Discurso durante a 15ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Proposta de implantação do Orçamento Social para o enfrentamento das graves mazelas sociais do País.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. ORÇAMENTO.:
  • Proposta de implantação do Orçamento Social para o enfrentamento das graves mazelas sociais do País.
Publicação
Publicação no DSF de 08/03/2002 - Página 1819
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. ORÇAMENTO.
Indexação
  • COMENTARIO, ATUAÇÃO, COMISSÃO MISTA, COMBATE, POBREZA, ANALISE, PROPOSTA, ORÇAMENTO, NATUREZA SOCIAL, DEFESA, RETOMADA, DISCUSSÃO.
  • ANALISE, DADOS, POBREZA, MUNDO, BRASIL, DEFESA, PROTEÇÃO, DOTAÇÃO ORÇAMENTARIA, AREA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, IMPOSSIBILIDADE, REMANEJAMENTO, AUTORIZAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, PREVENÇÃO, CORTE, EXECUÇÃO ORÇAMENTARIA.
  • JUSTIFICAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, AUTORIA, ORADOR, CRIAÇÃO, ORÇAMENTO, NATUREZA SOCIAL, PRESERVAÇÃO, RECURSOS ORÇAMENTARIOS, SANEAMENTO, SAUDE, EDUCAÇÃO, REFORMA AGRARIA, DEFINIÇÃO, CONSELHO, AUTORIDADE, GOVERNO, SOCIEDADE CIVIL, FISCALIZAÇÃO, OBRIGATORIEDADE, EXECUÇÃO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nos últimos meses, tenho, de alguma forma, acompanhado a preocupação que um conjunto de entidades tem mostrado com a problemática social, e sobretudo a discussão que tem feito, que resgata um pouco a discussão que tivemos no Congresso Nacional quando da criação da Comissão de Combate à Pobreza, ocasião em que apresentamos um conjunto de ações e medidas para debelar a pobreza.

            Naquela oportunidade, uma comissão mista, formada a partir de um requerimento de minha autoria, composta por 19 Srs. Senadores e 19 Srs. Deputados, trabalhou durante quase um ano, buscando alternativas de combate à pobreza. Lembro-me que, com esse trabalho, surgiu um conjunto de propostas, sendo que uma delas já foi aprovada pelo Congresso, o Fundo de Combate à Pobreza, proposto pelo Senador Antonio Carlos Magalhães.

            Mas o objetivo da Comissão de Combate à Pobreza não era, pura e simplesmente, promover uma série de audiências públicas, estudos, debates, seminários e visitas às regiões pobres do País para fundamentar um projeto que já estava em tramitação na Casa. O objetivo era ampliar essa discussão e apresentar uma série de propostas oriundas do Congresso Nacional, visando debelar a pobreza.

            Lembro-me que o Programa de Renda Mínima do Senador Eduardo Suplicy foi colocado como prioridade no relatório final da Comissão de Combate à Pobreza, assim como o Programa Bolsa-Escola, cuja experiência mais alentadora aconteceu no Distrito Federal. A partir das discussões na comissão, surgiu uma proposta - que foi, talvez, verbalizada por mim, individualmente, mas produzida, no seu conteúdo, coletivamente, por um conjunto de Srs. Parlamentares e por um não Parlamentar, que era o Governador Cristóvam Buarque -, que foi a idéia do Orçamento Social.

            Naquela oportunidade, o relatório apresentou o Orçamento Social também como um projeto prioritário, que deveria ser apresentado pela comissão como uma proposta relevante para tramitação no Congresso Nacional. Infelizmente, nem o Projeto de Renda Mínima, nem a Bolsa-Escola, nem o Orçamento Social, nem as demais propostas que foram apresentadas tiveram a mesma sorte do Fundo de Combate à Pobreza, ainda que ele tenha sido aprovado com poucos recursos. O estudo que realizamos dava conta de que, para o combate efetivo à pobreza em dez anos, precisaríamos de, no mínimo, R$35 a R$40 bilhões por ano, e o Fundo aprovado era de apenas R$4 bilhões.

