Discurso durante a 22ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre o tema da campanha da Fraternidade deste ano promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, intitulado "Fraternidade e Povos Indígenas - Por uma Terra sem Males".

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IGREJA CATOLICA. POLITICA INDIGENISTA.:
  • Reflexão sobre o tema da campanha da Fraternidade deste ano promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, intitulado "Fraternidade e Povos Indígenas - Por uma Terra sem Males".
Publicação
Publicação no DSF de 19/03/2002 - Página 2411
Assunto
Outros > IGREJA CATOLICA. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • ELOGIO, INICIATIVA, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), CAMPANHA DA FRATERNIDADE, DEFESA, INDIO, NECESSIDADE, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS.
  • LEITURA, TEXTO, AUTORIA, NAILTON MUNIZ, INDIO, NECESSIDADE, RESPEITO, CIVILIZAÇÃO, GRUPO INDIGENA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Sras Senadoras e Srs. Senadores, em 1961, três padres responsáveis pela Cáritas Brasileira, que fora fundada em 1957, idealizaram campanha para arrecadar fundos para as atividades assistenciais e promocionais da instituição e torná-la, assim, autônoma financeiramente. A atividade foi chamada Campanha da Fraternidade e realizada, pela primeira vez, na quaresma de 1962, em Natal, Rio Grande do Norte, com adesão de outras três Dioceses e apoio financeiro dos bispos norte-americanos. No ano seguinte, 16 Dioceses do Nordeste realizaram a Campanha. Não teve êxito financeiro, mas foi o embrião de um projeto anual dos Organismos Nacionais da CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e das Igrejas Particulares no Brasil. Esse projeto foi lançado, em todo o País, no dia 26 de dezembro de 1963, sob o impulso renovador do espírito do Concílio Vaticano II, em andamento na época, e realizado pela primeira vez na quaresma de 1964. Assim nasceu a Campanha da Fraternidade, há quase quarenta anos.

            Nessas quatro décadas, a Campanha tornou-se um referencial para os que desejam repensar o Brasil, buscando um desenvolvimento da sociedade fundado na valorização da pessoa humana em todos os seus planos, espirituais ou temporais. Este ano, a CNBB escolheu como tema Fraternidade e Povos Indígenas - Por uma Terra sem Males.

            Sr. Presidente, mais do que nos propor uma reflexão e uma tomada de posição sobre a questão dos autóctones brasileiros, a Campanha nos apela a refletir sobre nossa história de civilização e nossa visão de sociedade multirracial e pluricultural. Quer perguntar: como lemos nosso passado? como queremos escrever nosso futuro?

            Antes de aprofundar essas questões desejo relembrar alguns aspectos relativos aos povos indígenas do Brasil, que são fundamentais para a compreensão da extensão e da gravidade das questões postas.

            Os povos indígenas do Brasil, mais de 245 etnias diferentes, falam pelo menos 185 línguas, somam uma população de aproximadamente 350 mil pessoas vivendo em comunidades e 192 mil nos grandes centros urbanos. As estatísticas mais recentes indicam crescimento da população indígena. Dois fatores podem ser apontados para explicar esse aumento: o primeiro, o fato de que, havendo hoje uma maior consciência do valor de sua origem, os indígenas passaram a se identificar como tal nos censos populacionais; a segunda é que começa a haver uma maior proteção das comunidades silvícolas, o que possibilita o crescimento do número de seus membros.

            Se excetuarmos o Rio Grande do Sul e uns poucos outros bolsões dispersos pelo País, a grande maioria dos indígenas brasileiros atuais estão localizados na região Centro-Norte, principalmente no interior da Amazônia legal. Não é por coincidência que essa é a região mais tardiamente ocupada pelos homens de origem não ameríndia. É, também, a região onde se dá o processo de ocupação mais acelerado da história brasileira recente, com todas as implicações de ordem social, econômica e ambiental. Está-se quebrando o equilíbrio de um ecossistema que existiu praticamente intocado por milhares de anos. Tal processo, se tem implicações positivas para o desenvolvimento nacional, tem óbvias conseqüências desagradáveis para as comunidades que sempre viveram nesse espaço.

            Eis aí, Sras e Srs. Senadores, o embate principal que ocorre no interior do Brasil e a raiz dos tormentos por que passam as comunidades indígenas, afetadas pela chegada do homem moderno ao seu território. E quando falo de chegada, emprego no sentido histórico do termo, ou seja, uma chegada que remonta ao século XVI, com a vinda dos europeus para o Brasil e com a interiorização paulatina e crescentemente mais acelerada que foi ocorrendo, principalmente a partir da segunda metade no século XX. O índio teve seu universo essencial desestabilizado pela presença do que nós chamamos de civilização.

