa função aqui é fazer com que esse habitat seja o melhor possível para todos os seres, inclusive os seres humanos, mas não com exclusividade para eles, porque também dependem dos demais.

            Há um outro conceito - não sei se do livro Ecologia da Terra, de Leonardo Boff - que diz que tudo aquilo que preserva a vida e que colabora para a sua preservação é o que seria ético.

            É fundamental que encerremos o ano fazendo um breve balanço de como está a nossa morada, a nossa casa, o nosso habitat. E temos um habitat de seis bilhões de pessoas. São seis bilhões de seres humanos que conseguiram, ao longo da história, ao longo da trajetória da raça humana, um grande avanço tecnológico. Quando me refiro a isso, não estou apenas me referindo à ciência ocidental. Considero como avanço tecnológico também os saberes das populações tradicionais que, ao longo de milhares e milhares de anos, têm conhecimentos associados aos recursos naturais e foram capazes de construir uma verdadeira engenharia, tanto do ponto de vista técnico, quanto do ponto de vista dos valores, para o estabelecimento das suas relações sociais, culturais, econômicas e políticas. Mas tivemos, e temos, um grande avanço tecnológico.

            Temos também um grande acúmulo de informações. Eu diria até que temos tantas informações que fica praticamente impossível processá-las todas. Hoje vivemos uma sobrecarga de informações que, se não tivermos uma base de referência para nos guiar, separando o que nos interessa daquilo que não nos importa, poderemos ficar até com a nossa mente poluída.

            Temos o início de uma nova era, que não é mais a era da tecnologia, ou da informação, mas a era do conhecimento; embora para alguns ainda estejamos na pré-história, porque, só no caso brasileiro, ainda temos 15 milhões de jovens que são analfabetos.

            O mundo já vive a era do conhecimento, onde a informação pura e simples, a tecnologia pura e simples, não conta. O que conta é a capacidade de gerar conhecimento a partir dessas duas ferramentas: a tecnologia e a informação. E é isso que domina e governa o mundo.

            Temos um mundo que consegue avançar com muitas riquezas do ponto de vista material, cultural e intelectual, em vários aspectos. Se parássemos por aqui, chegaríamos ao final deste ano de 2001 com um balanço muito positivo, porque essas conquistas são positivas. Entretanto observamos que, dos seis bilhões de habitantes da Terra, dois bilhões são pobres e estão vivendo com menos de um dólar por dia. Verificamos, ainda, que estamos vivendo o tempo todo em constantes guerras que têm massacrado e levado à morte milhares e milhares de pessoas inocentes, envolvidas em conflitos étnicos, políticos e religiosos, de várias formas, o que tem se constituído numa espécie de barbárie dos tempos atuais.

            Temos também, Sr. Presidente, ainda, vários desastres ambientais. Não precisamos ir tão longe para verificarmos que, no Brasil, corremos o risco constante de ver os nossos recursos naturais, as nossas últimas reservas serem completamente degradadas, e a mais importante de todas elas é a Floresta Amazônica, que precisa ser cuidada, que vive em constante ameaça. É só verificarmos o que acontece a cada ano, quando o Inpe anuncia o índice de desmatamento na Amazônia, uma das regiões mais ricas do Planeta, responsável por 20% da água doce, 22% das espécies vivas, com a maior diversidade biológica de todo o mundo, a maior floresta tropical.

            Temos muitos problemas ambientais que também acontecem no mundo e que por isso é motivo de preocupação para este final de ano e deve clamar a todos nós para uma reflexão.

            Ainda temos os problemas das dívidas, que são uma verdadeira chaga nas economias dos países em desenvolvimento - é só verificarmos o que está acontecendo com a nossa irmã Argentina - cujos valores tornam-se impagáveis, trazendo problemas sociais imensuráveis e prejuízos talvez irreparáveis.

            Temos, então, Sr. Presidente, um final de ano 2001, início do novo século, com muitos pontos positivos, mas a nossa casa tem muitos pontos negativos que precisam ser reparados. Nossa morada, nosso canto, nossa espécie de olaria, no conceito de Leonardo Boff, o canto que separamos para ser construído e reconstruído a todo tempo está com sérios problemas e precisa de reparação.

            Como estava falando da Amazônia e da natureza, penso que ela nos ensina muito. Por ser o laboratório mais antigo do Universo, talvez seja nela que possamos arrancar as respostas para os problemas que estamos vivenciando.

            Não estou negando a capacidade criativa, inventiva e racional do ser humano; ao contrário, é ele que tem consciência da natureza e de si mesmo, mas ele pode aprender com ela, porque nela, em bilhões e bilhões de anos, experiências foram realizadas, negadas e afirmadas. Temos a idéia de que a natureza é perfeita. Ela não o é. Simplesmente ela nega e destrói tudo aquilo que não dá certo. Todo experimento que não dá certo a própria natureza se encarrega de dar um fim, permanecendo o que dá certo, mesmo que seja por determinado tempo.