            Diante de tudo isso, Sr. Presidente, e diante da emergência social que o mundo atravessa - e, nesse contexto, também o nosso País - , é que retomo aqui a discussão do Orçamento Social. Mas, antes de entrar no mérito propriamente dito da idéia do Orçamento Social, apresentarei alguns dados referentes à realidade atual de emergência social - emergência no sentido de gravidade, de necessidade de respostas, da necessidade de socorro. Quisera eu estivéssemos vivendo uma emergência positiva, a do surgimento de novas propostas, de mecanismos efetivos e eficazes de combate à pobreza em todo o mundo. Mas, na realidade, estamos vivendo a emergência mesmo do pedido de socorro, porque, dos 6 bilhões de habitantes da Terra, 2,8 bilhões - ou seja, quase a metade da população do Planeta - estão vivendo com menos de US$2 por dia; 1,2 bilhão, ou seja, um quinto dessa população, vive com menos de US$1 dólar por dia, sendo que 44% vivem no sul da Ásia. Nos países ricos, menos de uma criança em cada 100 não completa cinco anos de vida, enquanto nos países mais pobres um quinto das crianças morre antes disso.

            Outros dados revelam que, enquanto nos países ricos menos de 5% das crianças com idade abaixo de 5 anos são desnutridas, nos países pobres o percentual é de 50%. São dados significativos, o que confirma o que acabo de dizer: estamos vivendo uma situação de emergência em termos das necessidades sociais do mundo, com uma exclusão jamais vista na história da humanidade.

            No Brasil não é diferente. Contribuímos para esses 2 bilhões de pessoas pobres. Segundo os dados do economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, que pesquisou o mapa da fome, divulgado em 2001, existem hoje no País 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da indigência, 29% da população, recebendo uma renda mensal inferior a R$80 per capita. O estudo da Fundação Getúlio Vargas diz ainda que para erradicar esse quadro em nosso País seria necessária a aplicação de R$1,69 bilhão por mês, ou seja, 2% do Produto Interno Bruto, o que significaria uma contribuição mensal de R$10,40 por brasileiro, tendo como base a renda per capita do País, que é de R$262,00.

            Esses são os dados apresentados pela Fundação Getúlio Vargas, que nos dá uma idéia da situação de pobreza e exclusão social em que estamos vivendo.

            Continua o mapa da fome da Fundação Getúlio Vargas. Os Estados nordestinos foram os que apresentaram maior índice de pobreza do País. Todos, à exceção do Rio Grande do Norte, têm mais de 50% de sua população vivendo abaixo da linha de pobreza. O Maranhão é o Estado brasileiro que apresenta a pior situação: mais de 63% de sua população está abaixo dessa linha. De acordo com a pesquisa, seria necessário que fossem investidos R$143 milhões por mês no Maranhão para que fosse revertido esse quadro.

            O Piauí é o segundo Estado com o maior índice de pobreza do País, 61,7%, seguido do Ceará, com 55,7%; Alagoas, com 55,4%; Bahia, com 54,8%; Tocantins, com 21,27%; Pernambuco, com 50,9%; Paraíba, com 50,2%; Sergipe, com 50,14%, e Rio Grande do Norte, com 46,93%.

            Esses dados apresentados pela Fundação Getúlio Vargas nos dão conta da situação de pobreza do nosso País, sobretudo no Nordeste, onde os índices sã mais alarmantes.

            Diante dessa situação, de todo o trabalho da Comissão de Combate à Pobreza e da sua persistência, diante até mesmo de uma certa indiferença com relação à apresentação de propostas que sejam eficazes no sentido de se reverter esse quadro, quero retomar a idéia do Orçamento Social.