            Sr. Presidente, o líder indígena Xicão Xukuru, assassinado em 1998 na luta pela terra, explica a profundidade do problema criado pela chegada do branco em suas terras: “a gente tem a terra como nossa mãe. Então, se ela é nossa mãe, é ela quem nos dá todo fruto de sobrevivência, ela deve ser zelada e preservada a partir das pedras, das águas e das matas.”

            Nailton Muniz, índio Pataxó Hã-Hã-Hãe, explica como se concretiza esse modo de viver para seu povo:

Dizem que nós não somos civilizados. Os índios são civilizados, mas não com civilização dos brancos. Temos o jeito de ser de cada povo. Hoje nós olhamos, quando chegamos numa cidade, muita gente que se diz civilizada mas que maltrata seu semelhante, que deixa suas crianças pedindo esmola, passando dificuldades.

Você entra nos órgãos públicos, vê tanto luxo, depois, lá fora, vê gente passando fome, gente igual, só que pobre. Então, o medo que nós temos de perder nossas terras é de ver realmente o nosso povo na rua, dormindo de baixo de viaduto, caído em marquises, mendigando. Porque essa não é a nossa maneira de ser civilizado. Nós somos de um pensamento diferenciado, não ensinamos nossos filhos a competir, ensinamos a repartir e a lutar. Nós não deixamos nosso povo sofrer. Como vocês podem ver suas crianças na rua? Como podem ver famílias sem ter o que comer, revirando lixo? Nós não deixamos. Nós temos alegria em repartir. Se uma família tem para comer e chega outros que não têm ela faz alimento suficiente para todos. Nós não temos coragem de deixar um parente sair com fome, se temos comida guardada. A gente come junto, depois se apega com Deus e vai, com certeza, adquirir. Por isso também, se temos a nossa terra demarcada e na nossa mão, temos condições de adquirir nosso alimento e de repartir entre nós. Nós não temos cadeia nas nossas aldeias, temos conselhos para dar ao nosso povo e eles acatam. Nós procuramos educar nossos filhos para acatar os conselhos dos mais velhos. A sociedade branca tem que entender e respeitar o nosso jeito de viver. Nós não estamos lutando contra eles, somos também parte dessa sociedade, só que com nossas diferenças.

            Uma das principais causas da violência contra os índios é a cobiça de suas terras. É possível afirmar que 85% das terras indígenas (incluindo-se as demarcadas) são objeto dos mais diversos tipos de invasão, tais como a presença de posseiros, garimpeiros, madeireiros, projetos de colonização, abertura de estradas, hidrelétricas, linhas de transmissão, hidrovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos, minerodutos, criação de unidades de conservação ambiental e assim por diante.

            Contudo, Sr. Presidente, se tivermos a corajosa atitude de conhecer e aprender com os povos indígenas, podemos descobrir caminhos novos que nos levem à construção de uma sociedade mais solidária, democrática e humana.

            Há uma dificuldade real de compreendermos que os povos indígenas mantêm uma relação muito especial com a terra. Para ocupá-la, não distribuem títulos ou lotes particulares, ocupam-na de forma coletiva. A terra é posse de todo o povo. Uma das mais expressivas vitórias na história recente dos índios no Brasil foi a conquista de um capítulo especial na Constituição Brasileira. O artigo 231, referente aos direitos indígenas, reconhece a posse coletiva das terras, o significado do território para as culturas dos povos. Afirma serem elas “inalienáveis e indisponíveis”, ou seja, não podem ser vendidas, não estão a serviço do mercado, mas sim do usufruto exclusivo dos índios.

            A terra para o índio “é seu chão cultural, habitada por suas tradições, referência básica dos seus valores vitais, prenhe de mitos, campo de sua história.” O relacionamento dos índios com sua terra assemelha-se ao modo como o povo hebreu concebia a terra prometida. Para eles, a Palestina não era igual às outras terras, porque era a terra da Promessa. Fora daquela terra era impossível celebrar a liturgia, as festas e até mesmo cantar um dos cânticos de Sião. Da mesma maneira, os povos indígenas têm seus lugares sagrados, espaços de seus rituais, de manifestação de suas crenças e da força de seus ancestrais. A terra é o chão de sua história, de sua cultura, de sua coesão, de sua sobrevivência.

            Mas, Sr. Presidente, não devemos ficar apenas na questão da terra quando falamos dos índios. Na verdade, são muitas e valiosas as contribuições dos povos indígenas na construção do Brasil - na música, na língua, nas danças, na alimentação, nas crenças, nos ritos e até na toponímia. Para acentuar os aspectos positivos relativos à realidade dos povos indígenas, Padre Bartomeu Meliá escreveu um capítulo maravilhoso, no livro O rosto índio de Deus, sobre a experiência religiosa dos guarani. Diz ele, a certa altura:

