Pronunciamento de José Serra em 05/03/2002
Discurso durante a 12ª Sessão Especial, no Senado Federal
Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.
- Autor
- José Serra (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
- Nome completo: José Serra
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.
- Publicação
- Publicação no DSF de 06/03/2002 - Página 1424
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
-
- HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, MARIO COVAS, GOVERNADOR, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), EX SENADOR, EX-DEPUTADO, ELOGIO, VIDA PUBLICA.
SENADO FEDERAL SF -
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O SR. JOSÉ SERRA (Bloco/PSDB - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente; Sr. Presidente da Câmara dos Deputados; Sr. Governador de São Paulo; colegas Senadores.
Para mim tem um significado muito especial voltar a esta tribuna, depois de quatro anos, precisamente para fazer um tributo à memória de Mário Covas.
Esta homenagem à memória de Covas pode ser considerada como um tributo da nossa Federação, da Nação brasileira a alguém que dedicou sua vida à causa pública.
Lembro, a propósito das palavras do Presidente John Kennedy, em outubro de 1963, quando, numa universidade, fez um preito póstumo ao grande poeta norte-americano Robert Frost, que havia falecido meses antes. Disse Kennedy:
Uma nação revela-se não apenas pelos homens que produz, mas também pelos homens que homenageia, pelos homens que relembra.
Por isso, a homenagem que agora prestamos à Mário Covas é um gesto que não apenas enaltece a figura do ex-Deputado, do ex-Senador, do ex-Governador, do líder parlamentar, mas também engrandece o Senado e a Nação brasileira.
Sabemos que a grandeza de um político se revela, sobretudo, na obra legislativa e administrativa que realiza e no legado doutrinário e ético que transmite.
O destino não permitiu que Mário Covas alcançasse a Presidência da República, como em algum momento foi seu anseio merecido, dele e daqueles que o cercavam. Mas a Nação jamais esquecerá que ele fez parte de um grupo de líderes extraordinários que ajudaram a reconquistar o regime democrático, moralizar as práticas administrativas de nosso País, estabilizar a economia e iniciar uma fase renovada de desenvolvimento.
Este, sem dúvida, é o fundamento desta sessão especial, em que o nosso Senado homenageia, com reconhecimento e saudade, a memória desse engenheiro de alma política, que foi um de seus membros mais ilustres.
Conheci Mário Covas, eu o vi pela primeira vez em 1963. Eu era Presidente da União Nacional dos Estudantes e havíamos organizado, em Santos, junto com os sindicatos portuários, um Encontro Operário-Estudantil-Camponês. Convidamos vários parlamentares, entre eles o jovem Deputado Federal, recém-eleito, ainda esbelto, boa pinta, mas já com voz grave e fama de bom orador, lembro-me até hoje disso. Até então, eu o conhecia apenas por intermédio de modestos cartazes em preto e branco, daqueles com muito pouca nitidez, de suas campanhas à prefeitura de Santos, no começo, em 1961, e à Câmara Federal, em 1962.
Ficou-me a imagem sorridente e ágil do Mário, saudando os participantes daquela noite de agitação, de muita agitação e de utopia, como tantas outras nos meses que antecederam o golpe militar de 1º de abril de 1964.
Pouco depois, parti para o exílio e voltei 13 anos depois. Quando acabava de regressar ao Brasil, por um período curto, em 1977, compareci a uma reunião convocada para discutir a criação de uma nova força política de centro- esquerda para suceder ao MDB, na fase posterior à redemocratização. Nisso estávamos, lembro que compareci a essa reunião com uma certa apreensão, pois ainda estava sendo acompanhado, discretamente, pelos serviços de inteligência do regime, que estavam curiosos para saber o que iria fazer eu depois de tantos anos no exterior, depois de condenações, voltando ao País. Seria retomar a atividade política subversiva que, segundo eles, me caracterizava?
O propósito da criação do novo partido veio a malograr, mas acabaria contribuindo para aproximar, política e pessoalmente, vários daqueles que mergulharam na tentativa.