            O que é o Orçamento Social? Trata-se do conjunto composto pelas dotações orçamentárias referentes a ações nas áreas de educação, saúde, assistência social, habitação popular, saneamento e reforma agrária, entre outras. Entende-se por gasto social o montante de despesas não-financeiras referentes a ações de previdência, saúde, educação, cultura, assistência, saneamento, meio ambiente, habitação, urbanismo e organização agrária.

            Portanto, Orçamento Social seria uma espécie de carimbo de verbas destinadas às ações sociais, visando a uma política de combate à pobreza, em que os recursos somente poderiam ser remanejados ou contingenciados mediante pedido de autorização por parte do Presidente da República ao Congresso Nacional. Haveria, então, o Orçamento Social com a obrigatoriedade de execução, para evitar que ele continuasse como peça de ficção - como chamam alguns -, em que a cada ano aprovamos um montante de recursos, os quais são contingenciados, sobretudo na área social, visando ao cumprimento de metas estabelecidas pelo FMI, esperando que o ajuste fiscal dê as respostas que lhe são exigidas, o que faz com que se chegue a uma situação como a que estamos vivendo, cujo levantamento, em boa parte, foi feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc, que acompanha a execução orçamentária, sobretudo na área social.

            Como não temos a obrigatoriedade da execução orçamentária, os cortes são realizados. A área social, em muitos programas que são considerados estratégicos, como é o caso dos ditos 50 programas estratégicos, para os quais, inclusive, foram destinados gerentes para o seu acompanhamento, recebeu cortes vergonhosos.

            Basta fazermos uma breve avaliação: em 1999, logo após o fechamento do acordo de US$41 bilhões com o FMI, foi apresentada uma nova proposta orçamentária, que gerou um corte no total das despesas de U$8,7 bilhões, atingindo duramente as áreas social e de infra-estrutura. Em agosto de 2001, houve novo acordo com o FMI. A execução orçamentária dos 50 programas prioritários da Agenda Positiva do Governo demonstra que, de janeiro a junho de 2001, 28 deles gastaram menos de 10% da verba prevista no Orçamento. Nenhum dos 50 programas atingiu a execução de 50%. Em janeiro de 2002, analisando a execução orçamentária de 2001, o Inesc identificou que, no segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, um ano de Orçamento foi utilizado exclusivamente no pagamento de juros, encargos e amortizações das dívidas interna e externa, ou seja, mais uma vez o ajuste fiscal acordado com o FMI norteou a execução orçamentária, prejudicando a execução de programas sociais que geraram impacto na redução da pobreza.

            Com essa breve leitura dos dados levantados pelo Inesc, quero justificar a proposta do Orçamento Social. A cada ano, há a destinação de recursos. O saneamento, por exemplo, significa vida para as pessoas, sobretudo para as crianças, pois muitas delas morrem por infecções que não ocorreriam se houvesse um saneamento básico adequado nas suas cidades. De um total previsto de R$71,94 milhões, houve execução de 0% em saneamento. A saúde do trabalhador, que recebeu dotação de R$7,8 milhões, apresentou execução orçamentária de apenas 12%, e o controle de hanseníase e de outras doenças ligadas à dermatose, com recursos orçados em R$12,6 milhões, teve execução de apenas 15,8%.

            Assim, há uma série de programas para os quais a execução orçamentária foi insignificante, se a compararmos às nossas necessidades sociais e às desigualdades que estamos tentando reduzir, em um País que tem uma das maiores concentrações de renda do mundo.

            Assim, Sr. Presidente, é com esse propósito que estou aqui fazendo a apresentação de uma emenda à Constituição Federal, criando a figura do Orçamento Social, para que os recursos destinados à área social sejam de execução obrigatória, para que os recursos destinados à saúde, à educação, à reforma agrária e a políticas voltadas para o combate à pobreza possam ser efetivamente executados e ainda para que, a partir de lei complementar, de lei infraconstitucional, seja possível criar mecanismos de fiscalização e controle.

