Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso, no próximo dia 21, do Dia Mundial de Combate de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Apelo para aprovação do Projeto de Lei do Senado 212, de 2001, de sua autoria, que dá nova redação ao § primeiro do artigo 19 da Lei 10.260, de 12 de julho de 2001 (dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior), para atribuir prioridade absoluta aos alunos afrodescendentes.

Autor
Waldeck Ornelas (PFL - Partido da Frente Liberal/BA)
Nome completo: Waldeck Vieira Ornelas
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Transcurso, no próximo dia 21, do Dia Mundial de Combate de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Apelo para aprovação do Projeto de Lei do Senado 212, de 2001, de sua autoria, que dá nova redação ao § primeiro do artigo 19 da Lei 10.260, de 12 de julho de 2001 (dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior), para atribuir prioridade absoluta aos alunos afrodescendentes.
Publicação
Publicação no DSF de 20/03/2002 - Página 2517
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • IMPORTANCIA, DIA INTERNACIONAL, COMBATE, ELIMINAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • APRESENTAÇÃO, DADOS, EXCESSO, POBREZA, DESIGUALDADE SOCIAL, EXCLUSÃO, NEGRO, EMPREGO, REDUÇÃO, ESCOLARIDADE, AUMENTO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, CRIANÇA.
  • SOLICITAÇÃO, APROVAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, PRIORIDADE, NEGRO, OBTENÇÃO, BOLSA DE ESTUDO, ASSISTENCIA SOCIAL, INSTITUIÇÃO EDUCACIONAL.
  • SOLICITAÇÃO, APROVAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, JOSE SARNEY, SENADOR, OBRIGATORIEDADE, DESTINAÇÃO, NEGRO, PERCENTAGEM, VAGA, EMPREGO PUBLICO, ENSINO SUPERIOR.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. WALDECK ORNELAS (PFL - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, transcorre no próximo dia 21, depois de amanhã, o Dia Mundial de Combate e de Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. O Brasil começa a tomar consciência desse tema a respeito do qual o Senado da República pode, ainda nesta semana, tomar decisões importantes.

            Basta que passemos em revista a situação social dos negros em nosso País para vermos, com clareza, a necessidade de políticas e ações afirmativas em favor da nossa população afro-descendente. Abolida a escravidão há 113 anos, não foram criadas condições de igualdade de oportunidades para aqueles que foram, então, libertos. Na situação de hoje, a participação dos negros na população brasileira é da ordem de 45,3%, considerando-se aqui o contingente de pardos (39,9%) e de pretos (5,4%), conforme a classificação do IBGE.

            Cerca de 70 milhões de brasileiros constituem a segunda maior nação negra do mundo. Mas, se são 45% da nossa população, os negros concentram entre nós 64% da pobreza e 69% da indigência.

            Considerando-se a distribuição regional, quase a metade da população parda brasileira vive no Nordeste (47%). Se tomamos em consideração a questão educacional e suas relações com o mercado de trabalho e os níveis de remuneração da população negra, vemos que têm razão aqueles que bradam, que desfraldam a bandeira da reparação. É preciso que, efetivamente, o nosso País tenha consciência e adote medidas para corrigir essa situação de desigualdade que se perpetua em nossa realidade.

            O Brasil, na recente Conferência de Durban, na África do Sul, de acordo com o relatório do seu Comitê Nacional, reconheceu a situação de desigualdade e firmou posição para adotar medidas reparatórias por meio de políticas públicas específicas ainda por serem definidas, estabelecidas, desenhadas.

            Adotou, contudo, a representação brasileira alguns critérios bastante claros como o desenvolvimento das comunidades remanescentes dos quilombos e, também, a defesa do sistema de cotas para as universidades públicas, entre outras medidas estabelecidas.

            O IPEA, órgão do Ministério do Planejamento, realiza estudos que contêm um diagnóstico das condições de vida da população brasileira afro-descendente e se propõe a realizar estudos específicos e, sobretudo, a propor políticas públicas a serem executadas.

            Não devemos ficar de braços cruzados esperando que esses estudos sejam concluídos. É preciso que medidas e providências sejam tomadas de logo para começar a transformar essa realidade que afeta praticamente metade da população brasileira.

            Vejamos alguns dados dos estudos já realizados. Se consideramos os 54 milhões de pobres no Brasil, o que equivale a 34% da nossa população, nada menos do que 33,7 milhões são afro-descendentes. Dos 22 milhões de indigentes, nada menos do que 15,1 milhões são afro-descendentes. O conceito de pobreza refere-se aos gastos com alimentação e às despesas mínimas com vestuário, habitação e transporte.

            Considerando-se, no entanto, o conceito de indigência, Srs. Senhores, 22 milhões de brasileiros não têm acesso sequer à cesta básica. Dentre esses, 15,1 milhões são afro-descendentes.

            É uma realidade chocante, que precisa ser tratada com atenção pelos legisladores e executivos do Poder Público em nosso País, bem como pelas empresas privadas, que precisam ter cuidado especial com a população brasileira afro-descendente.