O terceiro encontro com Covas ocorreu no ano seguinte, em 1978, numa comemoração de aniversário do Grêmio Politécnico, da Escola Politécnica de Engenharia da Universidade de São Paulo, onde estudávamos. Assistíamos a essa comemoração como ex-alunos da Poli. Dei-lhe um toque: “Mário, por que você não vem dar uma mão à campanha do Fernando Henrique?” Isso ocorreu em 1978. Referia-me à campanha para o Senado que o Fernando Henrique disputava numa sublegenda do MDB. O Mário topou, visitou o comitê acompanhado de amigos próximos e, com eles, se engajou na campanha que garantiria a Fernando Henrique a suplência de Franco Montoro e o exercício do mandato, a partir de 1983.
Em seguida, o próprio Montoro e Fernando Henrique articularam a condução de Covas à Presidência do MDB paulista, que, depois, virou PMDB, e encontrou em Covas um formidável organizador no Estado de São Paulo inteiro. Quantas viagens fizemos pelo interior na criação ou recriação dos diretórios!
Conquistada a redemocratização, o Mário Covas viveu um dos capítulos mais marcantes de sua trajetória política: Obteve um novo mandato de Deputado Federal em São Paulo, em 1982, sendo um dos mais votados; a Prefeitura da Capital paulista, indicado por Montoro, entre 1983 e 1985; a eleição para o Senado, em 1986, com uma votação consagradora; a liderança na Constituinte; a fundação do PSDB, em 1988; as campanhas de 1989, à Presidência, ao Governo do Estado, em 1990, e, finalmente, o mandato como Governador de São Paulo, de 1994 até o seu falecimento.
Compartilhei de perto todos esses desafios, desenvolvendo com o Mário uma relação pessoalmente cordial, politicamente próxima e, às vezes, controvertida, como corresponde a personalidades independentes e algo teimosas - uma característica que compartilhava com ele. Nem sempre cultivamos as concordâncias, embora elas fossem muitíssimo maiores do que as diferenças, mas sempre mantivemos uma convivência cercada de respeito e de solidariedade nas horas difíceis.
Ressalto que, se devo ao Fernando Henrique a rapidez de minha reinserção na atividade política no Brasil, depois de longo exílio, e a Montoro minha primeira e fundamental experiência na ação governamental, devo a Covas o estímulo inicial à minha participação no Legislativo, quando, como líder da maioria, indicou-me para relatar os Capítulos de Tributação, Orçamento e Finanças da Constituinte. Indicou-me, fizemos um trabalho bastante amplo e profundo, e, durante meses - mais de um ano -, ele teve de me suportar quotidianamente no embate a respeito de todos os dispositivos e detalhes desses capítulos da nossa Constituição.
As razões que transformaram Mário Covas numa das referências principais da vida pública brasileira são bastante conhecidas. Ele nunca hesitou em ser um democrata radical, mesmo quando esse empenho lhe acarretaria, como acarretou, um custo político e pessoal elevado, como a prisão em dezembro de 1968 e a cassação do mandato de Deputado Federal, com a suspensão dos direitos políticos em janeiro de 1969. Sempre lutou para preservar a coerência de suas idéias e a transparência de suas escolhas.
É preciso enfatizar também a austeridade impecável de Mário Covas no tratamento do dinheiro público, que ele sabia aliar esta austeridade a critérios rigorosos na definição das prioridades sociais dos gastos.
Na gestão de governo, embora centralizador e duro na cobrança de tarefas, sempre exibiu uma grande solidariedade com seus auxiliares. Mário assumia sempre as responsabilidades das medidas que fossem pouco populares. Ele assumia. Jamais transferia qualquer miligrama de desgaste para os seus subordinados: uma virtude rara na vida pública para quem ocupa altos cargos do Poder Executivo.
Com os adversários, era implacável no embate, mas leal na convivência e na aceitação de idéias contrárias, a ponto de ter sido elogiado por Luiz Inácio Lula da Silva como “adversário companheiro”.