            Uma bióloga americana -- recordo-me apenas do primeiro nome, mas, para não cometer injustiça, vou-me referir a ela apenas como uma bióloga americana -- escreveu um livro chamado Biomimetismo, no qual ela faz descobertas que considero muito importantes e significativas para a era do conhecimento, até porque boa parte do avanço que tivemos, durante muito tempo, sobretudo da Filosofia, veio das Ciências Sociais, da Sociologia, da Antropologia -, enfim tivemos uma grande contribuição. Depois passamos pelo campo da Física, sobretudo da Física Quântica, com Fritjof Capra, e agora temos a grande contribuição dos biólogos, que têm dado uma parcela significativa de contribuição na reflexão da relação do homem consigo mesmo, com a natureza e até mesmo com a sua espiritualidade.

            Janine Benyus, no livro Biomimetismo: inovação inspirada pela natureza, diz que a natureza ensina, porque na natureza só prevalece aquilo que dá certo. A autora diz que existem na natureza 32 bilhões de espécies, e essas têm diferentes formas de se agrupar, de se relacionar entre si: mutualismo, parasitismo, coexistência, comensalismo e competição. Janine Benyus faz uma classificação de todas essas formas de relacionamento e chega à conclusão de que a forma superior almejada por todas as espécies seria o mutualismo, mas que, na natureza, não é possível a todas as espécies chegar a essa forma ideal, porque quem é parasita vai continuar sendo parasita, quem pratica a competição vai continuar praticando a competição, o mesmo valendo para a coexistência, e assim por diante. A autora diz que, entre os vários agrupamentos, a pior forma de relacionamento é exatamente a competição. É possível, no parasitismo, uma espécie sobreviver ao minar as energias da outra. Na Amazônia, temos uma árvore que pratica o parasitismo, o apuí, e se transforma numa árvore enorme. Nos demais relacionamentos, como na coexistência, estabelece-se uma relação de indiferença: eu não me preocupo com você, e você não se preocupa comigo. Suponhamos duas árvores ou dois tipos de insetos. Nesse caso, eles não têm uma interação. Nessa relação, há prejuízo, porque não há troca, mas, mesmo assim, as espécies continuam existindo. A única forma em que é impossível a vida, em que as duas espécies acabam desaparecendo é na competição.

            Entretanto, a lógica das relações humanas têm-nos ensinado que a competição é o motor da história. É por meio da competição que me tornarei um excelente empreendedor, o melhor aluno, o melhor político, o melhor isso ou aquilo. A natureza nos ensina que, em uma relação de parceria, de troca, de ajuda mútua, talvez estivéssemos um pouquinho mais longe do lugar em que estamos. Estou apenas repetindo as reflexões de Janine Benyus.

            Ela diz que, neste momento de economia globalizada, talvez pudéssemos continuar aprendendo com a natureza. Nós estabelecermos a quebra de fronteiras para o capital, mas, para as ações de interesse social, de promoção humana, de realização da cultura, no sentido legítimo da palavra e não no sentido de uma realização invasiva, infelizmente, existem muitas fronteiras, e a maioria das pessoas não é beneficiada pela globalização. Entretanto, o capital é capaz de arrancar a última seiva do último ponto do último galho existente no planeta, numa relação sem fronteiras.

            Janine faz algumas reflexões a respeito de como as espécies conseguem ter uma relação de sucesso com o seu hábitat. Segundo a autora, as espécies que se saem melhor na relação com o hábitat e entre si são as enraizadas, que têm raízes profundas. Façamos uma comparação com as culturas. As culturas que não têm raízes estão fadadas ao fracasso. Quem não tem um forte sentido de realidade, de valores culturais, está fadado ao fracasso. As civilizações que estão dando certo são aquelas que conseguiram um excelente sentido de realidade.

            Eu estive nos Estados Unidos onze dias após aquele lamentável episódio das torres e observei que aquela nação, que vende para as outras partes do mundo a idéia de que falar de Estados nacionais, de culturas regionais, de valores locais é algo piegas, brega, de que tem mesmo é que globalizar, vi que aquela civilização tem um sentido de realidade como não vi em nenhuma outra. Todos estavam com a bandeira ou o button, algo que significasse: “somos americanos, somos solidários, pertencemos uns aos outros, temos um sentido de realidade”. Talvez por isso sejam tão fortes.

            Então, segundo Janine Benyus, as espécies que se dão melhor no seu hábitat são aquelas que são profundamente enraizadas, que têm um sentido de realidade. E acrescenta: “são aquelas que compram localmente”, ou seja, elas retiram de onde estão tudo que precisam para sobreviver; são enraizadas e retiram de onde estão, do lugar onde estão tudo que precisam para sobreviver; “por isso conhecem o seu lugar”. Quando estamos enraizados, quando temos necessidade, para sobreviver, de utilizar o que existe no entorno, somos obrigados a conhecer o nosso lugar.