            Entre os pardos, que são a grande maioria dessa população, a situação é ainda pior que a dos pretos: 48,4% são pobres e, destes, 22,3% são indigentes. Entre os pretos, 42,9% são pobres e 18,3% são indigentes.

            Coincidentemente, é no Nordeste que se concentra boa parte da população afro-descendente brasileira. O Nordeste é uma região pobre e sofrida, subdesenvolvida, que concentra 28,9% da população brasileira. Desse povo nordestino, 76,8% são afro-descendentes, ou seja, de cada quatro nordestinos, três são afro-descendentes. Estão no Nordeste 60,6% dos pardos pobres e 46,6% dos pretos pobres do País.

            Se olhamos do ponto de vista da criança, a pobreza é mais acentuada nesse segmento, que, abrangendo 29% da população, concentra 43% da pobreza, cuja incidência é superior a 60% entre os afro-descendentes de zero a catorze anos.

            Se passamos a considerar o trabalho infantil, vemos que, embora venha se reduzindo, constitui mais uma indicação da precária condição de vida dos afro-descendentes em nosso País. Na faixa dos cinco aos nove anos, em 1992, trabalhavam 3,7% das crianças. Em 1999, esse porcentual tinha-se reduzido para 2,4%. Entre os brancos a situação tem melhorado mais rapidamente. A redução foi de 45% no período, enquanto entre os negros, de apenas 24%. Na faixa de dez a catorze anos cai, entre 1992 e a partir de 1995, de 22% para 17% o número das crianças que trabalham. No entanto, 13% das crianças brancas e 20% das crianças negras entre dez e catorze anos trabalhavam. Também aqui o diferencial tem crescido com redução do trabalho infantil entre os brancos, mais acelerado do que entre os negros.

            Com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o PETI, mais a bolsa-escola, que se expande significativamente a partir de 2001, com a criação do Fundo de Combate à Pobreza - essa situação já deve ser, em 2002, melhor do que então.

            Diminui a quantidade de crianças que trabalham, mas mantém-se e até tem-se agravado a diferença da situação racial.

            A população negra, no que diz respeito ao emprego, se concentra na atividade agrícola, na construção civil e na prestação de serviços, especialmente nos trabalhos domésticos com empregos precários.

            O trabalho livre substituiu a mão-de-obra escrava pela mão-de-obra imigrante. Em 1901, de cada 100 trabalhadores na indústria, 90 eram imigrantes europeus. Eis aí, Srªs e Srs. Senadores, o retrato da exclusão em nosso País logo depois de proclamada a Abolição da Escravatura.

            Os negros representam, quanto à renda, 70% dos 10% mais pobres da população e somente 15% nos 10% mais ricos. Dentre os 10% mais ricos, os brancos apropriam 41% da renda total do Brasil e os negros apenas 6%.

            É o que o técnico do Ipea, Ricardo Henriques, chama de embranquecimento da riqueza nacional. E aponta um Brasil branco, mais rico e mais desigual, e um Brasil negro, mais pobre e mais equânime, sendo que o Brasil branco é cerca de duas vezes e meia mais rico do que o Brasil negro.

            Boa parte desses problemas resulta dos diferenciais de escolaridade: 55% do diferencial de salários entre brancos e negros está associado à desigualdade educacional. Os jovens de 25 anos, negros, têm 6,1 anos de estudo; os brancos, 8,4 anos de estudo. Portanto, um diferencial de 2,3 anos, que é relativamente pequeno, mas sobre uma base muito baixa.

            Na verdade, precisamos melhorar, no que se refere aos anos de estudo, toda a população, mas nem por isso devemos deixar prolongar, se agravar esse diferencial que existe e vigora na realidade social do País, entre essas duas parcelas étnicas da nossa população.

            Dados de 1999 nos mostram que, entre as pessoas analfabetas de 15 e 25 anos, os negros são 8%; os brancos, 3%. No analfabetismo com mais de 15 anos, os negros são 19,8%; os brancos são 8,3%.

            O ensino fundamental tem-se universalizado, é verdade, os demais níveis, não. Mas, mesmo assim, na idade de 7 a 13 anos, fora da escola, temos 2% dos brancos e 5% dos negros.

            Entre os 18 e os 23 anos, com secundário não completo, os brancos são 63%; os negros, 84%.

            Entre os 18 e 25 anos que não haviam ingressado na universidade, os brancos são 89%; os negros são 98%. Apenas 2% dos negros haviam ingressado na universidade, em 1999, na faixa entre os 18 e 25 anos de idade.

            A escolaridade média, é verdade, tem crescido, mas tem-se mantido o diferencial entre brancos e negros. A política universalista, mais uma vez aqui fica claro, não atende à necessidade de corrigir esse diferencial ao longo do tempo. E nós sabemos da importância dos negros na formação da nossa nacionalidade, de sua importância histórica e da sua contribuição cultural para o País. Falta-lhes, contudo, oportunidades de ascensão social.

            A abordagem da questão racial no Brasil causou, numa primeira fase, preocupação penal quanto à discriminação - a Lei Afonso Arinos estatuiu como contravenção. Após a Constituição Federal de 1988, a Lei Caó criminalizou o preconceito racial. Mas o que precisamos, além da abordagem penal, é de um tratamento, de uma política específica de inclusão social, uma política que crie oportunidades iguais para toda a população brasileira.