            A partir daí, devemos pensar na retomada de um Conselho que possa fazer esse acompanhamento. Esse Conselho não precisa ser “chapa branca”, como é da práxis política do Governo. Sempre que o Governo pensa em Conselho, pensa logo em um “sangue puro”, ou seja, “chapa branca”, como é o caso do recente Conselho da Biodiversidade e de outros. Que esse Conselho, que seria aprovado para a fiscalização, para o controle, para o acompanhamento e para a discussão de políticas sociais, tenha pelo menos uma composição paritária, em que metade seja representada pelo Governo, e a outra metade, pela sociedade civil organizada.

            Portanto, com um instrumento como esse, espero que possamos contribuir para erradicar o que se tem constituído uma das maiores mazelas da humanidade. É lamentável que haja um crescimento tão grande do ponto de vista do conhecimento, da tecnologia, do acúmulo de informação, quando se é capaz de realizar a clonagem, o melhoramento e a alteração genética, de estabelecer a comunicação em tempo real e o encurtamento da distância a partir de meios altamente sofisticados de transporte, e não sejamos capazes de resolver um dos problemas fundamentais da raça humana, que é a fome, a necessidade de uma vida digna.

            Quando me refiro à pobreza, não me estou referindo apenas à pobreza como sendo a daqueles que necessitam de uma ração básica. Refiro-me à pobreza dos que precisam de respostas, de verem saciadas as suas necessidades básicas, sobretudo aspectos como habitação digna, saneamento básico, transporte, lazer, segurança e meio de vida.

            Considero que assim se pode sair da condição de linha de pobreza ou de uma situação de extrema pobreza. Ter apenas a oportunidade de alimentação para continuar sobrevivendo não é uma política séria e efetiva de combate à pobreza e às desigualdades sociais.

            Quero recordar uma frase muito dura que ouvi da boca de Frei Beto, mas que penso que ilustra o que estou dizendo. Quando lhe foi perguntado como estavam sendo solucionados os problemas sociais e como se dava a luta em defesa dos direitos humanos no Brasil, ele respondeu que aqui, infelizmente, ainda estamos lutando pelos nossos direitos animais.

            Quando não temos supridas as nossas necessidades vitais de alimentação e abrigo - já que até os animais têm abrigo onde podem reclinar a cabeça, como disse o próprio Jesus -, quando não temos nossos direitos fundamentais atendidos, ainda não podemos falar que estamos ampliando a luta na defesa dos direitos humanos, pois ainda estamos lutando pelos nossos direitos animais, aqueles que garantem a vida e são os mais elementares.

            É lamentável que tenhamos evoluído tanto do ponto de vista da técnica, mas que ainda continuemos na pré-história da ética. No intuito de contribuir para darmos alguns passos rumo ao crescimento da ética associada à técnica, o que poderá dar respostas ao problema da fome, do desemprego, da falta de habitação, de água potável, de saneamento, de segurança e de transporte, estamos apresentando a proposta do Orçamento Social.

            Espero que o Congresso Nacional tenha a coragem de se debruçar sobre essa proposta, porque todos os Srs. Parlamentares reclamam que, a cada ano, aprovamos uma peça de ficção. Se fazemos a crítica, temos que aprovar essa emenda à Constituição brasileira, de forma que, pelo menos na área social, não tenhamos mais uma peça de ficção. O Orçamento deve ser de execução obrigatória, sendo possível que sejam feitas modificações apenas se o Presidente da República as pedir ao Congresso Nacional, que deverá autorizá-las, até para que se crie o constrangimento de mostrar o montante de recursos que será alocado para a área social e em quais circunstâncias eles poderão ser utilizados para outras atividades que não às relacionadas ao combate à pobreza, algo que nos envergonha a todos.

            Muito obrigada.

 

            


            Modelo18/16/246:54



Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/03/2002 - Página 1819