            Segundo um filme que assisti há algum tempo, os esquimós conhecem aproximadamente 260 diferentes tipos de gelo. Para mim, existe somente um tipo; eu não conseguiria distinguir 260 qualidades. Há pessoas que vão para a Amazônia e só conseguem ver mata. Eu consigo ver uma grande quantidade de árvores, de plantas diferentes, que as pessoas acham que são todas iguais.

            Então, quando estamos enraizados e temos que tirar o nosso sustento do lugar onde vivemos, somos obrigados a conhecer o nosso lugar. “As espécies que trabalham onde vivem praticam um manufatura benigna”, diz Janine Benyus. Ora, se eu estou enraizada, se eu tiro o meu sustento da onde estou vivendo, se eu trabalho onde eu estou vivendo, a minha manufatura tem que ser benigna. Eu não posso criar um monte de quinquilharias para destruir o meu hábitat, para destruir a minha casa, para destruir o meu etos, o lugar que separei para ser a minha olaria, que me constrói e me reconstrói o tempo todo.

            Nesse contexto, Sr. Presidente, eu queria encerrar o meu pronunciamento dizendo que, para aprendermos com a natureza a nos relacionar - como seres que pensam a natureza, que mudam o mundo e depois mudam o mundo mudado, como disse um filósofo -, talvez tivéssemos que fazer apenas um pouquinho de esforço, porque de todos os seres da natureza somos os únicos que podemos decidir o que fazer. O cachorro é cachorro e não deixará de sê-lo, a árvore idem e assim por diante. Mas, nós pensamos, podemos interagir, podemos decidir se queremos praticar a competição ou o mutualismo, se queremos praticar o parasitismo ou se queremos estabelecer uma relação de troca. Nós podemos decidir, podemos arbitrar.

            Nada como, em um final de ano, após o Natal, refletirmos sobre isso. Segundo os conceitos de ética, tudo que fazemos é auto ou hetero julgado. Ou nós nos julgamos a nós mesmos, ou alguém nos julgará. O fundamental é que a combinação desses dois julgamentos possa nos levar a um novo caminho. Quem sabe nem precisemos mais de um novo caminho, talvez o de que precisemos seja uma nova forma de caminhar, como diz o poeta.

            Então, que este Natal e este final de ano nos ensinem uma nova maneira de caminhar, e, para isso, vamos precisar muito das quatro virtudes. De certa forma, são elas que têm embalado a ação do homem por esta Terra. As quatro virtudes para Platão são: a sabedoria, que é o conhecimento que vem da alma; a coragem, que é aquela espécie de força que nos impulsiona à realização; a moderação e a justiça. É pela coragem que decidimos a nova maneira de caminhar. Não adianta esperarmos ser virtuosos, nos tornarmos sábios, portadores de justiça, para podermos começar uma nova forma de caminhar. O importante é que tenhamos a coragem de fazer como disse o apóstolo Paulo no capítulo 7, versículos 19 a 24. O apóstolo Paulo disse-nos que o homem, muitas vezes, é impulsionado por uma força que briga com sua própria vontade:

      “O bem que quero fazer não faço, mas o mal, que racionalmente não quero fazer, esse faço. Então, a coragem é aquilo que estabelece que não vou fazer o mal que racionalmente eu sei que não devo fazer, mesmo que isso, por alguns momentos, traga-me algum conforto, alguma espécie de bajulação, traga-me o alimento para a minha vaidade. Tenho que estar disposto a ter coragem.”

            E aí diz o apóstolo Paulo: quando você consegue a sabedoria, a coragem, precisa da moderação para que não aja com o ímpeto de um búfalo que arrebenta toda a canarana que vê pela frente. Aí, então, você pode chegar à justiça, pois a justiça é a harmonia entre o corpo e a alma.

            Platão, acredito, era dicotômico. Pensava em alma e corpo. Advogo a teoria tricotômica: corpo, alma e espírito. Quando conseguirmos a harmonia entre esses três, alcançaremos a justiça, mas precisamos de um gesto de coragem para realizarmos o bem que desejamos e para rejeitarmos e não sermos dominados pelo mal que não queremos fazer. Talvez assim possamos iniciar o ano de 2002 com o propósito ético de fazer com que a nossa técnica e as nossas informações possam gerar o conhecimento que nos levará a uma nova maneira de caminhar.

            Como disse o Frei Leonardo Boff: “Que nossa casa, a nossa morada, possa ser habitável, porque fomos capazes de construí-la de forma a ter lugar para todos os seres humanos.”

            Muito obrigada.


            Modelo15/4/2411:23



Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/12/2001 - Página 32236