            O baiano Rui Barbosa, na linha de Aristóteles, nos ensinou que a verdadeira lei de igualdade consiste em aquinhoar desigualmente aos desiguais à medida que se desigualam, para assim estabelecer, por intermédio da justiça distributiva, condições efetivas de igualdade.

            Ingressamos, agora, felizmente, numa segunda fase: a fase das ações afirmativas. Da atitude de não discriminar, passamos a promover a igualdade de oportunidades. Da igualdade formal, queremos alcançar a igualdade substantiva, a igualdade real. Isso requer, por parte do Estado, por parte do poder público, uma política ativa, que reconheça a insuficiência das políticas universalistas que congelam as desigualdades, e que resulta, também, numa ampliação dos poderes e do papel do Estado. O Estado que se retrai, que reflui, que se afasta da atividade econômica, da atividade de produção é o Estado que precisa ampliar os seus poderes e a sua intervenção, para executar uma política social de correção dos desequilíbrios que resulte na prestação positiva por parte do Estado, através de políticas de eliminação das desigualdades.

            Aqui no Senado Federal, temos em tramitação pelo menos dois projetos que tratam de políticas afirmativas no sentido de corrigir as desigualdades de natureza racial em nosso País. Refiro-me ao Projeto de Lei do Senado n.º 212, de 2001, de minha autoria, que estabelece prioridade absoluta para os afro-descendentes nas bolsas de estudo da filantropia, que devem ser concedidas a título de assistência social a carentes, proporcionando às instituições de ensino a isenção da quota patronal previdenciária.

            Como todos sabemos, depois da Constituição de 1988, as bolsas de estudo desapareceram. Elas estão previstas na Constituição apenas para aquele caso do ensino fundamental, onde não haja oferta adequada de vagas. De modo que essas bolsas de estudo da filantropia constituem um nicho que devemos aproveitar para orientar, para direcionar, para focar, nesse contingente populacional brasileiro, que tem sido tão prejudicado ao longo do tempo e que, sobretudo no acesso à universidade, tem enfrentado graves limitações.

            Trata-se, no caso deste projeto, de bolsas de estudo, e não do financiamento educacional, do crédito educativo. Tampouco se trata da política de quotas. O que desejamos é dar prioridade absoluta, enquanto houver um brasileiro afro-descendente carente numa dessas instituições, seja de ensino superior ou de ensino médio ou de ensino fundamental, na concessão dessas bolsas para, só então, passar a outras camadas e a outras parcelas da população.

            Sr. Presidente, essa é uma proposta que não tem qualquer implicação, qualquer conflito com a Lei de Responsabilidade Fiscal. É uma isenção já existente, a qual se está procurando dar uma destinação social justa e adequada. Não tem, portanto, impacto fiscal, mas corresponde a cerca de R$800 milhões ao ano. Isso é o dobro do atual Filanprograma de financiamento educacional a estudantes de nível superior. Trata-se, por conseguinte, de um valor nada desprezível e que tem sido mal utilizado em nosso País, permitindo que a filantropia se transforme em “pilantropia”.

            Com a aprovação desse projeto, teremos condições de maior controle social, porque hoje não existe sequer controle administrativo sobre a efetiva aplicação desses recursos.

            Aprovado na Comissão de Educação, a matéria deverá ser apreciada amanhã pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, juntamente com o Projeto de Lei do Senado nº650/99, de autoria do Senador José Sarney, que prevê uma cota de 20% para a população negra nas vagas destinadas a cargos e empregos públicos nos três níveis de Governo, nos cursos de graduação, em todas as instituições de nível superior do País e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante de Ensino Superior.

            Em ambos os projetos, adotou-se o critério da autodeclaração, tal como ocorre em relação ao censo realizado pelo IBGE. O projeto do Senador Sarney recebeu na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, na semana passada, um importante substitutivo da lavra do Senador Sebastião Rocha. O referido substitutivo amplia o escopo do projeto, introduzindo novos critérios e novos elementos. Dependendo da decisão desta Casa amanhã, por meio da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja deliberação terá caráter terminativo - o projeto de minha autoria terá de vir ainda ao plenário desta Casa - o País poderá comemorar o Dia Mundial de Combate à Discriminação Racial neste 21 de março.

            Será a oportunidade de tomarmos a vanguarda da definição de uma política de ações afirmativas que visem à integração definitiva da população afro-descendente, desses nossos irmãos que foram involuntariamente trazidos nos navios negreiros e que, até hoje, não foram, de fato, incorporados de modo equânime, igualitário e solidário, na nossa sociedade, embora tenham contribuído tanto com a nossa cultura, a nossa nacionalidade e a nossa história.

            Ao fazer este pronunciamento, apelo às Sr.ªs e Srs. Senadores para que tenhamos amanhã, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e depois no Senado, a aprovação dessas leis que constituirão um marco definitivo de mudança de atitude do País em relação à população brasileira afro-descedente.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


            Modelo14/25/2411:57



Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/03/2002 - Página 2517