Cabe ainda lembrar as atitudes de solidariedade política a seus companheiros de Partido em momentos difíceis. Lembro-me bem do ânimo que Mário Covas trouxe à campanha presidencial de Fernando Henrique em São Paulo, em 1994, quando, antes da deflagração do Plano Real - e de acordo com o termo predileto da imprensa - a candidatura ainda “não decolava”. Lembro-me do entusiasmo, do esforço de Mário Covas para acelerar a candidatura, para fortalecê-la naquele instante bastante difícil da campanha.
Íntegro e austero, realizou como Governador um vigoroso ajuste fiscal, saneando as finanças e recuperando a credibilidade do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo, sensível às conseqüências sociais da política de estabilização, empenhou-se na implantação de programas inovadores de apoio aos trabalhadores desempregados e à população carente, como a criação de frentes de trabalho e a reciclagem profissional, o estímulo ao auto-emprego, a ampliação do microcrédito ou a transferência direta de renda aos mais pobres.
Reservou-nos, no final de seus dias, uma demonstração de inusitada abertura e coragem no enfrentamento da doença que o assaltou inesperadamente - uma inovação que ele trouxe à vida pública brasileira. Com franqueza e perseverança, lutou contra a doença até a exaustão de suas energias. Como comentou dona Lila Covas, um ano atrás, outros teriam desistido mais cedo.
Mário Covas imprimiu sua marca indelével na história do Brasil, do Estado de São Paulo e do PSDB, meu Partido. De todos os ensinamentos que nos legou, talvez um dos mais relevantes - que não é só um ensinamento, mas uma convocação - possa ser resumido na sua afirmação, tantas vezes reiterada, de que na vida pública é possível conciliar política e ética, política e honra, política e mudança. Não tenho dúvida de que esta é a contribuição mais permanente que ele deixou a todos os que participam na vida pública do nosso País.
Ele era sempre capaz de levar essas concepções à prática em razão de sua paixão pela verdade. Esta era a maior paixão do Mário, naturalmente depois da dona Lila Covas.
A verdade - e aqui vou fazer um pouco de psicografia, como se ele estivesse falando a respeito da verdade -, lembra, e muito, os contornos e os atributos da natureza. A verdade pode ser altiva como a montanha, plácida como um lago e serena como a imensidão do céu. Mas também pode ser incômoda como a tempestade e violenta como uma erupção vulcânica.
Em qualquer dessas manifestações, a verdade é inalterável. Diante dela, as melhores atitudes são, para os sensatos, o respeito; para os cautelosos, a contemplação.
Por assemelhar-se a verdade às forças da natureza, quem a adota como norma de vida passa a incorporar essa força às suas virtudes.
Quem está com a verdade, com a sua verdade, não falseia e não intriga. Quem está com a verdade não tolera o seu oposto, a mentira.
Quem está com a verdade tem a força dos justos e, por isso, não transige nem mesmo com a meia verdade. A verdade é intransigente, e intransigentes são os que a trazem dentro de si - benignamente intransigentes.
Muitas vezes se disse que Mário Covas era uma força da natureza. E era mesmo. Quem o conheceu e com ele conviveu sabe disso. Essa força se alimentava exatamente do compromisso, do culto à verdade.
Um dos atributos mais conhecidos do Covas era, precisamente, a coerência. Mas o que é a coerência, se não a reiteração da verdade, da verdade de cada um, sem desvios de conveniências? O Mário trouxe para a política essa virtude privativa dos justos e destemidos.
Inspirados no exemplo de Mário Covas, assumimos o dever de levar adiante a construção de um Brasil democrático, soberano, desenvolvido e justo, a que ele dedicou 40 anos de militância na vida pública. Não há maneira mais adequada de reverenciar sua memória do que continuar realizando esse projeto de País com a mesma retidão, com a mesma tenacidade e com a mesma intrepidez que distinguiam nosso querido Mário Covas.
Muito obrigado, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores. (Palmas.)
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