A relativa incapacidade que os missionários tiveram em entrar em diálogo com o ‘espírito’ de sociedades indígenas, tão acentuadamente místicas como o guarani, representa um problema teológico de certa importância que questiona o tipo de experiência religiosa do missionário. Os dados documentais mostram que os guarani tiveram mais abertura espiritual para incorporar as formas religiosas dos missionários dos que estes a daqueles. Esta abertura e ‘tolerância’ não seria devida à debilidade e inconstância do “primitivo” em manter e saber defender seus princípios religiosos, como se pensou com freqüência entre os missionários, mas à própria concepção da “Palavra” que capacita o guarani para qualquer diálogo sincero e verdadeiro no Espírito. É o que advertiu o etnógrafo dos guarani, Curt Nimuendaju, numa página memorável: ‘Embora naturalmente o guarani, em seu íntimo, esteja tão convencido da verdade da sua religião quanto o cristão mais fervoroso, ele nunca é intolerante’.

            Creio que aqui tocamos o cerne da problemática da relação entre os povos indígenas, habitantes originais do Brasil, e os demais brasileiros, cujas origens são estrangeiras a essas terras. Nós brasileiros de ascendência não-americana trouxemos para um ecossistema já bem estabelecido novos padrões de relacionamento interpessoal e com a natureza que se chocam com os aqui estabelecidos há milênios. Não haveria como resultar em conseqüências diferentes das que temos, partindo-se dos pressupostos que sempre nortearam esse tipo de ocupação territorial. Aos invasores é dado o direito de impor sua cultura e seu sistema de gestão do mundo temporal e espiritual. Os bandeirantes ocuparam os territórios, os missionários ocuparam os espíritos. E assim se estabeleceu o conflito entre duas culturas.

            Foi necessário chegarmos ao final do século XX para que, com o acirramento dos conflitos e com o despertar da consciência dos povos indígenas sobre seus direitos, começássemos a repensar nossas relações, agora em termos de civilizações que devem coexistir e não se excluírem.

            Continuamos com o conflito crucial da disputa pela terra. Esse é um nó a ser desatado com sabedoria e discernimento. Não podemos destruir ainda mais as comunidades indígenas, despojando-as de suas terras, mas também não podemos travar o progresso do País. E mais uma vez retornamos à questão da convivência e da interação entre duas culturas que têm que coexistir espacial e temporalmente.

            Pensar os indígenas com padrões e paradigmas da civilização dita ocidental, ou pensá-los apenas com seus próprios padrões, é querer negar os feitos da interação entre as culturas. Pensar indígenas e ocidentais com padrões de interculturação é algo que faz sentido.

            Achar que os índios poderão continuar a vivenciar seus antigos costumes de modo independente da presença dos demais brasileiros é imaginar possível a construção de um paredão estanque entre as duas culturas. É inexeqüível!

            Preservar a história pessoal e coletiva dos indígenas é algo que pode ser feito mesmo dentro do inevitável processo de assimilação intercultural que houve, há e haverá num Brasil cada vez mais populoso.

            Assim, Sr. Presidente, julgo mais do que oportuna a Campanha da Fraternidade deste ano de 2002, pois ela nos obriga a repensar nossas relações com os diferentes de nós. Obriga-nos a refletir sobre nossas relações com as diferenças, sobre nossa capacidade de tolerância e harmonização. E isso é sempre enriquecedor, pois nos faz incorporar valores novos e positivos aos nossos próprios.

            Muito se tem falado sobre educação, trabalho e saúde para os povos indígenas. Não esqueçamos que eles já estavam no Brasil antes de nós e construíram uma civilização, que, se é simples em sua estrutura aparente, tem milhares de anos de consolidação e não pode ser descartada como primitiva. Ela é simples, mas rica e fecunda em sua longuíssima história. Merece respeito e condições de autopreservação, mesmo dentro de um processo de interpenetração com nossa cultura europeizada.

            Sr. Presidente, asseguremos os direitos fundamentais aos povos indígenas de se determinarem dentro de nossa sociedade. Não adianta querermos educá-los para serem pedreiros se, em suas comunidades, tudo se faz com palha e madeira. Não adianta querê-los alfaiates se andam desnudos em suas aldeias. Se eles devem interagir conosco, como deve ser feito, deixemos os espaços de criação para que eles possam usá-los da forma que sua criatividade inspirar. Não somos nós que devemos traçar caminhos para outros trilharem.

            Se houver uma postura de respeito mútuo, haverá um tempo para a construção de uma sociedade solidária, na qual serão preservados os valores essenciais de cada grupo, abrindo-se espaço para a integração positiva e enriquecedora.

            Sr. Presidente, os indígenas do Brasil resistiram a 500 anos de massacres e violências e hoje esperam contar com nosso apoio e solidariedade, para a garantia de seus direitos fundamentais, principalmente, o direito à vida. Neste sentido, estando longe ou próximo das comunidades indígenas, temos muitas maneiras de colaborar com suas lutas.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.

            Era o que tinha a dizer.


            Modelo15/18/2410:00



Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/03/2002 - Página 2411